Em entrevista ao ECO, o diretor-geral da Dell Portugal falou da fusão com a EMC, revelou detalhes da nova estrutura do grupo no país e criticou um Orçamento do Estado que "penaliza todos sem exceção".
Está feito. A multinacional Dell comprou a empresa norte-americana EMC, num negócio que custou 61,6 mil milhões de euros (67 mil milhões de dólares) aos cofres da companhia. A fusão foi concluída no início de setembro, mas em Portugal ainda não está tudo encerrado para estas empresas de tecnologia. Desde logo, é preciso escolher quem vai liderar a Dell Technologies DVMT 0,00% em Portugal, o grupo nascido desta aquisição multimilionária.
Gonçalo Ferreira é quem encabeça a Dell Portugal desde setembro de 2014. O diretor-geral da Dell aceitou falar com o ECO sobre a fusão Dell/EMC, a organização no pós-negócio, o estado do setor, a concorrência, o futuro e até o Orçamento do Estado. E pelo meio, numa altura em que se espera saber quem encabeçará o grupo no mercado português, revelou que a administração “até pode evoluir para uma estrutura bicéfala”. Leia — e oiça — a entrevista.
1. A fusão Dell/EMC
Acompanhou todo o processo de fusão da Dell com a EMC. Porquê a EMC? Porque é que adquiriram a empresa?Não é uma coisa assim tão estranha, como já vi ser dito. A Dell, há uns anos, tinha uma parceria que, aliás, aumentou em muito os resultados da Dell e da própria EMC, quando fabricávamos alguns equipamentos na EMC. E foi uma parceria de sucesso. Havia muita proximidade entre as empresas. Muitos dos produtos que a EMC forneceu ao longo destes anos, embora tenhamos sido “concorrentes”, traziam muita tecnologia nossa lá dentro. E até mesmo noutras companhias, como por exemplo a VMware. Muita da tecnologia era desenvolvida sobre plataformas nossas. Estou convencido de que nos Estados Unidos, onde as empresas estão sediadas, também devia haver muito mais proximidade do que propriamente se falou.
Havia clientes comuns?Não há muitos clientes comuns. Varia muito de país para país, mas o overlap de clientes é muito baixo. E onde estávamos muitas vezes com os mesmos clientes, estávamos em áreas distintas e hoje podemos fazer um upsell ou aproveitar mais mercado dentro desses próprios clientes. Quem olhar para o estudo da fusão, verá que o plano passa por, depois de as duas empresas estarem juntas, formarmos uma empresa que não tenha o dobro do tamanho, mas que ainda vá para além disso.
Não, não. A Dell é uma empresa muito mal conhecida, às vezes, no mundo fora das TI [Tecnologias da Informação]. E até mesmo dentro das TI. A Dell não é uma empresa que vende PC’s. Não é esse o nosso foco há larguíssimos anos. A Dell é uma empresa muito mais completa e há uma complementaridade entre as duas empresas. Falou-se muito de outros nomes para adquirir a EMC nos últimos tempos…
... como a Oracle.Por acaso a Oracle nem foi das empresas que mais ouvi. Falou-se muito da HP. Até ouvi falar da Cisco, pois havia parcerias. É claro que ninguém estava à espera. Mas não é assim tão estranho quanto isso. Agora, o overlap de clientes é, de facto, curto.
Os 67 mil milhões de dólares que a Dell pagou pela EMC foi um valor justo?Os números dizem que sim. Só os resultados do primeiro trimestre, já após o anúncio da fusão, o cash flow que foi gerado foi muito acima do esperado. E as ações de algumas das empresas que foram adquiridas já se valorizaram muito mais. Portanto, a continuar a este ritmo, se calhar a fatura vai ser paga até muito antes do que se pensou.
O Gonçalo está na Dell desde 2006, assumiu a direção em 2014, e acompanhou desenrolar deste processo todo. Desde os rumores, desde que foi confirmado...A Dell é uma empresa muito mal conhecida no mundo fora das TI. E até mesmo dentro das TI. A Dell não é uma empresa que vende PC’s.
Sim, sim. Por acaso os rumores foram muito curtos. Os rumores duraram para aí um mês. Concretizou-se logo a seguir.
Mas acompanhou desde esse tempo, até agora que se concluiu o processo. Como é que foi? Quais foram as principais dificuldades?Primeiro não me surpreendeu. Quero dizer… surpreendeu, porque é sempre uma surpresa. Como todas as vinte e tal empresas que a Dell adquiriu nos últimos dois anos e tal, é sempre uma surpresa. Mais uma. Mais esta. Nunca se sabe.
Quando é que soube, já agora?Foi pouco antes de ter sido comunicado. Praticamente na mesma altura. Aliás, dentro da Dell até se diz que, para além de um núcleo muito reduzido de pessoas que se contam pelos dedos de uma mão, ninguém sabia que isto ia ser anunciado. Praticamente, soube na altura em que todos soubemos. Agora, o que sempre se soube na Dell é a política de aquisições que tem vindo a ser feita nos últimos dois ou três anos. Foram mais de vinte empresas e há muito tempo que se falava que poderia vir alguma coisa de dimensão maior para as mais variadas áreas. Por acaso, o nome da EMC não vinha nas nossas conversas habituais por uma razão simples: porque já esteve mais perto no passado e teria sido mais barato. Mas só por isso. E depois porque também se perderam outras oportunidades de aquisição de outras empresas que, na opinião de algumas pessoas, também teriam sido benéficas para a Dell a um preço bastante bom. Se calhar, na altura, a empresa não estava virada para isso.
Quais foram então as dificuldades? A filial portuguesa teve alguma palavra a dar no meio desse processo todo?Não, estas coisas são sempre decididas centralmente.
Mas aqui em Portugal houve algum aspeto que vos tenha custado mais neste processo?Não, não, para nós é positivo e penso que, do lado da ex-EMC, vamos chamar-lhe assim, também. Passamos a ser ainda mais líderes de mercado nalgumas áreas onde já éramos. Portanto, só vejo mais-valias. A nossa presença no mercado português cresce. Mas a nossa economia na área das TI é muito pequena comparado com a maioria dos países de dimensão idêntica a Portugal em área e número de habitantes. Isto é uma mais-valia, porque estamos um bocadinho mais no mapa. Ganhamos uma escala totalmente diferente. Na prática, alguma coisa que nos tenha custado, não houve. Só vemos coisas positivas. Claro que há um trabalho de integração e há um novo GTM [Go To Market] que tem que ser preparado.
Como é que esta fusão se espelha na Dell Portugal? Quais são as implicações que esta fusão tem?Para já, desde o dia um (que para nós foi o dia 7 de setembro), passámos a trabalhar como uma empresa única. Depois, estamos a preparar um approach ao mercado país a país, região a região, de acordo com as indicações que recebemos da casa mãe sobre como devemos organizar-nos.
E para o país isto terá alguma mais valia?Acho que sim. É mais investimento em Portugal. O mercado português é muito pequeno proporcionalmente aos países de idêntica dimensão. E isto é um problema que, estou convencido, já não vai ser resolvido na minha geração. Mas isso é o tamanho do nosso mercado, e é o que é: demora muitos anos a mudar. Até acho que desinvestir em Portugal nesta empresa não faz sentido, porque o nosso mercado hoje é muito maior. Embora essas hipóteses estejam sempre em cima da mesa… Aliás, a Dell já era a única empresa que tinha uma linha de produtos desde a área client até à área enterprise de A a Z completa que mais ninguém no mundo tem. Com este reforço, ainda reforçamos essa posição.
"A continuar a este ritmo, se calhar a fatura [da aquisição da EMC] vai ser paga até muito antes do que se pensou.”
2. A organização
A nível da administração, vai haver alguma alteração? A Dell Technologies (empresa que resultou da fusão Dell/EMC) vai ter presença cá em Portugal como grupo? Vai ter um CEO?Vai, vai. Na Dell Technologies dos Estados Unidos já foi comunicado como é que vai funcionar. Localmente, isso está a ser preparado e em breve será comunicado. Vamos aguardar por isso, para não me estar a adiantar.
Consegue adiantar um nome?Para já não. Mas não antevejo… primeiro, o rumor de que se falou de que iriam haver muitas saídas, não digo que isso possa acontecer…
Mas aconteceu.Não, não aconteceu.
Aconteceu esta semana (18 de outubro). Pelo menos 50 trabalhadores foram despedidos em Cork, na Irlanda.Por acaso desconhecia isso. Mas não sei quais são as razões. Desconheço essa notícia.
À revista Bit, na semana passada (3 de outubro), considerou eventuais despedimentos como 'especulativos'. Mas de facto aconteceram.Bem, numa empresa de 170 mil pessoas, quando se fundem, é assim… há muitos lugares que se vão repetir. Muitos lugares administrativos, antevejo eu.
Entende a pergunta, que é relevante no nosso país.Não li a notícia em Cork e desconhecia, para ser honesto. Mas a Irlanda é um país que tinha fábricas da Dell e da EMC. Provavelmente não faz sentido duplicarmos a nossa presença nesse país.
Não sei. É de relembrar que somos agora uma empresa com 180 mil, ou 170 mil pessoas. Portanto, mantenho assim. O que neste momento, daquilo que posso falar e conheço, daquilo que é o go to market que estamos a preparar, não encaixa entrarmos em despedimentos em massa. E depois relembro mais uma vez: a Dell, neste momento, ainda está num processo de contratação massiva de pessoas que se iniciou no ano fiscal de 2016 e 2017, onde estamos e temos instruções para não alterar o headcount para baixo.
Estou a falar de todo o mundo, inclusive Portugal. Em Portugal essa posição foi reforçada e foi mantida. Portanto, não faz sentido nenhum na minha cabeça, até porque estas coisas são decididas com muita antecedência, que agora venham dizer que, afinal, tudo aquilo que fizemos nos últimos seis meses é para destruir. Não faz sentido, atendendo àquilo que é a estratégia da empresa. Com as empresas que levitam à nossa volta, e contando com algumas pessoas e serviços que usam o nosso badge, somos mais de 100 pessoas. Fundidos, as duas empresas em conjunto rondam isso. Mas temos um universo de dois mil parceiros que trabalham para cobrir todo o mercado. Aí não antevejo alterações. Até antevejo que se venham a juntar muitos mais.
Portanto, a política é para continuar a contratar?Não, a política, o que foi desenhado de aumento de headcount para a Dell, foi mantido e não foi parado há seis meses nem quando isto foi comunicado. Foi mantido e foi acelerado em relação às estruturas que existiam nas empresas. Mas, claro, não estou a falar de funções administrativas.
Mas é para continuar?Isso é para manter, porque é um plano desenhado até ao final deste ano fiscal.
Então não há muita redundância de serviços entre a EMC e Dell em Portugal?Aí falo mais dos países que conheço. Por exemplo, no nosso país não acho que exista. Mas pode haver um entendimento internacional diferente. Nestas coisas é mesmo assim. Mas não acho que exista, sinceramente. Agora, se em algum serviço administrativo em específico existe ou não, veremos. E aí são coisas que vêm depois, mas não têm a ver com a fusão da empresa por decidir reduzir o headcount em 10, 15, 20% ou o que for.
Na Dell, quais são as áreas que estão mais carenciadas a nível de massa crítica - de trabalhadores, de profissionais?Na Dell não temos grandes carências.
Mas se é para contratar, se é para manter essa política...Não. Agora não prevemos. Estamos a trabalhar num novo go to market das empresas conjuntas, vamos ver o que vai acontecer. O que digo é que não faz sentido, atendendo ao que aconteceu, irmos por uma política de redução desse headcount. Não temos carências.
Mas se é para manter uma política de contratação, implica que haja fluxo de entrada de trabalhadores. E a minha pergunta é: para onde é que eles vão? Quais são as áreas dispostas a acolher?Num país como Portugal, andamos sempre nas áreas de engenharia e áreas comerciais. Essas é que são as áreas que nos fazem falta para suprir as necessidades que existem no nosso mercado. Tudo o que é desenvolvimento de produto, isso está fora de Portugal. Não passa por aqui, embora existam pessoas portuguesas a trabalhar nessas áreas e existam pessoas que trabalham em Portugal para outros mercados também.
