João Cerejeira é crítico em relação ao plano proposto por António Costa Silva para a recuperação do país. Diz que falta definir prioridades entre os investimento e valorizar o capital humano.
Portugal arrancou 2020 a discutir aumentos salariais para a generalidade dos trabalhadores, mas a pandemia de coronavírus obrigou o país a mudar de cassete e a estar agora focado na manutenção a todo o custo dos empregos. Em entrevista ao ECO, o economista João Cerejeira antecipa que os acréscimos remuneratórios só voltarão a estar na ordem do dia daqui a três anos. E isto com um crescimento “relativamente forte” da economia nacional. O mesmo se aplica ao salário mínimo. É que, a manterem-se os objetivos inicialmente traçados pelo Governo, as falências poderão multiplicar-se.
Sobre o Plano de Recuperação Económica e Social apresentado por António Costa Silva ao Executivo, o especialista é crítico. Diz que não terá efeitos a curto prazo, que falta definir prioridades entre os investimentos listados e que esquece uma componente “muito importante”: o capital humano.
João Cerejeira — que esteve entre os 20 economistas de elite chamados por António Costa, em abril, para discutir o relançamento da economia portuguesa — salienta, por outro lado, que a principal falha do Governo, até aqui, foi o “discurso contraditório” relativamente ao desconfinamento e a reabertura “demasiado rápida” do país. O professor também é crítico no que aos transportes públicos diz respeito, defendendo “investimento a sério” e propondo a alteração dos horários de trabalho, para evitar as aglomerações.
O Governo estima que, este ano, o desemprego subirá para 9,6%. O Fundo Monetário Internacional (FMI) antecipa um agravamento mais severo para quase 14%. Está o Governo a ser otimista ou é o FMI que está a ser pessimista?
A verdade estará no meio das duas [previsões]. O que nós observamos nos vários institutos que fazem previsões é que têm um leque muito diversificado. Faz sentido, porque as previsões, regra geral, são feitas com base em comportamentos passados e, quando nós temos um choque como este, em que não há uma história passada para poder inferir os comportamentos das várias variáveis que compõem o sistema económico, é muito mais difícil fazer previsões. Observamos uma grande volatilidade.
Quando falamos em desemprego, a questão a saber é se vai ser desemprego ou perda de emprego. Há uma outra parte da perda de emprego que, depois, não se traduzirá num aumento do desemprego, porque as pessoas não cumprem os critérios. Numa situação de pandemia, a disponibilidade para trabalhar e procura ativa, que definem alguém como desempregado, não têm sido verificadas. Do ponto de vista estatístico, o que temos é um aumento da população inativa ou um aumento da subutilização do trabalho, porque é população que estaria disposta a trabalhar, mas não faz a procura ativa.
Essa é uma fonte de grande incerteza para a taxa de desemprego. Podemos ter o paradoxo da taxa de desemprego não aumentar ou aumentar muito pouco. Isso faz com que, provavelmente, os quase 14% [do FMI] sejam exagerados, mas não quer dizer que não estejamos a ter uma quebra do emprego.
Portanto, o aumento da população inativa continuará a fazer com que o aumento do desemprego não seja tão significativo?
Sim. E depois há outra questão que é o prolongamento da situação de lay-off. Apesar de o Governo já ter anunciado que o período de lay-off foi prolongado só por mais um mês, depois vamos ter um novo regime a partir do final de agosto. Se efetivamente não houver uma recuperação significativa da atividade económica, provavelmente poderemos ter um novo prolongamento do lay-off ou, então, um facilitar das condições de acesso ao novo regime. E isso também é um elemento de incerteza e pode fazer com que o desemprego não seja tão evidente este ano, mas apareça após o lay-off.
O levantar do lay-off, se não for feito de forma muito monitorizada, muito cuidada, podemos ter uma escalada do desemprego.
Antecipa uma escalada do desemprego assim que os 60 dias após o lay-off simplificado expirarem e as empresas possam fazer despedimentos?
Quanto ao lay-off, a tendência a nível europeu é o prolongamento dos prazos. Em Portugal, estamos a encurtar o período de lay-off. Há um volume muito grande do emprego que está atualmente abrangido por esta medida, que funcionou como travão ao desemprego. O levantar do lay-off, se não for feito de forma muito monitorizada, muito cuidada, podemos ter uma escalada do desemprego.
