Sociedade de capital de risco assume um 2022 desafiante perante o abrandamento do mercado de capitais. Número de vendas de participações caiu a pique face a 2021.
Quando se esperava que depois da pandemia viesse a bonança, a inflação e a guerra na Ucrânia voltaram a trocar às voltas ao mercado de capitais e ao financiamento das startups. A cobrir as falhas de mercado desde 2012, a sociedade de capital de risco Portugal Ventures (PV) é liderada desde o início deste ano por Rui Ferreira.
O especialista em Finanças reconhece que a PV esteve prestes a concluir a venda de participadas no início do ano, mas o momento económico, com a eclosão da guerra da Ucrânia, impediu a operação. Aliás, depois de no ano passado ter tido 17 exits da sua carteira, este ano assiste-se a um forte abrandamento: apenas três.
Em entrevista ao ECO, Rui Ferreira que está a reforçar as cautelas das startups relativamente à preservação do seu capital e que a PV será cada vez mais uma mera participante em rondas de investimento, em vez de liderar as operações, sobretudo nas fases mais avançadas.
Na última década, a capital de risco pública investiu um total de 181 milhões de euros em mais de 190 empresas portuguesas, o que correspondeu a 15% de todas as transações no mercado nacional. As startups investidas pela PV criaram um total de mais de 4.100 empregos. Atualmente, o portefólio da capital de risco está avaliado em 261 milhões de euros.
O que mudou nos primeiros 10 anos da Portugal Ventures?
A criação da Portugal Ventures foi um ato de política pública muito relevante, considerando a altura em que fomos constituídos. Ganhámos massa crítica, graças à agregação de recursos públicos dispersos por todas as outras entidades fundidas. Tínhamos 26 fundos para investirem nas empresas e era necessário ir ao encontro de uma necessidade: dinamizar o ecossistema empreendedor.
Durante 2012, 2013 e 2014, muitos dos sucessos derivaram do nosso primeiro programa (Call for Entrepreneurship). Foi uma pedra no charco que mobilizou as outras capital de risco para coinvestir nas outras empresas. Também atraiu vários promotores. Muitos projetos nascentes nas áreas da tecnologia, indústria, ciências da vida e do turismo viram nas convocatórias da Portugal Ventures um efeito de sinalização junto dos outros investidores.
Na segunda fase, houve uma grande consolidação do ecossistema, o que culminou com a vinda da Web Summit para Portugal. O nosso lema — Growing Global — mostrou que havia caminhos internacionais para que houvesse condições para as nossas empresas crescerem de forma global e ambiciosa.
Na última fase, foram criadas as redes de contactos, para gerar valor. Temos cada vez mais parceiros de ignição e de investimento. Ao investirmos, estamos a dar um sinal ao mercado. É o primeiro carimbo no mercado, para depois partilharmos o risco com operadores privados.
Na pandemia, suportámos as empresas do portefólio na lógica do investimento, com o maior programa de sempre, além de iniciativas para combater falhas de mercado, em parceria com a Agência Nacional de Inovação (ANI). Criámos novos negócios em plena pandemia.
Somos uma sociedade de capital de risco pública, eminentemente com sentido de missão de procurar falhas de mercado, desenvolvemos uma rede de parceiros e já contamos com mais de 150 empresas investidas.
Foi uma coincidência o nascimento da vaga de startups de 2012 e da Portugal Ventures? Ou foi o nascimento de startups que levou à criação da Portugal Ventures?
Foi um efeito conjunto. O ecossistema empreendedor já existia mas em 2012 houve uma dupla oportunidade: do lado de startups e de empreendedores, que necessitavam de fontes de financiamento alternativas e que apenas eram proporcionadas pelo capital de risco, com a necessidade de um operador público com uma oferta de fundos disponível para investir no ecossistema.
O que há em comum entre o início da PV e a atualidade?
A base de trabalho, de sustentação e consolidação da rede de contactos. Também tivemos necessidade de lançar uma ferramenta para prestar contas ao público. O investimento de capital de risco não tem efeitos imediatos: há empresas que estão no nosso portefólio há 10 anos.
Em cerca de 10 projetos em que investimos, temos a história do 5-2-1. Dois não correm bem (investimento sem retorno), um pode ser o jackpot e ter um multiplicador interessante de investimento (de oito vezes, com a saída da OutSystems), outros cinco podem ter um retorno mínimo, que satisfaz a nossa atividade. Os outros dois “ficam em casa”: não geram rendimento ou perdas e podem ser alvo de recompras por parte dos fundadores.
Não é tempo a mais?
Nas ciências da vida, é necessário um longo período de desenvolvimento de produto e depois tem de ser gerado o retorno. É um trabalho de valorização da carteira que tem de ser feito com os nossos meios e com os próprios parceiros. Temos de dar condições às nossas empresas para poderem crescer. Sem crescerem, não têm potencial de saída.
Muitas vezes, o capital de risco não é bem sucedido porque as empresas fracassam. Há uma obrigação do Estado para a PV gerar retorno?
Não. Em cerca de cada 10 projetos em que investimos, temos a história do 5-2-1. Dois não correm bem (investimento sem retorno), um pode ser o jackpot e ter um multiplicador interessante de investimento (de oito vezes, com a saída da OutSystems), outros cinco podem ter um retorno mínimo, que satisfaz a nossa atividade. A saída tem de acontecer mas depende das condições de mercado e que haja procura para comprar as empresas. Os outros dois “ficam em casa”: não geram rendimento ou perdas e podem ser alvo de recompras por parte dos fundadores, como aconteceu com a Nata Pura [empresa de produção de pastéis de nata que recomprou posição à PV em dezembro de 2021].
A saída é sempre o nosso maior desafio. Tivemos um ano de 2021, com 17 exits. Foi o melhor ano da vida da PV, muito por feito de arrastamento e de consolidação da carteira.
Temos uma empresa na carteira cuja venda tinha sido contratualizada a 1 de fevereiro deste ano. Dia 24 de fevereiro começou a guerra na Ucrânia. Quem queria comprar a empresa abortou a operação, assim como os restantes parceiros
O ano de 2020 também tinha sido um pouco mais tremido.
Os anos anteriores também foram assim. Faz parte do ciclo da vida das capitais de risco: hoje investimos mas os resultados só vão surgir dentro de três ou cinco anos. Atualmente, estamos a gerir investimentos com até 10 anos.
Em 2022, apenas contabilizam três exits. Em 2021, houve 17. O que se passa?
Tudo depende da conjuntura. Temos uma empresa na carteira cuja venda tinha sido contratualizada a 1 de fevereiro deste ano. Dia 24 de fevereiro começou a guerra na Ucrânia. Quem queria comprar a empresa abortou a operação, assim como os restantes parceiros.
Era uma grande receita esperada pela PV?
Com certeza. Seria um exit de referência para este ano. A nossa atividade tem um fator de incerteza muito grande: as condições de mercado. Se às vezes temos de as aproveitar, como em 2021, em 2022 temos condições desafiantes. Temos várias empresas em pipeline para venda. Mas é necessário aguardar por melhores condições para as vender, gerando retornos aos nossos investidores. O momento de exit é complexo por natureza, porque é necessário alinhar interesses com os coinvestidores e com os fundadores. Pela experiência que temos, o ideal é haver um estímulo externo para os fundadores venderem tudo.
A nossa atividade tem um fator de incerteza muito grande: as condições de mercado. Se às vezes temos de as aproveitar, como em 2021, em 2022 temos condições desafiantes. Temos várias empresas em pipeline para venda. Mas é necessário aguardar por melhores condições para as vender, gerando retornos aos nossos investidores
Já vos aconteceu quererem vender posição e os fundadores estarem contra?
Já. Nesse caso, procuramos alinhamento de interesses a todo o custo. A recompra às vezes é uma saída natural do capital de risco. Pode ser faseada ao longo do tempo, mediante a geração da tesouraria da própria empresa. Temos solução para tudo, menos para quando o negócio não aguenta por condições externas. Na nossa indústria, temos muitos insucessos na carteira, que às vezes não são compensados pelos sucessos. Mas faz parte da nossa atividade: às vezes preferimos que os empreendedores tenham insucesso por fatores que não lhe são inerentes à sua atuação do que por condições de mercado.
Numa capital de risco como a PV, do Estado, há mais tranquilidade para o falhanço?
Não não, pelo contrário. Temos exatamente o mesmo princípio que qualquer privado, pois temos participantes nos nossos fundos a que temos de dar retorno. Temos 70% de investidores privados nos nossos fundos: a nossa lógica são as parcerias público-privadas, em que o nosso efeito é de alavancagem de dinheiro privado com dinheiro público. Dada a nossa natureza, temos de olhar para setores onde às vezes os privados não estão por razões de posicionamento e de política de investimento mas que pelo nosso ADN público temos de ir atrás e dinamizar.
Na pandemia, houve fundos só com dinheiro da PV?
Tínhamos um fundo dinamizado pelo Turismo de Portugal. Agora, já estamos a atrair fundos privados nacionais e internacionais para as nossas participadas. Nas próximas rondas, vamos deixar que as rondas sejam lideradas pelos privados.
Temos solução para tudo, menos para quando o negócio não aguenta por condições externas. Na nossa indústria, temos muitos insucessos na carteira, que às vezes não são compensados pelos sucessos. Mas faz parte da nossa atividade: às vezes preferimos que os empreendedores tenham insucesso por fatores que não lhe são inerentes à sua atuação do que por condições de mercado
Falava na cada vez maior importância do coinvestimento. Mas ainda poderemos rondas apenas com a participação da PV?
Em convocatórias como a Inov-ID, onde colocamos 100 mil euros por empresa, somos os únicos investidores. São empresas com um produto tecnológico brutal mas que precisam de tração e de números para atrair privados. Investidores privados não lhes faltam, mas dizem que é cedo demais. Se a coisa correr bem, a PV faz essa sinalização. Ao fim de dois anos da primeira convocatória, já temos empresas em segundas rondas de sucesso com investidores privados e que já triplicaram a valorização; outras, já seguem o seu caminho sozinhas e recompraram posição; noutros casos, ainda precisam de muita ajuda para segundas rondas.