A Dell faz hoje uma microgestão de mercados país a país, que obriga a um conjunto de pessoas que levitem à volta destas áreas para alimentar, com a informação que precisamos, toda a nossa estratégia, que é revista quase à semana para estarmos sempre adaptados às necessidades do mercado e podermos reagir rapidamente. E depois também no mercado em que estamos, que é um mercado de desenvolvimento muito rápido, o que é verdade hoje, amanhã já não é.
Voltando atrás, quem é que está na calha para ser a cabeça, o líder desta Dell Technologies que vai surgir agora. Tendo em conta que o processo foi concluído, já haverá um nome..."No nosso país não acho que exista [redundância de serviços entre a Dell e a EMC]. Mas pode haver um entendimento internacional diferente. Nestas coisas é mesmo assim. Mas não acho que exista, sinceramente.”
Isso vou deixar que seja comunicado na altura certa. Não vou dizer nada sobre isso. Não vou dizer isso porque, primeiro, temos os timings dentro da nossa empresa. Não os posso ultrapassar. E, em segundo, também porque devem ser comunicados pelas pessoas e entidades certas. É só mais por isso.
Não digo isso. O que digo é que até podemos evoluir para uma estrutura bicéfala. E isso até pode estar em cima da mesa.
E está?Pode estar. Não sei. Vamos ver.
Até podemos evoluir para uma estrutura bicéfala [de liderança da Dell Technologies]. Isso até pode estar em cima da mesa.
3. O negócio
Com a aquisição da EMC, a Dell também espera reforçar a aposta na cloud, que é um negócio que está em ascensão.Sim, já tivemos uma aposta muito forte e vamos mantê-la. Portugal foi dos primeiros países do universo Dell a ter oferta cloud. E quando falo de oferta cloud, é oferta de produto e serviços adaptados: software as a service, temos dois data centers no nosso país, como oferta múltipla de serviços temos um portal onde os clientes e parceiros podem ir e podem solicitar à Dell o mais variado tipo de produtos e de serviços nessa cloud. Depois, em termos de produto, a EMC também tinha um conjunto de produtos que atuam nessa área, que vem reforçar essa já muito forte oferta que existia. Não vamos agora criar uma nova oferta de serviços que não tínhamos. Já era fortíssimo — talvez não muito conhecido.
Como é que o Gonçalo vê o evoluir deste setor?A nível global, vai ser sempre um setor de liderança e de grande inovação. Não há volta a dar e isso já se percebeu que não se vai alterar. Vai continuar a ser um dos principais setores da economia, porque toda a economia é suportada em sistemas de informação. E se a isso juntarmos o que é a vida das pessoas hoje, todas têm um telefone que gera informação e redes sociais. Não consigo imaginar o mundo sem um investimento massivo na área das tecnologias da informação. Para a economia, vai ser sempre um dos setores mais fortes.
A nível tecnológico, existe alguma nova aposta da Dell na calha?Existe. A informação que hoje é gerada é muito importante. Hoje fala-se muito da IoT [Internet das Coisas]. Não é preciso explicar: a Dell acabou de comprar a empresa líder em armazenamento de informação e já se percebeu que vamos estar na crista da onda nos próximos anos. A Dell já tinha uma oferta muito grande em IoT, com produtos e soluções, e temos muitos desenvolvimentos nessa área, onde somos uma empresa líder também. Depois, não vamos largar também os mercados tradicionais que, para nós, são importantes: o mercado dos computadores pessoais e tudo o mais, porque há uma grande mais-valia, há uma grande evolução nesses mercados, e não é só isso. A utilização desse tipo de devices são os grandes geradores de informação. Era como dizia o nosso chairman: não vamos estar no mercado de alguns componentes pessoais, mas vamos estar no mercado do alimentar esses tipos de devices com tecnologia nossa.
4. A concorrência
A IBM continua a ser um dos vossos principais concorrentes. A aposta deles tem sido ultimamente, por aquilo que se percebe, mais na computação cognitiva. Da parte da Dell, têm algum plano para isso, para também entrarem nessa área do machine learning, ou é uma área que está ocupada e não veem aí uma oportunidade?Não, nós temos muitas áreas… a IBM está mais virada… agora vou dar uma opinião pessoal: não existe uma métrica da Dell em relação à IBM, ou algum dos nossos outros concorrentes. Estamos preocupados mais connosco do que com os outros. Mas, pessoalmente, acho que a IBM é uma empresa com interesse noutro tipo de mercados.