Além disso, uma medida apenas administrativa como esta diz que os despedimentos estão proibidos [até 60 dias após o lay-off simplificado], mas as empresas podem fechar. Não há nenhuma lei que impeça as empresas de falir, a não ser que o Estado as nacionalize, mas isso não vai acontecer com todas. Pode acontecer com um caso ou outro, como já aconteceu, mas não é por aí.
Considera que teria sido mais acertado manter o lay-off simplificado nas condições que vigoraram até julho ou o “sucedâneo” é satisfatório para a nova fase de retoma da economia?
Ainda não temos dados. É muito importante ter dados quase à semana ou, pelo menos, ao mês. Temos tido os dados dos inscritos nos centros de emprego, mas os inscritos nos centros de emprego são apenas umas parte do total de desempregados. É sempre preferível fazer cálculos com cautela. Por exemplo, a questão do lay-off e o setor do turismo. Depois dos anúncios de vários países [de desaconselhamento de viagens para Portugal] com mercados muito importantes, como o caso do Reino Unido, a retoma do setor do turismo vai ser mais lenta e provavelmente para esses setores poderia fazer sentir algum prolongamento do lay-off.
Por isso é que digo que é preciso monitorização quase diária, porque as coisas mudam praticamente de uma semana para a outra. A segunda fase ou a não descida do número de infetados em Portugal também vai ter efeitos ao nível da atividade das empresas, sem dúvida, e isso pode obrigar a continuação das medidas que tinham sido adotadas em março, como o lay-off simplificado.
Sendo o Algarve uma região muito especializada no turismo, não há alternativa de diversificação de atividade que possa ser assumida, no curto prazo. Portanto, tem de haver um esforço grande do Governo português.
Dito isso, estima que o Algarve continue a ver o desemprego disparar bem mais do que o resto do país? O turismo vai conseguir sobreviver?
Algum tipo de turismo vai sobreviver, nomeadamente com o crescimento da procura dos turistas nacionais. Mercados como o Algarve, que estão muito dependentes do estrangeiro, nesta altura do ano, vai ser muito complicado. Aliás, acho que se justificava a aplicação de políticas específicas para aquela região. E sendo esta uma região muito especializada naquela setor, também não há alternativa de diversificação de atividade que possa ser assumida, no curto prazo. Portanto, tem de haver um esforço grande do Governo português.
Nesse plano específico para o Algarve — que o Governo já anunciou que fará –, que medidas julga serem aconselháveis?
As medidas passam, em primeiro lugar, pelo apoio aos rendimentos das famílias mais afetadas. Depois, é mais complicado quando entramos nos apoios às empresas, porque algumas vão ter viabilidade no futuro e outras não. E o Estado tem dificuldade em identificar quais serão as que terão viabilidade.
Pelo que que tem sido feito para essa região, noutras alturas, as medidas poderão passar pela formação profissional, pela reconversão profissional para outras áreas. O Algarve tem um potencial agrícola muito interessante. Provavelmente, terá de haver uma combinação de um apoio aos rendimentos das famílias com um apoio à reconfiguração e à requalificação desses trabalhadores para outras áreas que não o turismo. Nalguns casos provavelmente terá haver algum tipo de instrumentos financeiros e financiamento bancário a longo prazo, porque há investimentos turísticos que têm capital elevado, como hotéis. Noutros casos, como pequenos negócios, faz mais sentido o apoio à pessoa e à família.
Provavelmente vai ter de haver alguma imaginação para criar novos instrumentos de apoio para além do subsídio de desemprego. Créditos de emergência, por exemplo, que pudessem ser pagos em função dos rendimentos.
A propósito, o Governo facilitou o acesso ao subsídio social de desemprego e o Parlamento acaba de aprovar uma alteração ao acesso ao subsídio de desemprego. Acha que terão de ser feitas outras mudanças no acesso a estas prestações?
O acesso ao subsídio de desemprego em Portugal não é fácil, exige um número de dias de descontos relativamente elevado, o que coloca à margem um conjunto importante de trabalhadores, nomeadamente independentes ou que têm pequenos negócios. Houve muita pressão para voltarmos à atividade normal por percebermos que este grupo grande de trabalhadores estava excluído de apoios sociais. Ou seja, essas medidas de prolongamento do subsídio de desemprego fazem sentido, mas continuamos a ter uma dificuldade grande de acesso destes trabalhadores que estão à margem e muitos deles vivem da atividade turística.
O que era válido, há uns meses, em termos de proteção social para estes trabalhadores continua válido e provavelmente vai ter de haver alguma imaginação para criar novos instrumentos de apoio para além do subsídio de desemprego. Créditos de emergência, por exemplo, que pudessem ser pagos em função dos rendimentos destes trabalhadores no futuro. Ou, então, relaxar e facilitar o acesso ao subsídio de desemprego, eventualmente limitando a duração deste subsídio, mas diminuindo o número de dias de descontos necessários para ter acesso. Há que desenvolver estas normas, sob pena da crise se agudizar, neste conjunto de trabalhadores que ainda é significativo e que tem pouco apoio da Segurança Social.
Sem os apoios necessários, antecipa uma nova vaga de emigrantes qualificados?
Essa questão, para já, não se coloca, porque a crise é em simultâneo em vários países. Os países que acolhiam os emigrantes portugueses também estão a passar por uma crise e pelo aumento do desemprego. Não há perspetivas de emprego para quem quiser emigrar de Portugal para outros países. Não há essas oportunidades. Podemos ter é o contrário: Pessoas que emigraram e que, por terem perdido o emprego nesses países, agora tenham necessidade de voltar a Portugal, estando também o mercado de trabalho português a passar uma crise grande.
Portugal tem um nível de rigidez mais elevado do ponto de vista do despedimento individual, mas não nos contratos temporários ou nos despedimentos coletivos.
Já falámos de despedimentos e recentemente a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) destacou Portugal como um dos países onde despedir é mais difícil. Acha que isso pode ser uma vantagem ou um problema, nesta fase excecional?
O que mostram os estudos sobre a rigidez na contratação e nos despedimentos, no que diz respeito à evolução do mercado de trabalho ao longo do ciclo económico, é que, quanto maior for a rigidez, os efeitos no mercado de trabalho tendem a ser menores nas recessões, mas depois a recuperação também tende a ser mais lenta. Por outro lado, isso [a rigidez do mercado português] é válido para os contratos individuais de trabalho. Já não é tão válido para os despedimentos coletivos e para os contratos de trabalho temporários, que têm um peso elevado, no mercado português.
Portugal tem, portanto, um nível de rigidez mais elevado do ponto de vista do despedimento individual, mas não nos contratos temporários ou nos despedimentos coletivos. Quer dizer que, numa fase de recessão como a atual, acabamos por ter um crescimento do desemprego elevado por via dos tais contratos temporários ou, caso isto se mantenha [a crise], pela emergência dos despedimentos coletivos. A rigidez no caso português confere alguma proteção ao despedimento, mas sobretudo para os grupos com contratos sem termo.
Portanto, há um grupo ainda grande que continua desprotegido.
Exatamente. Portanto, uma coisa é a proteção dos trabalhadores olhada apenas a nível médio. Outra é percebermos os componentes dessa proteção e verificamos que, em algumas componentes, Portugal é relativamente flexível. Essa flexibilidade na margem vai contribuir para os fluxos no mercado de trabalho.
Ainda a propósito da flexibilidade do mercado português. Na revisão recente do Código do Trabalho, alargou-se o período experimental para trabalhadores à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração foi dilatado. Essa mudança veio agravar a escalada do desemprego neste período de pandemia ou, pelo contrário, trazer alguma margem de manobra às empresas e salvar negócios?
Isso [o alargamento do período experimental] foi uma moeda de troca. A reforma da lei laboral trouxe alguma rigidez adicional à contratação a termo e a moeda de troca, digamos, para incentivar a contratação sem termo foi o alargamento do período experimental. Os trabalhadores contratados no último ano, é evidente que têm o emprego em risco, mas também o teriam se tivessem sido contratados a termo, que era a alternativa anterior. Não posso dizer que tenha havido uma alteração qualitativa suficientemente elevada para ter havido uma mudança significativa nessa relação institucional. Quer os contratos a termo, quer o período experimental acabam por ser a margem de ajustamento que as empresas usam, quando têm quebras de atividade.