Estamos a caminhar para uma situação em que a PV seja um mero sinalizador para outros investidores? Ou vão continuar a participar em rondas?
Temos os dois caminhos para seguir em simultâneo. Há uma determinada altura em que a capacidade da PV é limitada. Por natureza, temos de ser coinvestidores e não temos fundos com dimensão para operações de muitos milhões de euros. Nas regiões dos Açores e da Madeira, somos os únicos investidores e ainda há falhas de mercado.
Nos últimos meses, tem notado descida das valorizações das empresas?
Uma ronda existe porque a valorização é boa. A valorização depende da expectativa que qualquer investidor, para efeito de transação, atribui a um potencial investimento. Estamos sempre na lógica das técnicas de avaliação que uma capital de risco faz. Nesta matéria, estamos num ano muito importante: não há redução de valorização mas há um aguardar para que haja uma melhoria do potencial de crescimento e da valorização futura. É o equilíbrio para o melhor negócio possível: quero entrar ao menor preço possível para sair ao melhor preço possível. Às vezes, os melhores negócios de capital de risco fazem-se em alturas em que as valorizações estão mais baixas. Temos um papel importante e temos de cumprir a missão pública: as valorizações têm ser orientadas para as falhas de mercado.
Já disseram às empresas que têm de aguentar o dinheiro mais tempo do que está previsto?
Fazemos sempre isso. Na nossa indústria, temos o indicador do runway [período de gestão do capital]. Temos um painel de bordo e todos os trimestres temos de estar com uma empresa do nosso portefólio. Às vezes, quando não há esse encontro, é porque vai acontecer alguma coisa. Tentamos antecipar necessidades de ronda com alguma antecedência. Dizemos sempre aos empreendedores: não nos tragam as notícias em cima da hora. Se o dinheiro acabar amanhã, não temos capacidade para resolver. Não cometam o erro de deixar ir até ao fim a necessidade de procurar nova ronda. Não é com um estalar dos dados que isso acontecer.
Com quantos meses de antecedência conseguem precaver essa situação?
Menos do que seis meses é arriscado. Montar uma ronda demora seis a 12 meses, quando não é mais tempo. Agora, naturalmente demora mais tempo. Quanto mais restrito está o mercado, pior. Tentamos antecipar esse momento e procurar alternativas. Às vezes, os fundadores estão muito virados para outras capitais de risco e conseguimos alternativas nas nossas redes de parceiros. Por outro lado, podemos aplicar incentivos e apoios à investigação.
Estamos num ano muito importante: não há redução de valorização mas há um aguardar para que haja uma melhoria do potencial de crescimento e da valorização futura. É o equilíbrio para o melhor negócio possível: quero entrar ao menor preço possível para sair ao melhor preço possível. Às vezes, os melhores negócios de capital de risco fazem-se em alturas em que as valorizações estão mais baixas
Em que medida o Banco de Fomento ajuda-vos?
É a fonte de origem do capital dos nossos fundos, para irmos ao encontro das falhas de mercado.
Quando um exit estava previsto e não acontece, que impacto tem no vosso orçamento?
Para cada um dos nossos fundos, todos os anos apresentamos um plano de atividades e orçamento na assembleia geral, com a perspetiva de saída de cada uma das empresas do portefólio. Apresentamos sempre vários planos porque não podemos dizer que vai haver uma saída firme. Seria estarmos a enganar-nos. Quando uma saída não acontece, vamos continuar a trabalhar em conjunto com os nossos fundadores e coinvestidores para criar alternativas. Todos os semestres fazemos avaliação do portefólio.
Estarem dois anos sem presidente foi problemático na gestão da empresa?
Entre novembro de 2019 e janeiro de 2022 estivemos com apenas dois elementos no conselho de administração. Neste período, houve mais âmbito de atuação. Quando a Teresa Fiúza entrou [para vice-presidente] isso deu-nos maior capacidade de trabalho. A nossa equipa foi fantástica neste período e não aguentaríamos tanto tempo sem este apoio. O terceiro elemento da administração foi a nossa equipa, na sombra, a ajudar-nos.
Que mudanças esperam no capital de risco em Portugal e na Europa?
Temos mudanças de paradigma: no digital, vai haver maior procura por segmentos com maior escalabilidade e que possam atrair a indústria. Temos de associar isso a tendências de mercado como a sustentabilidade e as alterações climáticas. Também haverá um caminho de simplificação de processos.
Transversalmente, em Portugal, apostamos na economia azul e verde, na indústria e empresas exportadoras.
Há operadores que vão procurar cada vez mais apenas rondas de série A ou mais avançadas. Outros, vão apostar em operações mais iniciais. Também é importante potenciar saídas de empresas para recompra de posições entre capitais de risco.
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“Temos várias empresas em pipeline para venda”, diz Rui Ferreira, da Portugal Ventures
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