Como pode o Estado ter mais camas dos privados? A lei dá três soluções

Já são 1.049 camas que o setor privado na saúde disponibilizou ao SNS, mas o Governo não descarta hipótese de uma requisição civil. Como pode o Estado ter mais camas do privado?

Nos últimos dois dias, o chefe do Executivo, António Costa alertou: a requisição civil no setor da saúde “será usada, se e quando necessário”, sublinhando, porém, que o Governo privilegia as soluções consensuais e acordos com os hospitais. Segundo apurou o ECO, dados atualizados desta quarta-feira, já são 1.049 as camas que o setor privado na saúde disponibilizou ao SNS. Sendo que, desse número, 160 são para doentes Covid e 889 não Covid.

Todos os dias tem-se vindo a alargar o número de entidades, quer do setor social, quer do setor privado, que têm vindo a colaborar nesta campanha contra a Covid e no apoio ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Até agora não tivemos nenhuma situação em que não houvesse uma alternativa à requisição”, disse o primeiro-ministro. Também Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a admitir que a requisição civil de meios de saúde privados é uma hipótese, se necessário.

A ministra da Saúde falou, na segunda-feira, na requisição civil como uma hipótese a ponderar, mas garantindo que existem “vários convénios assinados na região Norte e na região Centro e estão negociações em curso para a utilização de novas capacidades na região de Lisboa e Vale do Tejo”. E que aumentam de dia para dia.

Mas, afinal, o que distingue os acordos da requisição civil?

A requisição por utilidade pública — prevista na Constituição (art. 62º, n.º 2) e no Código das Expropriações — “pode ter lugar em caso de urgente necessidade e sempre que o justifique o interesse público e nacional, pelo que, em boa verdade, não carece da declaração prévia do estado de emergência”, explica Pedro Melo, sócio da Miranda Advogados.

Trata-se de um ato administrativo que pode incidir sobre o uso de bens imóveis ou móveis, o que inclui, entre outros, “os estabelecimentos hospitalares detidos por entidades privadas”, como é o caso. Este ato deve ser precedido de uma Resolução do Conselho de Ministros e depois de uma Portaria do membro do Governo responsável pela área em questão.

“Esta portaria estabelece todos os elementos essenciais da requisição, como sejam, a identificação dos bens, o tempo previsível do seu uso e o montante mínimo da indemnização a ser liquidada aos particulares”, explica o mesmo advogado. Por regra, a requisição não deve exceder o prazo de um ano.

Se estiver em causa uma requisição civil, tout court, prevista no decreto-lei 637/74, é a título excecional, mas sem que seja preciso vigorar um estado de emergência, como o que agora vivemos, portanto, “é um diploma que se pode aplicar num plano de normalidade, permite que sejam requisitados serviços e/ou pessoas, ou ainda imposta a cedência de bens móveis. Trata-se de um diploma muito relevante e que tem sido utilizado, sobretudo, em casos de violação ou de iminência de violação de serviços mínimos no contexto de greves. Sucedeu, recentemente, com a requisição civil de enfermeiros e de motoristas de matérias perigosas (em 2019)”, diz o mesmo advogado.

Há ainda outra possibilidade, “e que me parece a mais adequada no contexto do caso concreto: a aplicação da Lei de Bases da Saúde, pois, a Base 34 (desta Lei) permite à Ministra da Saúde requisitar profissionais de saúde e estabelecimentos de saúde do setor privado e do setor social”.

A contrapartida devida

“A solução de o Estado recorrer à celebração de acordos com hospitais privados implicará o pagamento pelo Estado da contrapartida financeira que for estipulada pelas partes, no acordo celebrado”; explica o advogado da Serra Lopes, Cortes Martins, Diogo Nogueira Gaspar.

“A hipótese de recorrer à requisição civil contempla também implicações financeiras para o Estado. Relativamente aos profissionais de saúde ser-lhes-á devido o vencimento ou salário decorrente do respetivo contrato de trabalho (artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 637/74, de 20 de novembro), cujo pagamento será suportado pelo Estado”, concluiu.

Em caso de o médico contrair, no exercício da sua atividade, Covid-19, o enquadramento é o mesmo quer o médico preste a sua atividade normalmente, ao serviço da sua entidade empregadora, ou no contexto de uma requisição civil.

“No caso de um médico contrair Covid-19 no exercício das suas funções (quer com contrato de trabalho em funções públicas, que com contrato individual de trabalho nos termos do Código de Trabalho, quer seja trabalhador independente), considera-se perante uma doença profissional, estando, inclusivamente dispensado de fazer prova de que a doença Covid-19 é uma consequência direta da atividade exercida, tendo direito a um subsídio de doença profissional no valor de 100% da remuneração de referência, suportado pela Segurança Social, pago desde o primeiro dia”, explica o mesmo advogado.

Assim sendo, “o Governo tem ao seu dispor vários mecanismos legais para mobilizar profissionais de saúde e estabelecimentos de saúde privados ou do setor social a fim de combater os efeitos desta pandemia”, explica Pedro Melo, sócio da Miranda Advogados. “Naturalmente, deverá fazê-lo de forma proporcionada, ou seja, na exata medida do necessário, e pagar uma compensação aos privados que fiquem sujeitos a este tipo de determinação unilateral da parte do Estado“. Mas parece-me “francamente preferível que seja celebrado um acordo ou vários acordos com o setor privado e, se assim for, os valores a pagar serão os valores que forem convencionados entre as partes”.

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