Se a crise se mantiver, as empresas terão outras formas de redução da força de trabalho mesmo de quem já passou o período experimental. Isso aconteceu também na crise de 2009, com despedimentos coletivos em grande escala e acordos de saída para trabalhadores com contratos um bocadinho mais protegidos.
Se as empresas verificarem que não há perdas de produtividade, de controlo ou monitorização do trabalho, o teletrabalho provavelmente veio para ficar até porque proporciona uma redução dos custos.
Em relação ao teletrabalho, considera que as empresas portuguesas estavam preparadas para experimentar esta modalidade, ao ponto a que foram obrigadas nos últimos meses?
Preparadas não estavam, no sentido em que não era uma prática comum. Em alguns setores, sim, mas ainda era relativamente residual. Não era uma prática comum, apesar de haver meios para isso. A primeira fase de adaptação foi também de aprendizagem e de mobilização de recursos para essa forma de trabalhar. Essas mudanças acabam por ter um efeito permanente, porque mesmo nas outras áreas que não Lisboa e que estão a ser menos afetadas o teletrabalho continua presente em modalidades mistas. Provavelmente, vai ter futuro.
Veio para ficar.
Sim, veio para ficar. Implica menos tempo nos transportes, menos reuniões inúteis. Se as empresas verificarem que não há perdas de produtividade, de controlo ou monitorização do trabalho, provavelmente veio para ficar até porque proporciona uma redução dos custos. Agora, nem todas as empresas têm capacidade para gerir recursos à distância. Há aqui um desafio grande em termos de reorganização do trabalho. É toda uma exigência grande.
E considera que o teletrabalho poderá, de alguma forma, mitigar o problema da fraca produtividade de que Portugal sofre?
Qual é o efeito que isto pode ter na produtividade? Acho que tem a ver com o nível de bem-estar dos trabalhadores. Poderá ter algum efeito positivo. Agora, se isto é a solução para a falta de produtividade das empresas portuguesas? Não. As empresas portuguesas têm fraca produtividade porque temos um número grande de empresas em setores pouco geradores de valor acrescentado, que são do ponto de vista tecnológico pouco desenvolvidos. Depois, a estrutura empresarial portuguesa é muito fragmentada. Não há possibilidade de aproveitar economias de escala. Temos também empresas com falta de capital, com falta de investimento. E tudo isso não se resolve com teletrabalho. O teletrabalho pode efetivamente melhorar algo em termos da qualidade de vida dos trabalhadores.
Ainda assim, acha que há alguma forma das empresas portuguesas aproveitarem este momento para se reinventarem e reforçarem a sua competitividade e produtividade?
Este momento de exceção vem trazer ainda mais problemas às empresas, nomeadamente a questão da capitalização. Com os efeitos da pandemia, o primeiro resultado é a diminuição das vendas e da faturação e isso vai diminuir os resultados das empresas e aumentar o endividamento. O que pode acontecer é termos algumas empresas a reinventarem-se. Tem acontecido em alguns casos. Agora, os efeitos positivos são muito inferiores aos efeitos negativos.
Pensar que [a proposta de Costa Silva] é um plano de retoma a curto prazo é um bocado exagerado. Isto não vai ter efeitos no curto prazo.
António Costa Silva já apresentou ao Governo o seu plano para a recuperação económica. Que avaliação faz dessa proposta?
A primeira avaliação que eu faço — ainda que não conheça bem o plano, não o vi — é que parece uma listagem de investimentos prioritários. Qualquer desses investimentos, seja o TGV, o aeroporto de Lisboa ou o hidrogénio, vai demorar anos até que haja um investimento. Vão exigir um projeto, um estudo do impacte ambiental, um concurso, uma série de procedimentos que vão demorar anos. O primeiro efeito que vamos ter é na construção civil, quando avançarem as obras, e só depois na economia portuguesa.
Pensar que isto é um plano de retoma a curto prazo é um bocado exagerado. Isto não vai ter efeitos no curto prazo. Depois há outra questão que é: Ninguém sabe quanto custa. Não se sabe quanto custa e, portanto, não se sabe que benefícios que traz. Não há uma análise de custo-benefício. E era aí que poderia haver uma priorização dos investimentos, que também me parece que não há.
