Académicos criticam “esquizofrenia” das políticas sobre migrações

  • Lusa
  • 21:39

Académicos recordam que o discurso sobre os imigrantes em Portugal coloca-os como alguém que se está "a aproveitar do sistema e dos subsídios", mas esquece-se a história da emigração portuguesa.

Académicos que trabalham com o tema das migrações lamentaram esta quarta-feira que os governantes decidam políticas sem base científica e criticaram a “esquizofrenia” no modo como Portugal lida com os seus emigrantes e imigrantes.

“O Estado português promove ativamente a sobrevivência de costumes e vivências nos seus emigrantes, tem até um dia das comunidades portuguesas”, ao mesmo tempo que exige a “integração plena” dos imigrantes, afirmou à Lusa Rui Pena Pires, do Observatório da Emigração.

Há “uma esquizofrenia” nas políticas públicas sobre migrações: o Governo “exige aos imigrantes o contrário do que promove na emigração”, afirmou o investigador, à margem de um encontro evocativo dos 10 anos dos Encontros sobre Experiências Migratórias, organizada pelo Iscte — Instituto Universitário de Lisboa, Universidade Nova e Observatório da Emigração.

Rui Pena Pires, coordenador científico do Observatório da Emigração.Lusa

Liliana Azevedo, uma das coordenadoras dos encontros, concordou com esta análise, salientando que as “migrações não são tratadas da mesma forma, quando se trata de portugueses [no exterior] ou de estrangeiros” em Portugal.

“Há uma narrativa dominante relativamente aos portugueses lá fora, que os apresenta como embaixadores de Portugal, bons trabalhadores que se integram bem, preservam a língua e as tradições”, mas isso “é uma imagem superficial, acontece com uns, mas não com outros”, salientou.

E hoje, o discurso sobre os imigrantes em Portugal coloca-os como alguém que se está “a aproveitar do sistema e dos subsídios”, mas esquece-se a história da emigração portuguesa.

Ainda hoje “há muitos portugueses que vivem problemas na habitação, acesso à saúde, integração e estigmatização” nos seus países de acolhimento, pelo que “apontar o dedo a imigrantes que vêm de outros continentes e não olhar para as migrações portuguesas lá fora é, de facto, hipócrita”, considerou a investigadora, que lamentou a falta de comunicação entre a academia e os governantes.

“Não está criado um canal de diálogo entre a academia e quem decide”, reconheceu a investigadora, salientando que os políticos pouco comparecem nos encontros científicos, apesar de convidados, e os analistas “raramente são chamados à mesa de diálogo”.

Quando se elaboram políticas migratórias, referem-se “números e elementos económicos”, mas “não se trazem ao debate sociólogos, antropólogos ou geógrafos” que estudam um tema já estudado.

“Não é um problema de não haver dados, é um problema de falta de vontade política em encontrar soluções baseadas em dados científicos”, explicou Liliana Azevedo.

Uma das responsáveis presentes no encontro, a investigadora do Iscte e ex-secretária de Estado das Migrações Cláudia Pereira reconheceu que a ponte entre a academia e os políticos nem sempre é fácil.

“Não foi no meu caso, tive uma ministra que era socióloga e um primeiro-ministro [António Costa] que sabia do tema e lia os artigos sobre migrações, nalguns casos antes de nós”, recordou a investigadora, salientando que muitas das medidas para o setor “se basearam em estudos”.

A “verdade é que a maioria dos políticos não se orienta pelas recomendações dos académicos”, mas “uma coisa que o Covid nos ensinou é que precisamos da ciência e de dados para construir melhores políticas e agir no terreno”, reconheceu Cláudia Pereira.

Hoje, o país vive num “clima político que é muito exigente e desafiante” e “Portugal é um dos epicentros do discurso de ódio na Europa”, pelo que o tema está capturado por “mitos e falsidades”.

“Em termos comparativos, Portugal tem menos imigrantes que os outros países europeus” e os “refugiados na Europa são menos de 1%, mas adquiriram uma visibilidade que os tornaram no centro das atenções”, exemplificou a investigadora, considerando que é errado adotar políticas restritivas na entrada de estrangeiros num contexto de crescimento económico.

O que regula os fluxos são o mercado laboral: “Há trabalho, as pessoas migram, não há trabalho, as pessoas não migram”, explicou Cláudia Pereira.

“De uma forma muito provocatória, a melhor forma de afastar imigrantes é criar uma crise económica”, disse a antiga governante socialista, recordando o início dos encontros migratórios, que celebram agora 10 anos: “estávamos num contexto de crise da dívida soberana” e “assistiu-se a nova emigração”, porque “havia pouco emprego em Portugal e muito no Reino Unido, por exemplo”.

Então, “aumentou muito o desemprego jovem e essas pessoas não tendo emprego em Portugal”, procuraram outros destinos, principalmente na Europa.

“Portugal nunca deixou de ter emigrantes, saem cerca de 65 mil portugueses por ano”, explicou a investigadora do Observatório de Emigração.

Liliana Azevedo admitiu que o tema mais mediático agora é a imigração, numa tendência global. Portugal foi um país “que atraiu pessoas e houve mudanças legislativas, em termos das leis da imigração, que constituíram um fator de atração, os media falaram sobre o assunto e o Chega aproveitou-se disso e utilizou os imigrantes como bode expiatório” dos “problemas que entretanto surgiram”.

Rui Pena Pires concordou que o “contexto político mudou” e existe “em rédea solta um discurso e uma prática política sobre a imigração que era inimaginável há uns anos”, num processo “perigoso porque cria divisões e ódios e cria, a prazo, conflitos”.

“Se normalizamos a xenofobia sobre a imigração, aceitamos que outros processos do mesmo tipo aconteçam sobre outros” e há o risco de repetir a história: “num tempo são os judeus, noutro tempo são os ciganos e noutros são os imigrantes”, concluiu.

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