Governo quer combater enriquecimento ilícito. Mas como?

Governo quer criar um mecanismo de perda alargada de bens para combater enriquecimento ilícito. Advogado questiona falta de pistas sobre este mecanismo. "Deixa qualquer jurista em alerta", diz.

Uma das medidas anticorrupção apresentadas e aprovadas esta quinta-feira pelo Governo é a criação de um novo mecanismo de perda alargada de bens. Com esta medida, o Executivo pretende combater o enriquecimento ilícito, fazendo assim reverter a favor do Estado bens e proventos económicos da corrupção.

Este mecanismo pode incluir, em certos casos, a dispensa do pressuposto da condenação. Este instrumento, que visa combater o enriquecimento ilícito, pretende assegurar que os corruptos não ficam com o produto da sua conduta criminosa — que, de acordo com dois diplomas já em vigor, presume-se que abranja a diferença entre o património e os rendimentos declarados no IRS e os sinais de riqueza exibidos, embora o arguido tenha sempre a possibilidade de provar que esta presunção não é verdadeira.

A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, disse ainda que o mecanismo de perda alargada de bens pode ser aplicado mesmo no cenário de arquivamento de processos. “Já existe um mecanismo de perda alargada de bens, mas queremos incrementar para ser mais eficaz. Este mecanismo pode ser aplicado mesmo que não haja condenação e que o processo seja arquivado”, afirmou a governante, no briefing realizado após a reunião do Conselho de Ministros. Rita Alarcão Júdice considerou o mecanismo de perda alargada de bens como “uma das medidas-chave” aprovadas neste pacote de mais de 30 medidas.

“A melhor forma de combater o enriquecimento ilícito é assegurar a devida perda da vantagem do crime e que se percecione que o crime não compensa”, sublinhou.

Segundo a introdução do documento – aprovado esta quinta-feira em Conselho de Ministros – Portugal ocupa a 34.ª posição no Índice de Perceção da Corrupção, um ranking de 180 países, em que o país menos corrupto do mundo ocupa o 1º lugar. “Esta perceção tem estado na origem da descrença dos cidadãos nas Instituições e na Justiça. Segundo estimativas de 2018, a corrupção em Portugal pode equivaler a quase 10% da riqueza produzida pela nossa economia”.

“As várias tentativas de criminalização da detenção de património sem justificação conhecida, prescindindo da prova de um crime subjacente, frustraram-se por inconstitucionalidade”, refere o Governo.

Ainda assim, o Executivo alerta que grande parte dessas dificuldades foram superadas com a previsão do crime de ocultação intencional de património. Este crime é punível com pena de prisão de um a cinco anos, quando praticado por titular de cargo político ou alto cargo público, por referência à declaração única de património, rendimentos e interesses que se está obrigado a apresentar.

“Por outro lado, o ordenamento jurídico português já contém instrumentos avançados conducentes à perda das vantagens do crime. Sobretudo, a perda alargada de bens, prevista na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira”, explica.

Assim, o Governo pretende aprofundar este mecanismo, de acordo com o estabelecido na Diretiva (UE)2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de abril de 2024, de forma a assegurar que a perda possa ser declarada relativamente a bens identificados em espécie e que em determinadas condições se possa dispensar o pressuposto de uma condenação por um crime do catálogo.

O Governo alerta ainda que existem lacunas no âmbito da regulação processual da perda de bens e que é necessário colmatá-las. “Importa clarificar como se articulam os diferentes instrumentos que, no plano cautelar e preventivo, têm vindo a ser utilizados para garantir a execução de uma eventual decisão final de perda: a apreensão, o arresto preventivo e a modalidade especial de arresto no âmbito da perda alargada”, lê-se na Agenda Anticorrupção.

O Executivo sublinha que é necessário também promover a regulamentação adequada de todos os mecanismos processuais que se relacionem com a realidade das criptomoedas.

Para o associado coordenador da equipa de Penal Contraordenacional e Compliance da MFA Legal, Rui Costa Pereira, os objetivos apresentados ao nível da punição efetiva estão num “limbo muito frágil” entre o reforço da ação punitiva do Estado e a salvaguarda dos direitos fundamentais das pessoas.

“Às vezes o discurso público parece esquecer que este segundo interesse tem primazia sobre o primeiro, mais não seja por a Lei Fundamental o afirmar, no primeiro artigo (!). Quero acreditar que a sua concretização legislativa e regulamentar não irá perder de vista este princípio“, considera o advogado.

Rui Costa Pereira sublinhou que querer-se criar um novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado, mas “sem dar uma única pista” de que novo paradigma é esse, “deixa qualquer jurista penalista em alerta”.

“Para já, porque não se percebe porque é que é necessário um novo paradigma. O atual não é bom? Porquê? Como é possível robustecer um regime onde já é possível ao Gabinete de Recuperação de Ativos e à Polícia Judiciária avançarem com arrestos de bens de pessoas nem sequer acusadas de crimes, suportadas por despachos tabelares, em que o ónus da prova da proveniência“, acrescenta.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Governo quer combater enriquecimento ilícito. Mas como?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião