Chinesa DeepSeek expõe ainda mais o atraso de uma Europa sem ‘challenger’ à altura na IA

Apesar da baixa adesão das empresas dos dois lados do Atlântico, o aparecimento de um modelo de IA chinês mais barato faz aumentar a pressão sobre a Europa, ainda sem um 'challenger' à altura.

O surgimento de um concorrente chinês aos grandes modelos de linguagem norte-americanos renovou os receios de que a Europa esteja a ficar definitivamente para trás na inovação em inteligência artificial (IA). Essas preocupações são exacerbadas pela baixa adesão das empresas europeias, incluindo as portuguesas, à IA, atrasando melhorias que a tecnologia promete vir a ter na eficiência das organizações.

A startup chinesa DeepSeek ganhou fama mundial esta semana ao provocar um grande tombo nas bolsas, principalmente em Wall Street, onde fez a fabricante de chips Nvidia perder quase 600 mil milhões de dólares em valor de mercado na segunda-feira. Em causa está o facto de a DeepSeek ter disponibilizado dois modelos de IA que produzem resultados semelhantes a modelos como os da OpenAI, criadora do ChatGPT, com um custo significativamente menor.

Perante estes avanços tecnológicos, subiram de tom as dúvidas quanto às centenas de milhares de milhões de dólares que algumas empresas americanas têm estado a investir nesta área. O tema não é novo, principalmente à luz das baixas taxas de adesão das empresas nos EUA, onde menos de 4% das empresas usavam IA no final de 2023 para produzir bens e oferecer serviços, segundo um inquérito oficial.

O cenário é semelhante noutras geografias, embora as estatísticas não sejam diretamente comparáveis. Dados do Eurostat relativos a 2024, divulgados em janeiro, mostram que apenas 13,5% das empresas da União Europeia com mais de dez trabalhadores usavam IA nas suas operações no ano passado.

A situação é ainda pior em Portugal, onde a percentagem ronda os 8,6%.

Segundo Manuel Levi, consultor, data scientist e especialista em IA, não é por falta de modelos inovadores “que as empresas não estão a avançar” na tecnologia. “Nós não temos que dar modelos muito melhores do que aqueles que já temos para ter um impacto muito grande nessas empresas. Essas empresas não estão ainda é a fazer uso desses modelos”, aponta Manuel Levi.

Para o especialista, os modelos atuais já permitiriam gerar eficiências nas empresas se fossem adotados. Soluções assentes em IA podem já hoje executar tarefas básicas como propor respostas a emails de clientes, mas “a maior parte das vezes isso não é feito só porque não é feito”. Assim, “não é por terem um modelo muito melhor” que as empresas “vão tirar melhor partido dele”.

“As empresas precisam é de começar a aplicar esses modelos, melhores ou piores, e muitas vezes um modelo muito melhor não é necessário para resolver o problema”, acrescenta Manuel Levi, exemplificando: “Ninguém precisa de um Ferrari se não faz uso do seu Renault Clio.”

Nós não temos que dar modelos muito melhores do que aqueles que já temos para ter um impacto muito grande nessas empresas. Essas empresas não estão ainda é a fazer uso desses modelos.

Manuel Levi

Consultor e especialista em IA

Por sua vez, Ivo Bernardo, data scientist e cofundador da empresa de software DareData, compara a adoção de IA pelas empresas à própria transição digital em curso: “Este processo de adoção é lento, mas quando vier em força, uma empresa morre se não evoluir na transformação digital”, sublinha.

Para o responsável, “à medida que mais empresas forem adotando” estas tecnologias, outras empresas se seguirão, aliciadas por poupanças que, no caso de alguns projetos implementados pela DareData, “reduzem custos numa ordem de grandeza significativa”: “Um processo de 100 mil euros por mês passa a custar 20 ou 30 mil euros. É brutal a diferença”, afirma.

Desse ponto de vista, modelos como os da DeepSeek — batizados de V3 e R1 — poderão acelerar a adesão pelos negócios se realmente forem mais baratos: “À medida que o preço vai sendo um fator não diferenciador, mais empresas vão começar a adotar este tipo de mecanismos”, acredita Ivo Bernardo.

Todavia, permanecem receios do ponto de vista da proteção de dados, como ficou evidente pela queixa formalizada na terça-feira contra a DeepSeek por uma organização internacional de defesa do consumidor, da qual a portuguesa DECOProteste faz parte, acusando a startup chinesa de enviar dados dos europeus para a China sem as “salvaguardas” legalmente exigidas, em suposta violação do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD).

A Euroconsumers denunciou ainda ao regulador italiano da proteção de dados que a política de privacidade da DeepSeek estipula que os dados são armazenados em servidores situados em território chinês. Mas os riscos colocam-se da mesma forma às empresas e aos cidadãos quando está em causa o uso de qualquer outro modelo, incluindo os norte-americanos.

A DeepSeek ganhou notoriedade mundial esta semana graças ao seu modelo de IA com baixo custo de desenvolvimentoHugo Amaral/ECO

O triunfo do open-source

Estes dois especialistas ouvidos pelo ECO não duvidam de que foi possível que uma empresa chinesa relativamente obscura tenha desenvolvido modelos que rivalizam com os americanos com custos de desenvolvimento significativamente inferiores, trabalhando, por exemplo, com soluções já disponíveis em código aberto (open source).