A pergunta era se vocês estão interessados nesses mercados também.Temos interesse… mas para nós não é uma novidade. A Dell já trabalha nessas áreas e vamos também investir. Agora, a IBM é uma empresa com um rumo totalmente diferente do da Dell, o que não quer dizer que não estejam ambos certos. A IBM procura mercados e economias diferentes das nossas. Há áreas onde, obviamente, chocamos e concorremos. Mas a maioria das áreas onde até concorríamos, a IBM desfez-se delas e aquelas que são as áreas estratégicas onde a IBM tem investido, a Dell também está. Também com os nossos secretismos… não vou abrir o jogo todo. Mas essa área também é interessante para nós.
Investir e continuar investimentos que temos.
Mas vão mesmo fazer novos investimentos, ou é tudo na lógica de continuar?Sim, sim. A Dell, se virem o que investe hoje em RnD [Research and Development], está ao nível dessas empresas. Estamos a pôr dinheiro nessas coisas. Há empresas maiores do que nós que investem menos de metade do que investimos, neste momento, em RnD. Vamos, seguramente, continuar a apostar.
Pessoalmente, acho que a IBM é uma empresa com interesse noutro tipo de mercados.
5. O futuro
Como é que imagina o mundo daqui a dez anos?Mais tecnológico ainda. Há quem diga que as pessoas tendem a isolar-se na tecnologia. Não concordo muito com isso. As tecnologias ajudam a aproximar. E tenho um exemplo: se olharem para as pessoas mais idosas, a tecnologia colocou-as mais no mundo — e não menos. Portanto, não sou assim tão… pessimista não é bem a palavra certa, mas achar que há uma tendência para o isolamento das pessoas agarradas ao seu device. Imagino um mundo onde tudo o que fazemos é mais estudado e mais controlado. Aliás, isso já é uma coisa que se faz hoje, as pessoas é que não se apercebem. Tudo o que acontece, por exemplo, ao nível empresarial, já foi estudado muito antes. Por isso é que se tomam as decisões. O que vai acontecer daqui a dez anos é que o nível de informação que vamos receber sobre tudo o que fazemos como consumidores, nas empresas, na vida, vai ter uma informação de muito maior qualidade para podermos tomar decisões. Provavelmente, imagino um mundo onde o approuch da economia aos consumidores finais é muito mais segmentado e é muito mais estudado e adaptado.
Em dezembro do ano passado, o Gonçalo disse ao Expresso que o panorama dos negócios em Portugal estava muito longe daquilo em que devia e poderia estar. Cerca de um ano depois, estamos melhor ou pior?Digo o mesmo. Estamos igual… estamos para pior. Por uma razão simples: ainda agora acabei de ver os resultados do terceiro trimestre em Portugal e o nosso mercado de microinformática caiu mais 20% em relação ao ano passado.
Como é que justifica essa queda?Com tudo. Com a nossa economia débil, com os investimentos que têm sido feitos no nosso país e com alguns desinvestimentos de muitas empresas no nosso país. Esta é que é a realidade.
É uma questão política, económica... O que é?É por muitas razões e mais uma vez entro na opinião pessoal: é difícil alguém investir no nosso país quando não se sabe o que é que vai acontecer no dia a seguir. Falo de impostos, de política fiscal, das estratégias que vão ser adotadas, de política de salários. Depois, falo da Justiça. Por exemplo, qualquer processo que tenhamos demora muito tempo a resolver em Portugal. Há muita burocracia.
A área tecnológica é das áreas que mais tem ajudado a desenvolver isto. Mas sentimos muita paragem. E, depois, a nossa economia não suporta muitos dos investimentos que se calhar devíamos fazer. É aquilo que digo: se compararmos Portugal com os países da Europa que têm o número de habitantes semelhante ao de Portugal, o nosso mercado é abismalmente mais pequeno na área das TI. A Irlanda, em duas semanas, produz aquilo que nós produzimos aqui num trimestre. A Holanda produz numa semana o que produzimos em Portugal num trimestre. A Bélgica produz em duas ou três semanas o que produzimos num trimestre. Os países nórdicos, tirando a Suécia, que é um pouco maior, são a mesma coisa.
