Uber: da discussão à demissão em sete percursos
A Uber viveu o semestre a saltar entre polémica. Houve processos em tribunal, projetos que não deram certo e até casos de assédio, culminando na saída do CEO, Travis Kalanick. Conheça a história.
No final do ano passado, a Uber era apontada como um dos principais casos de sucesso em Silicon Valley. Avaliada em quase 70 mil milhões de dólares, arrecadou o título de maior companhia de capital privado do mundo e desempenhou um papel crítico na economia da partilha, assim como no setor do transportes. Com operações na maioria das grandes cidades do mundo e um mercado a clamar por uma entrada em bolsa, só o céu parecia ser o limite.
Mas 2017 iria revelar-se como o ano mais complicado da sua curta história.
I. A campanha
Logo em janeiro, uma campanha contra a empresa nas redes sociais levou a que cerca de 200.000 utilizadores desinstalassem a aplicação, depois de a Uber ter subido tarifas e mantido a operação durante uma greve de taxistas que se recusavam a transportar pessoas no aeroporto de Kennedy, em protesto contra as políticas de banimento de refugiados de Donald Trump.
O The Washington Post relatou uma chuva de queixas no site da empresa, também contra o facto de Travis Kalanick, então presidente executivo, pertencer ao conselho económico do Presidente dos Estados Unidos. Seria a primeira mancha na reputação da companhia, levando a empresa a pedir desculpa pela confusão. “Não pretendíamos boicotar qualquer protesto”, afirmou um porta-voz citado pelo TechCrunch. Mais explicações foram dadas, mas os ânimos não acalmaram. No início de fevereiro, Kalanick optou por abandonar o cargo de conselheiro estratégico de Trump.
II. O assédio
O pior, e o muito pior, ainda estavam para vir. A 19 de fevereiro, uma antiga engenheira da empresa, Susan Fowler, denunciava ter sido vítima de assédio sexual por parte de um alto cargo da companhia. Além do problema propriamente dito, a ex-trabalhadora terá feito queixa ao departamento de recursos humanos, que não tomou qualquer medida dada a posição elevada do acusado na hierarquia interna, alegadamente. A opinião pública estremeceu e Travis Kalanick anunciou a abertura de uma investigação.
Aos trabalhadores, o presidente pediu desculpa pelo caso e pela falta de diversidade na empresa, contou um trabalhador à Bloomberg. A moral caiu para mínimos, e não demorou muito tempo para a informação começar a fluir. Numa longa reportagem, o The New York Times desvendou a “agressiva” cultura empresarial da Uber nos escritórios da empresa. O ambiente seria produtivo mas por vezes desenfreado, assente num sistema meritocrata mas com um sentimento de impunidade das camadas mais baixas face às mais altas. Um diretor quase terá agredido um trabalhador com um taco de basebol, outro terá inusitadamente apalpado os seios de uma funcionária num retiro empresarial.
III. O roubo de patentes
A 23 de fevereiro, surgia um novo escândalo envolvendo a Waymo. A empresa da Google (Alphabet) que está a trabalhar no carro sem condutor processou a Uber, da qual é acionista, por alegada violação de patentes e roubo de propriedade industrial. No centro da polémica esteve Anthony Levandowski, ex-executivo dessa empresa, que lançou um projeto de camiões autónomos comprado depois pela Uber. A tecnologia em causa era um sensor avançado, elemento central no carro autónomo da Google.
Logo nessa altura começaram a surgir as notícias das fugas de talento da empresa: segundo o Financial Times, um número anormal de funcionários estaria à procura de emprego noutros locais, o que surpreendeu o mercado dados os fortes incentivos em ações ou opções de compra dados aos trabalhadores. São ativos, como explicou o jornal, que podem valer milhares ou mesmo milhões de dólares. Muita gente acabou por sair da Uber. A 13 de junho, só ao nível dos executivos já tinham saído 14, contabilizou o o BuzzFeed News.
IV. O táxi de Travis
A polémica seguinte surgiu a 27 de fevereiro: Amit Singhal, um antigo executivo da Google que deixou a empresa para entrar na Uber, teve de sair por não ter revelado as verdadeiras razões pelas quais saiu da dona do conhecido motor de busca: era acusado de assédio sexual. Segundo o The Washington Post, Singhal saiu da Google voluntariamente, mas foi Travis Kalanick quem lhe pediu para abandonar a empresa de transporte.
No dia seguinte, Travis Kalanick acordaria para ver na Bloomberg um vídeo seu, gravado por um motorista da empresa. O presidente foi apanhado por uma câmara no painel de instrumentos, onde o motorista o confronta com as cada vez mais baixas tarifas, ao que Kalanick o acusa de não assumir responsabilidades pelos seus próprios rendimentos. “Boa sorte”, disse, ao abandonar o automóvel. Mais tarde, pediu desculpa e assumiu precisar de “ajuda de liderança”.