Também falta uma componente muito importante que é o capital humano. Só oiço falar em obras, isto é engenharia pura, mas falta o capital humano. E o nosso principal défice face aos países mais avançados é a qualificação dos recursos humanos, e o plano não tem nada.
Depois, há outras componentes muito importantes para captar investimento estrangeiro, que tem a ver com a questão da corrupção em Portugal, bem como com a questão da concorrência e da abertura dos setores que estão protegidos ao exterior. Deixamos de falar, pura e simplesmente, na questão do monopólio que temos quer no sistema financeiro, quer na energia, quer nas telecomunicações. Temos poucas empresas que dominam o mercado e temos preços que não são competitivos, nem concorrenciais e isso tem um custo para a economia, mas este plano não fala nada. Este plano, portanto, não mexe com nenhum interesse instalado.
Fazer apenas um elencar de projetos é fácil, toda a gente está de acordo. Quem é que não queria ter um comboio que ligasse Lisboa e Porto em hora e meia? A questão é quanto é que estamos dispostos a pagar por isso. Fazer uma listagem de investimentos, qualquer pessoa seria capaz de fazer, estando atento à discussão que se vai fazendo. O que é difícil é fazer a priorização e fazer uma análise do ponto de vista económico mas também social.
Portanto, não é o plano que se esperava e que o país precisa?
Não. Era muito mais interessante ver projetos que estão parados e que pudessem avançar já no imediato, que estão já licenciados, do que projetos que nem sequer em projeto existem. Existem só em ideia.
Mesmo na listagem de projetos que foi apresentada, há alguns que podem avançar mais rapidamente do que outros e tinham de estar calendarizados. Não sei se o plano inclui isso ou só apenas ideias úteis para a discussão, mas não deveria ser assim que se faz o planeamento das grandes infraestruturas portuguesas e não se deveria pensar que só as infraestruturas resolvem o problema de fraca competitividade da economia portuguesa. Vai muito para além disso.
Talvez tenha havido otimismo a mais da parte do Governo relativamente à passagem ao desconfinamento. Houve pressa para as pessoas voltarem à rua e ao normal.
António Costa chamou 20 economistas para discutir o relançamento da economia. O seu nome estava incluído nessa lista. No programa de estabilização económica e social (PEES), o Governo já levantou o véu das medidas desenhadas para esse fim. Que avaliação faz desse pacote face aos contributos que foram dados nessa reunião?
Do ponto de vista económico, alguns dos contributos foram refletidos. Houve 20 pessoas a intervir, muitas propostas, algumas até conflituantes.
Talvez tenha havido otimismo a mais da parte do Governo relativamente à passagem ao desconfinamento. Houve pressa para as pessoas voltarem à rua e ao normal. Isso foi uma das coisas de que falamos na altura. Vários economistas disseram que uma segunda vaga poderia ter efeitos piores do que a primeira. Talvez tenha havido algum entusiasmo e uma abertura demasiado rápida das ruas e das atividades, que agora pode ter efeitos mais negativos que positivos.
Algumas das questões que foram faladas, do ponto de vista dos transportes públicos, não se fez nada em concreto. Houve aqui alguma necessidade de coordenação das políticas económicas com as decisões das empresas [em termos de horários de trabalho, por exemplo], que talvez não tenha sido feita.
Então, que propostas levadas pelos especialistas a essa reunião encontraram eco nos planos do Governo?
Na altura, falava-se que as regras do lay-off não eram claras e que mudavam muito rapidamente e a isso houve uma reação muito rápida do Governo. O regime que ficou acabou por ser consensual entre as entidades patronais, que eram muito críticas nas primeiras versões do lay-off. Também algumas das medidas que estão no PEES no que dizem respeito à capitalização das empresas, foram referidas nessa reunião. Depois, há outras medidas que dependem menos do Governo e mais da Comissão Europeia, nomeadamente o que tem a ver com a estabilidade do sistema financeiro.
A questão dos transportes públicos é fundamental. É um ponto de aglomeração de pessoas e de grandes possibilidades de contágio, para além de ser uma área em que é difícil intervir, porque custa dinheiro. Temos de alterar os horários de trabalho das pessoas, mas também temos de investir em mais transportes.
Em contraponto, quais as maiores falhas que identifica no plano do Governo?