No entanto, Manuel Levi alerta que não se trata de uma vantagem exclusiva desta empresa chinesa. “A OpenAI tem acesso a esses mesmos modelos e sabe como é que eles estão construídos”, nota. Tal como as empresas europeias. Isso traduz-se numa “vitória do open source“, sublinha Ivo Bernardo, em contraponto com os avanços da OpenAI, que disponibiliza “modelos fechados”, acrescenta.

Mas mais do que as capacidades dos modelos, foi a rápida democratização da tecnologia da DeepSeek nos últimos dias que mais surpreendeu estes especialistas, com a aplicação móvel da empresa a alcançar o topo do pódio das mais descarregadas na segunda-feira na sua categoria, destronando o ChatGPT. Um feito que resulta também da curiosidade natural, alavancada numa forte atenção mediática.

Seja como for, a coexistência de modelos avançados desenvolvidos nos EUA e na China coloca ainda mais pressão sobre a Europa, onde uma pequena startup francesa chamada Mistral continua sem se conseguir afirmar ao mesmo nível das concorrentes. Na UE, a discussão sobre IA continua muito dominada pela regulamentação.

“Acho que os factos demonstram que estamos a fazer alguma coisa incorreta. Não significa que a regulamentação não seja necessária, mas estamos a dar demasiado foco à regulamentação e não a como vamos ser um grande player” em IA, diz o cofundador da DareData.

“Vemos uma luta entre duas esferas económicas, EUA e China, a anos-luz do que conseguimos desenvolver na Europa — por alguma razão é. Passámos muito tempo a discutir se deveríamos regulamentar ou não, mas não estamos preocupados em deixar as empresas aplicarem livremente estes modelos nos negócios, na vida e nas sociedades”, critica Ivo Bernardo.

Vemos uma luta entre duas esferas económicas, EUA e China, a anos-luz do que conseguimos desenvolver na Europa.

Ivo Bernardo

Cofundador da DareData

Manuel Levi também considera que “a Europa está a dar um tiro no pé” com a quantidade de regulamentação que tem implementado, “que, embora seja bem-intencionada, vai levar a sérios problemas, principalmente a longo prazo”, vaticina.

“O efeito que a IA vai ter nas empresas é um efeito cumulativo. Uma empresa que comece a utilizar agora vai poder utilizar mais e mais e alavancar. Como é exponencial, é preciso ver a mudança a acontecer nos primeiros passos”, refere o especialista, diagnosticando outras causas do problema, como, por exemplo, a dificuldade em levantar capital em comparação com outros mercados.

Mas a visão de que a Europa tem demasiada regulamentação não é unânime. Questionado sobre o que esta competição EUA-China diz sobre o estado da Europa, Adolfo Mesquita Nunes, advogado, especialista em regulamentação de IA e sócio da sociedade de advogados Pérez-Llorca, atira: “Dar a China como um exemplo de liberdade e inovação é risível.” “Na China só se inova o que o Partido [Comunista Chinês] achar que se inova. O empreendedorismo está sujeito às regras que o partido impõe”, argumenta.

Adolfo Mesquita Nunes recorda que os modelos da DeepSeek recusam-se a responder sobre temas sensíveis para o regime, como os acontecimentos em Tiananmen em 1989, o que aumenta ainda mais “a necessidade de haver regras”. “A ideia de que a IA pode continuar sem qualquer tipo de regulamentação que mitigue os riscos quando algo corre mal, ou que define a responsabilidade quando algo corre mal, é ingénua. E a UE não é a única a ter normas sobre o assunto, incluindo alguns Estados nos EUA”, repara.

Isso não significa, para este especialista, “que não seja justo reconhecer que a Europa nos últimos anos se concentrou mais na regulamentação e menos na competitividade”. Mas, mesmo assim, “tendemos a comparar os EUA com a China e com a Europa enquanto blocos económicos esquecendo que a Europa são mais de duas dezenas de países, mais de duas dezenas de parlamentos, centenas de atos eleitorais, e de legitimidades democráticas que, necessariamente, tornam o processo decisório muito mais complexo do que o da China e dos EUA por razões evidentes”, explica.

"A ideia de que a IA pode continuar sem qualquer tipo de regulamentação que mitigue os riscos quando algo corre mal, ou que define a responsabilidade quando algo corre mal, é ingénua.”

Adolfo Mesquita Nunes

Advogado, sócio da Pérez-Llorca

Com mais um modelo amplamente disponível no mercado — desta vez chinês e aparentemente mais barato –, ficam mais claras as virtudes da tecnologia, mas também os riscos, incluindo o eventual atraso do continente europeu.

Mas de nada vale ter recursos se depois não chegam à economia real. E, no que toca ao ChatGPT versus DeepSeek, “são dois modelos que levam exatamente ao mesmo sítio”. Afinal, como diz Ivo Bernardo, “com o Ferrari consegue-se circular a 140 Km/h, mas com o Clio pode-se ir a 120” sem perder a estabilidade.

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