“Estará o tribunal a preferir contornar a justiça apenas porque o arguido se chama Ricardo Salgado?”. Arguido recorre para a Relação

“Como pode o tribunal admitir que alguém que não é capaz de comprar um café ou descrever o seu dia consiga exercer a defesa num dos processos mais complexos da justiça?”,questiona a defesa de Salgado.

A defesa de Ricardo Salgado entregou na terça-feira um recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) – no âmbito da Operação Marquês – contra a decisão que rejeitou suspender os julgamentos em causa e em que Salgado é arguido. Em causa a sentença de maior acompanhamento que reconheceu, com caráter definitivo, a incapacidade do arguido devido à doença de Alzheimer que o ex-homem forte do BES enfrenta. Mas que não foi suficiente para a juíza Susana Seca suspender o julgamento quanto a este arguido. Os advogados de defesa sustentam que o Estado “não pode prosseguir um julgamento criminal contra alguém que, por doença grave e confirmada judicialmente, está impossibilitado de compreender as imputações ou de exercer o direito de defesa”, segundo o recurso, a que o ECO teve acesso.

Segundo a defesa, a decisão de atribuir o estatuto de maior acompanhado a Salgado constitui facto posterior “inequivocamente relevante” e deveria determinar a extinção do processo quanto ao arguido ou, pelo menos, a sua suspensão por tempo indeterminado. O tribunal de primeira instância contudo, entendeu que o estatuto de maior acompanhado não afeta a tramitação do processo penal e não impede que o julgamento prossiga. “ Perante este padrão – em que decisões sucessivas ignoram sistematicamente uma sentença judicial de acompanhamento, assente em perícia atual, e continuam a repetir argumentos já desmentidos pela própria realidade processual – impõe-se colocar a questão de forma clara e direta: Estará o Tribunal a preferir contornar a justiça, fechando os olhos a princípios basilares do processo penal democrático, aos factos e à prova válida, apenas porque o arguido se chama Ricardo Salgado?”, dizem os advogados de defesa.

ANDRÉ KOSTERS/LUSAANDRÉ KOSTERS/LUSA

Tribunal considerou acompanhamento irrelevante para efeitos penais

O despacho agora impugnado concluiu que a sentença de acompanhamento “não constitui facto superveniente juridicamente relevante” e que a proteção conferida pelo regime não limita a intervenção do arguido em processo penal. Para o tribunal, a incapacidade reconhecida no âmbito civil não interfere com a capacidade processual penal, invocando normas do Código de Processo Penal que apenas admitem representação em casos muito específicos, como a menoridade.

A defesa considera esta interpretação “juridicamente insustentável” e contrária aos mais elementares direitos e garantias de defesa. Sublinha que o despacho desconsidera o conteúdo da perícia atual, que conclui que “o arguido não compreende o contexto em que se encontra, não consegue expressar necessidades básicas, não sabe dizer o seu próprio nome e necessita de assistência para atos elementares da vida diária”.

“Como pode o tribunal admitir que alguém que não é capaz de comprar um café ou descrever o seu dia consiga exercer o direito de defesa num dos processos mais complexos da justiça portuguesa?”, questiona a defesa, que acusa o tribunal de manter o arguido em julgamento “como se nada fosse”.

Acusações de tratamento desigual e padrão decisório repetido

O recurso enviado à juíza da Operação Marquês denuncia ainda a existência de uma “fundamentação tabelar” aplicada em vários processos em que Ricardo Salgado é arguido, nomeadamente nos casos conhecidos como “BES/GES”, “Banco Brasil” e “BESA”. Segundo a defesa, diversos juízos criminais replicaram argumentos idênticos, ignorando a nova prova resultante da sentença de acompanhamento, o que revela um padrão de decisão “insensível à realidade clínica e jurídica do arguido”.

A defesa vai mais longe e afirma que existe um tratamento diferenciado em função da notoriedade do arguido. Alega que, em casos envolvendo outros cidadãos com incapacidade reconhecida judicialmente, a jurisprudência seguiu caminho oposto, suspendendo ou impedindo a continuação dos processos penais. “A resposta só pode ser afirmativa”, escreve a defesa, ao perguntar se há decisões ditadas pela circunstância de o arguido se chamar Ricardo Salgado.

Defesa escuda-se em decisões judiciais anteriores

O recurso destaca o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de novembro de 2024, que, ao apreciar caso semelhante, concluiu que a anomalia psíquica superveniente que impossibilite o arguido de exercer pessoalmente o direito de defesa impede o prosseguimento do processo enquanto essa incapacidade persistir.

Um dos eixos centrais do recurso reside na acusação de que o despacho recorrido viola princípios constitucionais, nomeadamente a dignidade da pessoa humana e o direito de defesa, bem como garantias previstas em convenções internacionais. A manutenção do arguido em julgamento, apesar da incapacidade reconhecida, configuraria, segundo os advogados, uma situação de “desproteção” e “indignidade” incompatível com os valores estruturantes de um Estado de direito.

A defesa afirma ainda que o tribunal tratou a sentença de acompanhamento como se fosse irrelevante, esvaziando o significado de uma decisão judicial que reconhece de forma definitiva a falta de autodeterminação e autonomia do arguido. Tal postura, diz, representa “uma das mais graves distorções possíveis no processo penal”.

Num dos momentos mais críticos do texto, a defesa interroga se o tribunal estará a orientar a decisão para “satisfazer expectativas da opinião pública”, sobrepondo-se aos princípios constitucionais. Considera que a insistência em levar a julgamento um arguido incapaz demonstra “falta de coragem” e um desvio dos fins essenciais do processo penal, que incluem a proteção dos direitos fundamentais do arguido.

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