Da “linha vermelha” aos juros abaixo de zero, mesmo com a dívida em recorde
Há 10 anos, José Sócrates anunciava o pedido de ajuda externa. Desde então, Portugal reconquistou os mercados e as agências de rating, mas não se livrou dos riscos da elevada dívida.
“O país foi irresponsavelmente empurrado para uma situação muito difícil nos mercados financeiros“. O ministro das Finanças Fernando Teixeira dos Santos já tinha dito, ao Jornal de Negócios, que a situação era difícil e que entendia ser “necessário recorrer aos mecanismos de financiamento disponíveis no quadro europeu”. A decisão de chamar a troika precipitou-se assim e, poucas horas depois, o primeiro-ministro José Sócrates falava ao país para o confirmar. Foi há 10 anos que Portugal pediu o resgate financeiro e, a braços com uma nova crise, agora provocada por uma pandemia, vive uma situação completamente diferente, mas não isenta de riscos.
A crise financeira global já tinha levado dois países — Grécia e Irlanda — a pedirem ajuda externa, enquanto Portugal sofria um agravamento das taxas juro que à medida que os investidores perdiam a confiança no país. Ainda assim continuava a financiar-se, a custo. Teixeira dos Santos tinha delineado, no final de 2010, uma “linha vermelha”: juros da dívida a 10 anos acima de 7% significariam que o país teria de chamar a troika.
Essa marca já tinha sido ultrapassada nos mercados secundários e, em fevereiro de 2011, o IGCP emitia 3.500 milhões de euros a 10 anos, com uma taxa de 6,7%. No mês seguinte já só viria a ser possível colocar obrigações com maturidades muito inferiores, mas juros não muito diferentes. “A procura externa é bem menor e as taxas refletem o agravamento, sem precedentes, registado nas últimas semanas em virtude do aumento da incerteza que paira sobre o país“, justificava Teixeira dos Santos.
À crise global juntava-se o chumbo no Parlamento do programa de estabilidade e crescimento de Sócrates, que lançava uma crise política. “Os mercados, através das taxas de juro, mostravam cada vez mais receio que Portugal entrasse em incumprimento. Os problemas de base levaram aquela situação”, lembra Filipe Garcia, rejeitando a narrativa de que os mercados é que forçaram o pedido.
"A determinada altura não é só quanto é que tem de se pagar, mas sim não ter quem empreste. Chegamos a um ponto em que era inevitável Portugal pedir ajuda, com impacto que isso tem para os bancos nacionais.”
O economista e presidente da IMF – Informação de Mercados Financeiros considera que se tratou de uma acumulação de situações e indicadores, nomeadamente os pedidos já feitos pela Irlanda e Grécia, o consenso de que não poderia haver mais resgates na Europa sem perdas para os países e os próprios juros da dívida portuguesa. “As próprias taxas começaram a ser incomportáveis. E depois uma noção de perceção de que teria de acontecer. Não foi uma surpresa“, conta.
“Não era viável”, concorda Filipe Silva, diretor de investimentos do Banco Carregosa, para quem também era “expectável” que o pedido fosse feito. “A determinada altura não é só quanto é que tem de se pagar, mas sim não ter quem empreste. Chegamos a um ponto em que era inevitável Portugal pedir ajuda, com impacto que isso tem para os bancos nacionais”, diz, sublinhando o efeito spill-over da falência do Lehman Brothers nos EUA, em 2008, para o sistema financeiro global, gerando a crise das dívidas soberanas na Europa.
Da austeridade à reconquista do rating
A troika chegou assim, pela terceira vez, a Portugal e com ela trouxe um cheque de 78 mil milhões de euros, acompanhado por uma série de imposições que se consubstanciaram em políticas de austeridade num novo governo já sob a liderança de Pedro Passos Coelho, que chegaria ao poder em junho de 2011.
Todo o processo foi sendo acompanhado de perto pelas agências rating, que começaram ainda em 2009 a cortar a avaliação que faziam a Portugal à medida que a crise se tornava mais evidente e que o então governo revia em alta as projeções para o défice e para a dívida (que não parava de engordar para preencher o buraco nas contas públicas).
Em julho de 2011, a Moody’s retirou a Portugal o rating de qualidade, em novembro foi a vez da Fitch atirar o país para o “lixo” e, em janeiro de 2012, da Standard & Poors. A avaliação das agências de rating agravou ainda mais os receios e, mesmo com a troika já em Portugal, a yield das obrigações a 10 anos chegaria ao máximo de sempre de 17,36% em janeiro de 2012.
Na Europa, Portugal não era uma preocupação, mas outros países começaram a sê-lo, colocando em causa o próprio euro e, nesse verão, o então presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi fazia o seu famoso discurso: faria tudo o que fosse preciso para salvar o euro. “Há muita perceção de que Portugal teve azar porque foi tardio, mas eu penso que foi quando pode ser. A decisão do BCE naquela altura foi feita num estado de necessidade. Não era defendida pela unanimidade da Zona Euro. Não era consensual e só foi possível porque já estavam na calha resgates que colocavam em causa a própria Zona Euro”, considera Garcia.
