Há precisamente dez anos, Vítor Bento assumia a liderança do BES, substituindo Ricardo Salgado. Mas, como se veio a perceber mais tarde, já o banco estava num caminho sem retorno.
Até 13 de julho de 2014, ao longo de mais de duas décadas, Ricardo Salgado foi um dos homens mais poderosos do país, talvez até o mais poderoso. Mas onze dias bastaram para o mundo do antigo banqueiro virar do avesso. Do lugar de presidente de um dos bancos mais influentes, de repente, estava no banco de trás do carro da polícia a caminho do tribunal para ser interrogado no âmbito da megaoperação Monte Branco.
Ricardo Salgado tinha acabado de deixar o trono do poder, mas não sem antes dar luta. Enquanto pôde e como pôde. Já na porta de saída do banco tentou colocar o seu braço-direito, Amílcar Morais Pires, no comando da instituição. Fez frente ao Banco de Portugal, mas acabou por perder a batalha.
Há precisamente dez anos, a 14 de julho de 2014, outro nome emergia na história da queda do BES.
Vítor Bento assumia o leme. Mas por esta altura – e como se viria descobrir mais tarde — já o banco tinha o seu destino traçado.
Este é o terceiro episódio da série “O fim do BES, dez anos depois”, o podcast do ECO sobre os cinco dias que contam os momentos finais do BES até à derradeira medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal a 3 de agosto de 2014.
“Braço direito de Salgado? Não me desonra”
Algures em abril de 2014 Ricardo Salgado percebeu que os seus dias na liderança do BES estavam contados.
O Banco de Portugal tinha imposto a medida de ring fencing para proteger o banco dos problemas do grupo, mas também queria toda a família fora da administração. Muito contrariado, Ricardo Salgado acabou por abdicar.
E dois nomes surgiram na sua lista de sucessão, conforme contou o próprio na comissão de inquérito ao BES.
“Eu disse ao senhor governador que havia dois nomes possíveis: Morais Pires. (…) O segundo o dr. Joaquim Goes. O senhor governador disse-me que o dr. Goes gozava de alguma preferência da área da supervisão, que tinha essa qualidade, que da área da supervisão tinha grande apreço. Eu digo ao senhor governador ‘Tenho grande apreço pelo dr. Joaquim Goes’, mas que em função dos problemas que o banco e o país tinham e têm em matéria de financiamento internacional, que considerava importantíssimo que o dr. Amílcar Morais Pires pudesse ser a pessoa indicada para me substituir pelo reconhecimento que tinha no mercado internacional de capitais. E como íamos para o aumento de capital, considerava essencial que fosse o dr. Amílcar Morais Pires.”
Quem era Amílcar Morais Pires? Homem da casa, subiu a pulso na hierarquia do banco sempre ligado à área dos mercados, até entrar para a administração em 2004. Com a responsabilidade do pelouro financeiro, tornou-se num dos homens mais próximos de Ricardo Salgado.
Essa ligação representou uma bandeira vermelha para o Banco de Portugal quando se começou a discutir a sucessão no banco em 2014. Amílcar Morais Pires reconhecia essa proximidade a Ricardo Salgado.
“Há uma perceção na opinião pública que era o braço esquerdo e o braço direito. Nem me honra nem me desonra. Não havia uma questão de continuidade. Tinha plena consciência das tarefas que tinham pela frente”, disse o antigo CFO do BES na comissão de inquérito.
O convite de Ricardo Salgado a Amílcar Morais Pires surgiu num jantar realizado no dia 18 de junho. O banco acabara de concluir com sucesso um aumento de capital de mais de mil milhões de euros e, como havia sido acordado com o governador, devia abrir caminho para a sucessão.
"Há uma perceção na opinião pública que era o braço esquerdo e o braço direito. Nem me honra nem me desonra. Não havia uma questão de continuidade. Tinha plena consciência das tarefas que tinham pela frente.”
No dia seguinte, o Carlos Costa convocou o conselho superior do Grupo Espírito Santo para uma reunião no Banco de Portugal para reforçar a mensagem de que a família teria de se afastar da gestão do banco.