V. A licença
Estávamos já em março quando a Uber lançou um inovador serviço de transporte de carros sem condutor em São Francisco. A notícia começou por ser positiva, até se descobrir que a empresa não teria licença para o fazer naquela cidade. O transporte não era puramente autónomo, na medida em que havia sempre um condutor para garantir a segurança caso o sistema falhasse. Foi esse o argumento usado pela empresa para se defender, mas a polémica não abrandou. Contas feitas, o programa foi movido para o Estado do Arizona. Alguns dias mais tarde surgiam notícias de um acidente automóvel envolvendo um dos seus carros sem condutor, o que levou à suspensão temporária do programa.
VI. As aplicações secretas
Foi a 3 de março que a Uber foi acusada de ter uma ferramenta secreta para ludibriar as autoridades e os concorrentes, como noticiou o ECO. O programa, chamado “Greyball”, permitia à empresa escapar às inspeções e enganar taxistas para que não fossem capazes de saber a localização dos motoristas ao serviço da plataforma. A denúncia terá partido de antigos funcionários e resultou na abertura de um processo judicial contra a empresa pelo do departamento de Justiça dos Estados Unidos dois meses depois. A partir deste caso, passariam mais dez dias até surgir um novo problema…
… o que aconteceu a 19 de março, num momento em que já corriam rumores de que o programa de testes com o carro autónomo não estaria a correr tão bem quanto o esperado, como avançou na altura a Re/code. Nesse dia, o presidente do conselho de administração da Uber, Jeff Jones, optou por se desassociar da empresa na sequência do escândalo do assédio sexual. Jones alegou não se identificar mais com a companhia.
Em meados de abril, o jornal The Information deu conta que o “Greyball” não seria o único programa secreto usado pela Uber para ganhar vantagens sobre o resto do mercado. Desta vez, fontes referiram ao jornal um programa chamado “Hell” [Inferno, em português], que permitiria à empresa, usando contas falsas na aplicação concorrente Lyft, saber onde estavam os motoristas daquela plataforma, bem como cruzar dados e descobrir quais trabalhavam para as duas empresas em simultâneo, num potencial caso de “prática de negócio desleal”.
Nas semanas seguintes, a Uber enfrentaria uma ameaça de sanção regulatória que poderá chegar a um milhão de dólares por motoristas conduzirem sob o efeito de álcool, com as autoridades a acusarem a companhia de não tomar as devidas medidas para mitigar o problema. Além disso, e depois da ordem judicial para que Levandowski se desassociasse do programa do carro autónomo da Uber, a alegada pouca cooperação do ex-funcionário da Google levou a que fosse despedido pela Uber.
VII. O trágico acidente
Todos estes casos fizeram aumentar a pressão sob os ombros de Travis Kalanick. Mas foi no final de maio que surgiu a pior de todas as notícias. Como avançou a Re/code, a mãe do então presidente executivo, Bonnie Kalanick, morrera num acidente com uma embarcação, deixando-lhe o pai em estado crítico. Aconteceu a 27 de maio e terá abalado seriamente o jovem empreendedor de 40 anos.
A 13 de junho, Kalanick cedeu à pressão: pediu licença para se afastar temporariamente da empresa, sem especificar a duração do retiro. Desde essa altura, a única informação que surgiu mais foi a desta quarta-feira: depois da pressão exercida por alguns dos grandes investidores da empresa. Depois de se aconselhar, Travis Kalanick decidiu renunciar ao cargo de presidente executivo da Uber.
“Amo a Uber mais do que tudo no mundo e neste momento difícil na minha vida pessoal decidi aceitar o pedido dos investidores para que me afastasse, para permitir à Uber voltar a crescer em vez de estar distraída com outra luta”, disse num comunicado. Não se afastará definitivamente: manterá assento no conselho de administração da empresa de transporte que ajudou a fundar.
Amo a Uber mais do que tudo no mundo e neste momento difícil na minha vida pessoal decidi aceitar o pedido dos investidores para que me afastasse, para permitir à Uber voltar a crescer em vez de estar distraída com outra luta.
E agora?
Agora, a Uber prepara-se para uma nova era, sem Travis Kalanick aos comandos da nave. A empresa procura um novo presidente executivo. Segundo o New York Post, a empresa estará a preparar uma proposta a Sheryl Sandberg, a chefe de operações do Facebook, refere o jornal sem identificar fontes. Entre os rumores de gestores para ocupar o cargo está ainda Marissa Mayer, a ex-presidente executiva da Yahoo.
Ao virar de página junta-se ainda a reestruturação da cultura empresarial da empresa: a 6 de junho, mais de 20 funcionários da firma foram despedidos na sequência da investigação desencadeada pelas acusações de assédio. Além disso, 31 empregados irão receber formação. De acordo com o The Washington Post, foram investigados pela empresa 215 casos reportados de assédio. O agora parece ser de viragem da página.
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