O discurso viria a ganhar forma num mega programa de compra de dívida pública e privada. Para ser incluído, era preciso ter rating de qualidade uma das principais agências, mas havia uma quarta — mais pequena e canadiana –, a DBRS, que ainda mantinha essa classificação sobre Portugal e acabou por permitir que o país fosse incluído na rede de segurança no BCE.
Há muita perceção de que Portugal teve azar porque foi tardio, mas eu penso que foi quando pode ser. A decisão do BCE naquela altura foi feita num estado de necessidade. Não era defendida pela unanimidade da Zona Euro. Não era consensual.
Os anos seguintes foram de austeridade e reequilíbrio nas contas públicas, que culminaram em abril de 2014 na primeira ida ao mercado depois do resgate. O sucesso da emissão levava o país a uma “saída limpa” do programa de resgate financeiro no mês seguinte, mas só três anos consegue sair dos Procedimentos por Défices Excessivos já com novo governo socialista, liderado por António Costa e com Mário Centeno nas Finanças. Era esse o passo necessário para reconquistar a confiança das agências de rating, o que se concretizou em outubro de 2018.
À disciplina orçamental — que levou o país, em 2019, a alcançar o primeiro excedente orçamental em democracia –, aliou-se o impacto da política monetária do BCE nos mercados. Os programas de compra de dívida alargaram-se (colocando o BCE como um dos grandes compradores de obrigações no mercado) e foi a chave para manter os juros das dívidas soberanas contidas. No mercado primário e secundário, as yields de Portugal caíram a pique.
A poupança com juros, a menor necessidade de responder ao buraco nas contas públicas e o crescimento do PIB levaram a dívida pública portuguesa a reduzir-se de 132,9% no pico (da anterior crise) de 2014 para 116,8% em 2019. Em simultâneo, o país aproveitou a baixa dos juros para ir ao mercado buscar dinheiro mais barato e reembolsar de forma antecipada o empréstimo mais caro da troika: primeiro o do Fundo Monetário Internacional (FMI), que foi pago a 100%, e depois a dívida aos credores europeus, que foi reembolsada apenas numa pequena parte.
Juro foi de 17,4% a -0,052% em menos de uma década
Fonte: Reuters
Política monetária e orçamental unem-se na pandemia
A estratégia teve de ser interrompida pela pandemia. Os juros voltaram a agravar e Portugal paga mais de 1% para emitir dívida a 10 anos pela primeira vez em quase um ano, mas desta vez o BCE é mais rápido. A sucessora de Draghi, Christine Lagarde, apressou-se a acalmar os mercados, lançando um programa ainda maior de compra de dívida só dedicado a combater o impacto da pandemia (sendo que os restantes continuariam a decorrer).
À rápida resposta do BCE, aliou-se uma reação (um pouco menos, mas também célere) dos governos sobre a política orçamental. “Já não estamos a falar de problemas localizados para haver a noção que o BCE e o Eurogrupo vão lutar para manter o euro. É uma mistura entre solidariedade e subsidiariedade”, diz o presidente da IMF, que considera que Portugal poderia ter feito mais — especialmente ao nível das reformas estruturais — durante o período da troika, o que lhe teria permitido chegar mais bem preparado a esta crise.
As regras europeias que obrigam os países a cumprirem tetos máximos de 3% do défice e 60% da dívida pública face ao PIB foram suspensos, incentivando governos a endividarem-se para responder à pandemia. Até porque o BCE garantiria os custos controlados. Os juros das dívidas na Zona Euro afundaram de tal forma que Portugal chegou mesmo a emitir dívida a 10 anos com uma yield abaixo de 0%. A dívida atingiu o recorde de 133,6% em 2020 e o défice os 5,4%.
“Portugal não é agora assim tão diferente do país que era em 2011. Esta panaceia dos juros baixos e da liquidez abundante é que tem permitido aos governos não terem de fazer reformas estruturais“, considera Filipe Garcia, alertando que “bastaria que as taxas subissem dois pontos percentuais — que não seria escândalo nenhum em juros tendo em conta o que já pagámos — e a fatura ia disparar. É evidente que temos uma situação de vulnerabilidade”.
O economista alerta que, apesar de não se discutir a dívida agora, daqui a dois anos, quando alguns países estiverem a crescer mais que outros, poderá não haver consenso sobre o tema, sublinhando a incerteza face às próximas eleições num dos países com maior peso no processo de decisão, a Alemanha.
Filipe Silva concorda que é o banco central o principal responsável pelos baixos juros e ambos os analistas esperam que assim se mantenham. Uma eventual subida nos juros da dívida de Portugal só deverá ser causada por um agravamento generalizado e, mesmo assim, o spread face à Alemanha não se deverá alargar. Quanto ao risco para Portugal, o diretor de investimentos do Banco Carregosa não exclui a possibilidade de a instituição liderada por Christine Lagarde continuar a reinvestir sucessivamente a dívida que atinge a maturidade impedindo que o prazo seja realmente atingido. “É preciso saber se vamos ter de pagar essa dívida ao BCE ou não. E aqui o facto de termos todos esse problema acaba por ser positivo para Portugal”, diz.
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