“Vamos parar até que nos ouçam.” Estafetas fazem mais um protesto contra plataformas
Exigem pagamento mínimo de três euros por entrega e compensações por cada quilómetro percorrido. Estafetas da Uber Eats, Glovo e Bolt cumprem "paralisação pacífica" em protesto por melhores condições.
O dia já vai longo, mas está ainda longe de terminar. As entregas que fez ao almoço para as plataformas digitais renderam-lhe hoje menos do que estava à espera. Passou depois a tarde plantado frente a um restaurante de uma popular cadeia de fast food à espera de mais pedidos, mas o sucesso foi parco. E nem o corre-corre típico do período do jantar foi suficiente para compensar essas “horas mortas”.
Ainda era manhã quando este estafeta se ligou às plataformas digitais, mas hoje vai continuar noite dentro, na esperança de conseguir fechar o dia com ganhos mais próximos dos pretendidos. Ao ECO, Hans Melo, porta-voz do movimento “Estafetas unidos”, conta que estes se sentem obrigados a trabalharem 12, 14 e até 16 horas diárias para obterem “rendimentos aceitáveis”.
Esta sexta-feira, os estafetas vão parar das 18h às 00h, num protesto “sem violência” e uma das reivindicações é o pagamento mínimo de três euros por entrega, valor que ajudaria, entendem, a compensar as tais horas que passam online, mas sem pedidos.
“Glovo, Bolt e Uber, numa espécie de cartel, formaram uma organização. Se eles estão a organizar-se, por que é que nós não havíamos de nos organizar?”. A pergunta é atirada por Hans Melo, brasileiro de 38 anos que chegou a Portugal há dois anos.
No Brasil, era empresário, conta, mas a pandemia fechou-lhe o negócio. Acabou por imigrar para Portugal, tornou-se estafeta das plataformas digitais e hoje é um dos administradores dos “Estafetas unidos”, uma comunidade no Whastapp que conta com mais de mil membros.
“Havia vários grupos locais de estafetas. Sentíamos falta de um grupo nacional. A minha ideia é sempre a consciencialização. Não é prometer coisas impossíveis. Temos de, primeiro, saber das nossas obrigações, para depois pedir os nossos direitos”, salienta o porta-voz.
Ao ECO, Hans Melo conta que foram ouvidos estafetas de várias cidades do país, do Porto ao Algarve, para o desenho da lista de reivindicações que sustentou a paralisação de final de fevereiro e a que será cumprida esta noite. Além do pagamento mínimo, dessa lista consta a exigência de compensações por cada quilómetro percorrido (50 cêntimos por cada quilómetro entre dois e 4,9 quilómetros e um euro por quilómetro para viagens acima dos cinco quilómetros de distância).
Os estafetas querem também que os pedidos duplos sejam pagos individualmente e que acabem os pedidos triplos. Pedem, além disso, que a deslocação até ao ponto de recolha seja remunerada e que as plataformas (Uber, Bolt e Glovo) abram escritórios nas principais cidades, com os quais possam dialogar e reportar eventuais dúvidas ou problemas. Neste momento, indica Hans Melo, a comunicação é feita inteiramente de forma eletrónica.
Outra reclamação dos estafetas tem que ver com os equipamentos que usam para as entregas. “A mochila, a mota, o pneu. Tudo é nosso, não é da plataforma“, realça o porta-voz, que detalha que as mochilas — que custam “30 a 50 euros” — ficam desgastadas “em dois meses”, mas as lojas querem que sejam usadas mochilas novas. “Por que não pedem para as plataformas cobrarem apenas um valor simbólico?“, questiona Hans Melo.
O porta-voz assegura que já houve paralisações semelhantes à que acontecerá esta sexta-feira em França, nos Estados Unidos, no Brasil e no Reino Unido. “Vamos parar até que nos ouçam“, assevera.
Contratos de trabalho: sim ou não?
Do caderno de encargos dos estafetas há uma ausência que não pode deixar de merecer atenção: não há qualquer menção a contratos de trabalho. Aliás, num vídeo partilhado na comunidade de Whastapp, Hans Melo rejeita essa hipótese, referindo que “a briga” é entre os estafetas e as plataformas, e não inclui o Governo.
“A nossa luta é contra as plataformas, neste momento. Um contrato seria baseado em quê? Em que leis? Seria baseado em leis ultrapassadas. Vai considerar a hora a que saí de casa? E as horas extra?“, inquire o porta-voz, em conversa com o ECO.
Hans Melo vai mais longe e dá o exemplo dos “estafetas privados” que hoje são empregados de algumas cadeias de fast food. “Não são só estafetas. Também vão para a linha de produção. Limpam as casas de banho“, alerta. E acrescenta que, a haver um contrato de trabalho com as plataformas, o salário mínimo nacional (hoje em 820 euros) com referência também não seria interessante. “Qual estafeta aceitaria?”, pergunta.
Além disso, Hans Melo relata que a própria Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) tem falhado, uma vez que, nas inspeções, procura saber, primeiro, se há pagamentos em atraso à Segurança Social. “Poucos quiseram falar com a ACT com medo da justiça portuguesa“, explica o porta-voz.
Em contraste com estas declarações, importa lembrar que a ACT já abriu mais de mil processos com vista ao reconhecimento de um contrato de trabalho entre estafetas e as plataformas digitais, à luz da nova lei que entrou em vigor em maio do ano passado.
Há também estafetas que desejam ser vistos como trabalhadores dependentes: o movimento “Estafetas em Luta” tem insistido nesse ponto e tem apoiado estafetas no Norte que avançaram para tribunal contra a Glovo.
Glovo manda comissão. Uber “está a fazer birra”
Esta sexta-feira será a segunda vez neste trimestre que os estafetas das plataformas digitais cumprem uma paralisação. No rescaldo do último protesto, a Glovo “mandou uma comissão de três pessoas” a Coimbra para perceber o que pediam os estafetas, assegura Hans Melo, que elogio a “postura educada” da plataforma.
Já a Bolt reajustou os ganhos dos estafetas, aumentando o valor das entregas nas horas de alta procura, indica o mesmo porta-voz. “Nos horários de menos procura, os ganhos diminuíram“, lamenta.
E a Uber? “Dois dias” antes da paralisação de fevereiro, esta plataforma chamou os estafetas, mas estes deixaram claro que o protesto se iria manter e, desde então, não tem havido negociação. “A Uber está a fazer birra“, considera Hans Melo.
O ECO questionou a Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD) que reúne estas três plataformas, que salienta que estas “ouvem constantemente os estafetas e continuarão a fazê-lo, de modo a melhorar a sua experiência”.
“Respeitamos o direito que todos têm de se manifestar, com respeito pela segurança e ordem públicas”, sublinha a APAD. “Todos nós unidos. Sem violência“, insistem os “Estafetas unidos”, que prometem esta noite uma grande paralisação.
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