No dia 20, numa troca de e-mails, Ricardo Salgado refere ao governador que vai indicar o nome de Amílcar Morais Pires para CEO do banco, e recebe a seguinte resposta:
“Senhor presidente da comissão executiva do BES, prezado dr. Ricardo Salgado, tomei boa nota do email que teve a gentileza de me remeter. Como já tive oportunidade de referir, o Banco de Portugal não está em condições de validar um nome proposto por um acionista de referência para a presidência da comissão executiva sem avaliar o preenchimento dos requisitos de idoneidade. O Banco de Portugal espera como tal que o candidato proposto para a presidência da comissão executiva seja nos termos estatutariamente previstos, previstos no caso do BES, essa escolha tal como na escolha dos restantes membros da comissão executiva compete ao conselho de administração. Essa comunicação não pode, porém, levar implícita que a proposta de um determinado candidato terá merecido um acordo prévio do Banco de Portugal.”
Na comissão de inquérito, Carlos Costa explicou a mensagem enviada a Ricardo Salgado:
“Chamo a atenção que ele não tem uma maioria de acionistas para o nomear, representa apenas 20% do capital, precisava de um acionista que era o Crédit Agricole. Ele não podia dar por consumada uma nomeação antes de ter reunido a maioria acionista para o efeito. Não tendo sido o dr. Morais Pires nomeado porque não podia, porque não tinha maioria para o efeito, obviamente não podíamos desencadear um processo de avaliação de idoneidade. Senão estávamos a dar por adquirido que estava nomeado”.
Mesmo assim, contra a preferência do governador, Ricardo Salgado apresentou ao mercado o nome de Amílcar Morais Pires como o novo presidente do BES no dia 21 junho.
Estava disposto a forçar um novo embate com o supervisor quando propôs Amílcar Morais Pires para o suceder… num momento em que a situação do grupo ia deteriorando gravemente de dia para dia.
O anúncio da saída de cena do poderoso banqueiro apanhou o país e os mercados de surpresa. Pela primeira vez alguém de fora da família assumia a liderança do banco.
Dentro do clã Espírito Santo também houve quem tivesse contestado o nome do sucessor. José Maria Ricciardi, primo de Ricardo Salgado, também queria o trono do BES. E o seu ramo familiar chumbou a escolha do antigo administrador financeiro, como explicou na comissão de inquérito ao BES.
“Eu fui contra essa solução porque para mim essa solução representava (…) ficar tudo na mesma. Na votação que se deu na ESFG o meu ramo familiar votou contra essa proposta”, revelou Ricciardi.
Braço-de-ferro resolvido na Suíça
A rutura no seio da família Espírito Santo encheu as páginas dos jornais na semana que se seguiu. Surgiram notícias a dar conta de que José Maria Ricciardi havia sido aprovado por três ramos da família para suceder ao primo numa reunião ocorrida no início do mês.
Mas a pretensão de Ricciardi esbarrou no facto de o Banco de Portugal não querer nenhum Espírito Santo na administração.
Nos bastidores, Ricardo Salgado travava uma luta com Carlos Costa para o supervisor aceitar o nome de Amílcar Morais Pires para novo presidente do BES.
Tudo se resolveu a dois mil quilómetros de Lisboa.
Contou Carlos Costa: “Durante essa semana, houve um autêntico braço de ferro entre mim e o dr. Ricardo Salgado. Estava eu no BIS, na Suíça, e tivemos uma conversa à noite e ele entregou no dia seguinte no banco a aceitação de que tinha de ser substituído por uma pessoa que reunisse o acordo do Crédit Agricole e do BES”.
Amílcar Morais Pires viria a confessar no Parlamento que não esperava que o seu nome viesse a levantar problemas junto do Banco de Portugal. Acabaria por deixar o BES no mês seguinte.
“Nunca tive uma conversa com o senhor governador, fiz fé com Ricardo Salgado. Foi me pedido para tentar dar continuidade e de boa-fé. (…) Eu, que fui um pouco vítima das circunstâncias, porque humanamente não é fácil lidar com situações… pediram-me para tomar conta do BES no dia 18 de junho para assumir no dia 20. E como tinha estado no roadshow, todas as informações… os investidores que me conheciam achavam normal. Hoje fiquei a perceber que as conversas com Ricardo Salgado não eram bem assim.”
Costumo dizer que, quando se pertence a um regime, anos e anos, e esse exército perde, mesmo que não seja marechal e seja brigadeiro, temos de aceitar as consequências disso. Sinto e aceitarei as consequências, obviamente do plano individual aquelas que me são acatadas, do plano coletivo desta situação.
Assim, no dia 4 de julho, a Espirito Santo Financial Group retirou a proposta de Amílcar Morais Pires e anunciou Vítor Bento, economista e na altura presidente da SIBS, para liderar o BES.