A principal falha foram os sinais contraditórios da parte do Governo, do Presidente da República e das autoridades. Num momento, não se podia fazer nada, [havia um] confinamento relativamente restritivo. No outro, quase tudo passou a ser permitido. Estou a exagerar, mas foi um pouco essa a mensagem. Foi um sinal errado. Exigia-se algo [um desconfinamento] muito mais paulatino. Eu percebo que havia pressões da parte das empresas para que a abertura fosse rápida, mas depois temos efeitos colaterais.
E a questão dos transportes públicos é fundamental. É um ponto de aglomeração de pessoas e de grandes possibilidades de contágio, para além de ser uma área em que é difícil intervir, porque custa dinheiro. Temos de alterar os horários de trabalho das pessoas, mas também temos de investir em mais transportes. Tem de haver investimento a sério nos transportes e haver alternativas. Não é só pedir às pessoas para voltarem à sua vida normal e depois não termos condições do ponto de vista sanitário que as proteja.
Em alternativa, considera que um rendimento básico de emergência seria uma medida mais adequada para proteção social do que o pacote adotado em Portugal?
As experiências que há em termos internacionais de rendimentos básicos incondicionais são relativamente curtas. Mesmo aquilo que se falou para Espanha não era tão incondicional quanto isso. Havia um conjunto de condições de acesso. Obviamente que condições menos exigentes do que as do rendimento social de inserção em Portugal, que é, de alguma maneira, uma forma de rendimento básico.
Seria muito mais adepto de termos um esquema de crédito básico incondicional, ou seja, em houvesse a possibilidade a possibilidade de o Estado fazer uma transferência em crédito que fosse pago num prazo relativamente longo em função do IRS que se declarasse. Isso permitia socorrer falhas de liquidez de curto prazo e permitia que o pagamento fosse faseado em função do sucesso da retoma económica no futuro.
As medidas que tivemos a esse nível, créditos e moratórias para as empresas, foram a curto prazo. Grande parte dessas moratórias vence agora. Se a retoma não seguir o ritmo que desejamos, vamos ter novamente uma onda de problemas de liquidez das empresas. As moratórias não são a resolução dos créditos. Os créditos agora têm de ser pagos. Foi só um dilatar dos prazos e vamos ter um novo dilatar. E isso é fulcral, porque do pagamento dos créditos depende também a solidez do sistema financeiro.
Tem de haver moratórias mais dilatadas. Caso contrário, há risco de encerramento das empresas e dos créditos ficarem incobráveis e aí é o sistema financeiro que entra em crise.
Os prazos das moratórias foram, portanto, demasiados limitados? As empresas deviam ter mais tempo para recuperarem?
Há setores que foram pouco afetados, mas nos setores que foram mais afetados tem de haver moratórias mais dilatadas. Caso contrário, há risco de encerramento das empresas e dos créditos ficarem incobráveis e aí é o sistema financeiro que entra em crise.
Antes da pandemia, discutia-se a valorização dos salários. Agora fala-se em desemprego e cortes salariais. Quanto tempo será necessário para regressar ao ponto em que estávamos no início do ano?
Acréscimos salariais só daqui a três anos, eventualmente. Se o desemprego efetivamente subir a 12% ou 13%, vamos precisar de três anos, com um crescimento relativamente forte, para voltarmos aos níveis de desemprego que tínhamos em 2019. Portanto, só a partir desse momento é que se poderá aspirar acréscimos salariais reais.
A mesma coisa com o salário mínimo? O salário mínimo estava em crescimento há vários anos. O Governo tinha como meta continuar essa trajetória, também nesta legislatura. Considerando o impacto da pandemia no tecido empresarial, podemos dar esse objetivo por perdido?
O salário mínimo é uma opção política, que obviamente deve ter em conta a evolução da economia. Qualquer subida do salário mínimo, com a diminuição da procura — por exemplo, no setor da restauração e do turismo –, levaria à falência de um número ainda maior de empresas, sem dúvida nenhuma. É uma opção política. Não tenho dúvidas de que os objetivos que tinham sido anunciados agora têm de ser revistos, porque o emprego também virou.
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“Plano de Costa Silva não define prioridades nem mexe com interesses instalados”, diz Cerejeira
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