Isso é defeito ou feitio do país? É por sermos 'só' dez milhões?Não, porque esses países são todos mais pequenos. A Bélgica tem dez milhões. A República Checa é um mercado quatro vezes maior do que o português. São vários problemas. Este, que referi, é um problema também porque Portugal deixou-se atrasar muito noutras décadas, nos anos 40, 30. E isto está estudado economicamente. Os ciclos de recuperação desses atrasos são muito extensos. Quando digo que Portugal devia estar noutro patamar, é porque temos todas as condições para estarmos. Esta é que é a parte que já é difícil de explicar. Temos todas as condições, temos bons recursos humanos, temos boas escolas de formação, os nossos recursos são amplamente reconhecidos lá fora, ta l como a nossa capacidade de trabalho e temos um mercado muito, muito curto. Devia ser muito maior. Por isso digo que não estamos no sítio certo. Devíamos ser um mercado muito maior, com uma capacidade de atração totalmente diferente. A nossa periferia não explica tudo, porque a Irlanda é uma ilha, os países nórdicos estão noutra ponta da Europa…
"É difícil alguém investir no nosso país quando não se sabe o que é que vai acontecer no dia a seguir. Falo de impostos, de política fiscal, das estratégias que vão ser adotadas, de política de salários.”
6. O Orçamento
Tivemos a apresentação do Orçamento do Estado na sexta-feira (14 de outubro). Daquilo que viu, pareceram-lhe boas decisões? É um bom Orçamento?Socialmente falando, há lá algumas coisas que se calhar não deixam de fazer sentido. Mas sou muito crítico do atual Orçamento do Estado, digo-lhe já. Compreendo que para algumas pessoas, se calhar, as diferenças salariais pequeninas podem fazer uma grande diferença. E compreendo essa necessidade. Já não compreendo é a política fiscal que temos. Por exemplo, a nova carga fiscal que foi criada em Portugal seria completamente esmagada por mais 0,5% de crescimento da nossa economia. Se conseguíssemos crescer mais meio por cento para além do que está previsto no Orçamento do Estado, geraríamos muito mais dinheiro para a nossa economia do que alguns do impostos extras que estão a ser criados. Portanto, vamos continuar a sufocar em vez de investir. E não vamos sair do mesmo.
Com uma política de investimento, de atração de investimento. Por exemplo, aquilo que estava pensado para o IRC das empresas. Algumas das medidas nem têm qualquer impacto: basta que o que se pode fazer no capital social de algumas empresas e tudo mais. Bastaria mudar algumas coisas que nem teriam grande impacto para a nossa economia. E se tivéssemos capacidade de gerar mais meio por cento do nosso PIB, geraríamos muito mais dinheiro para a nossa economia do que todos os impostos novos que foram criados. Essa é só a única parte que não compreendo. Há pessoas no atual Governo que já trabalharam em estudos para desenvolver isto. Portanto, essa capacidade está lá. Não vou falar de cores políticas, não discuto isso com ninguém — há pessoas válidas em todo o lado. Mas essa é que é a parte que me perturba. Portanto, antevejo que vai ser mais do mesmo. Infelizmente para a nossa economia, mas espero que esteja enganado, sinceramente.
E isso penaliza empresas como a Dell?Se tivéssemos capacidade de gerar mais meio por cento do nosso PIB, geraríamos muito mais dinheiro para a nossa economia do que todos os impostos novos que foram criados.
Penaliza todos sem exceção. Se houver alguém que diga que não sentiu o impacto do que se passou, está a mentir. Não acredito. Obviamente que penaliza. Agora, estamos é numa área tecnológica de grande desenvolvimento, onde conseguimos não estagnar. E acabamos por empurrar um bocado a economia para a frente. Mas esta é a visão que tenho. Embora o Orçamento do Estado tenha coisas boas noutras áreas (o Orçamento do Estado não é só dinheiro), há outras ações que podem ser positivas. Mas, no geral, tenho esta visão.
Fotografia por Paula Nunes.
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Gonçalo Ferreira: “A Dell é uma empresa muito mal conhecida”
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