Ao contrário do antigo braço direito de Ricardo Salgado, Vítor Bento já sabia que não iria ter problemas com o registo de idoneidade junto do Banco de Portugal, contou Carlos Costa: “Eu tive uma visita de Vítor Bento que me perguntou se seria aceite se fosse ele. Claro que sim”.
Com ele entravam para a comissão executiva do banco outros dois nomes: José Honório, antigo líder da Portucel – agora designada Semapa — e que tinha estado a trabalhar como consultor da família Espírito Santo na reestruturação do grupo; e ainda João Moreira Rato, que vinha da agência que gere a dívida pública para o cargo de administrador financeiro.
A ideia era que iniciassem funções só depois da apresentação das contas do primeiro semestre. Os seus nomes ainda tinham de ser aprovados na assembleia geral marcada para o final do mês de julho.
Mas os acontecimentos do dia de 10 acabaram por precipitar todo o calendário.
Vítor Bento entra com BES no furacão
Em julho de 2014, o país caminhava pelo seu próprio pé há pouco tempo depois do fim do resgate da troika, mas voltava a ser o epicentro da turbulência nos mercados internacionais, desta vez por causa de um banco. O fogo no Grupo Espírito Santo começava a alastrar-se por todo o lado.
Afogada em dívidas de mais de seis mil milhões de euros, a Espirito Santo Internacional preparava-se para avançar com um pedido de insolvência no Luxemburgo.
Os problemas na holding de topo da família levaram a Espirito Santo Financial Group a suspender a negociação de ações e de obrigações no dia de 10 de julho.
Nesse mesmo dia soube-se que a exposição do BES ao grupo ascendia a cerca de dois mil milhões de euros que estavam em risco e punham em causa a estabilidade do banco. O nervosismo tomou conta dos investidores nesse dia. As bolsas afundaram com os receios de uma nova crise em Portugal e na Zona Euro.
Em estado de emergência, Ricardo Salgado apresentou ao Banco de Portugal uma última boia de salvação. A tentativa saiu frustrada.
“Apresentámos investidores internacionais como a Blackstone & Weil que, a nosso convite, se encontravam em Portugal, que representavam outros investidores, entre eles, o KKR, e que haviam revelado disponibilidade para participar no reforço de capitais. O senhor governador do Banco de Portugal, no próprio dia 12, não manifestou abertura para receber os representantes daqueles investidores e, em carta de 13 de julho, referiu que concordava com tal solução, mas que haveria de ser apreciada pela nova administração”, relatou Ricardo Salgado no Parlamento.
Carlos Costa explicou por que razão a proposta não foi para a frente: “O que aconteceu é que aquilo que o Blackstone pretendia era incompatível com as regras europeias de ajudas de Estado. Queriam uma garantia pública para depósitos acima de 100 mil euros”.
Perante a escalada das tensões e o agravamento da desconfiança em torno do BES, o Banco de Portugal não viu outra alternativa senão afastar Ricardo Salgado e colocar Vítor Bento à frente do banco com efeitos imediatos. Só que o novo CEO queria uma proteção.
Vítor Bento explicou aos deputados o que pretendia: “Uma das condições que pusemos para entrar antes do tempo que estava previsto era que fossemos exonerados da responsabilidade relativamente às contas, tudo o que tivesse a ver com o seu apuramento, quer com a sua aprovação.”
O novo presidente do BES foi previdente ao não querer o seu nome associado às contas do primeiro semestre. A 14 de julho, quando assumiu os destinos do BES, já o banco já se encontrava num ponto sem retorno.
Como se veio a perceber mais tarde, os últimos dias da liderança de Ricardo Salgado acabaram por se revelar fatais para o banco. Em pouco mais de três semanas o BES perdeu mil e quinhentos milhões de euros em operações que passaram ao lado de quase toda a gente e que descapitalizaram o banco de forma muito grave.
O que aconteceu a esse dinheiro?
O FIM DO BES, DEZ ANOS DEPOIS
Passam dez anos sobre o colapso do maior grupo financeiro português. São cinco episódios com os cinco dias decisivos do fim do BES.
#1. Como perder mil milhões em dois meses 11 de junho
#2. O fim da Era Salgado 20 de junho
#3. Rei morto, rei posto 14 de julho
#4. O buraco de 3,5 mil milhões 30 de julho
#5. O dia da capitulação 3 de agosto
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
#3. Rei morto, rei posto
{{ noCommentsLabel }}