As razões que levaram Medina a condicionar gestão do FEFSS

O ex-ministro justifica que limitou as operações do fundo da Segurança Social nos primeiros três meses do ano para salvaguardar a tesouraria do Estado, mas a UTAO fala em aproveitamento político.

O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) é o principal investidor de dívida pública há vários anos. No ano passado, o FEFSS detinha 12,6 mil milhões de euros investidos em obrigações do Tesouro, cerca de 8,2% do saldo-vivo existente em obrigações do Tesouro.

Esta situação não acontece por acaso. Segundo a Portaria que define a política de investimento da almofada da Segurança Social (como também é conhecido o FEFSS), pelo menos 50% dos seus ativos têm de estar aplicados em “títulos representativos de dívida pública portuguesa ou outros garantidos pelo Estado Português.”

Esta realidade faz do FEFSS um ativo importante na gestão da dívida pública, como se viu em 2013, quando Vítor Gaspar e Mota Soares, enquanto ministro das Finanças e ministro da Solidariedade e da Segurança Social, respetivamente, assinaram uma Portaria a instar a gestão do FEFSS a substituir os ativos que detinham em carteira de outros países da OCDE por dívida pública portuguesa, por forma a elevarem a exposição do FEFSS a dívida pública nacional até ao limite de 90% da sua carteira de ativos.

O condicionamento da gestão do FEFSS, que foi criado em 1989 para assegurar a cobertura das despesas previsíveis com pensões por um período mínimo de dois anos (algo que nunca conseguido em 35 anos de existência), não é novo e está longe de trazer benefícios para os seus titulares, como revelou o Tribunal de Contas e como recentemente chamou a atenção o Conselho de Finanças Públicas. Mas foi justamente isso que voltou a acontecer no final do ano passado.

Através do Decreto-Lei de Execução Orçamental de 2024 (DLEO/2024), que estabelece as normas de execução do Orçamento do Estado para este ano, o Governo estabeleceu a obrigação de o FEFSS ter no seu balanço, durante o primeiro trimestre de 2024, o mesmo valor nominal em instrumentos da dívida pública portuguesa que detinha a 31 de dezembro de 2023.

A divergência de interpretações entre Medina e a UTAO sobre os condicionalismos impostos à gestão do FEFSS expressos no DLEO/2024 põe a nu a complexidade das decisões de gestão da dívida pública e a importância de se equilibrarem os diferentes interesses em jogo.

Num relatório de 9 de abril, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), liderada por Rui Baleiras, revela que “a UTAO pesquisou os DLEO até 2018 e não encontrou disposições semelhantes”, notando que “estas determinações no DLEO/2024 são uma prova da orientação política conducente a uma redução no valor da dívida pública de Maastricht sem ser por redução no stock da dívida viva.”

Questionado pelo ECO sobre esta operação, Rui Baleiras revela que, “com esta disposição inédita do DLEO/2024, o Governo condicionava um importante investidor de dívida pública a que não contribuísse para aumentar a dívida em Maastricht, bloqueando qualquer venda de obrigações do Tesouro pelo FEFSS no mercado até três meses depois de 31 de dezembro, que era o período visível de mudança do Governo”, no seguimento da demissão de António Costa a 7 de novembro de 2023.

Para a UTAO, o bloqueio à exposição em dívida pública pelo FEFSS nos primeiros três meses do ano imposta pelo DLEO/2024 é vista como um condicionamento à venda de qualquer título de dívida pública no mercado por parte do FEFSS que, a acontecer, geraria uma subida automática da dívida na ótica de Maastricht e, por arrasto, a um aumento do rácio da dívida pública face ao PIB nos primeiros meses do ano em plena campanha para as eleições legislativas.

Lembrando que “a política vive de números mágicos”, Baleiras destaca que só recentemente Fernando Medina, no decorrer da sua intervenção na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública sobre a redução da dívida pública em 2023 a 14 de maio, anunciou publicamente que era objetivo político do Governo ter a dívida pública abaixo dos 100% do PIB até 31 de dezembro de 2023 — algo que acabou por acontecer, com a República a fechar o ano com o nível de endividamento mais baixo dos últimos 14 anos, com o rácio de dívida face ao PIB a fixar-se nos 98,7%.

Fernando Medina tem uma visão diferente dos técnicos da UTAO, cuja avaliação não teve em conta qualquer pedido de esclarecimento sobre os motivos constantes no DELO/2024 relativamente ao FEFSS junto do Governo ou do IGCP (entidade responsável pela tesouraria do Estado).

Segundo o ex-ministro das Finanças, o condicionamento à gestão do FEFSS expressa no DLEO 2024 foi considerado por uma questão de “proteção das disponibilidades de tesouraria do país face a qualquer problema que pudesse haver nos mercados no arranque de 2024”, explicou Fernando Medina aos deputados no Parlamento a 14 de maio.

No decorrer da sua intervenção, o ex-ministro das Finanças argumentou a sua decisão lembrando que 15 de fevereiro venceria uma obrigação do Tesouro a 10 anos que apresentava, à data do seu vencimento, um saldo-vivo de 6 mil milhões de euros, “que se tratava de um montante particularmente elevado para as operações que o Estado costuma realizar.”

A abordagem de Medina, ao impor limitações à gestão do FEFSS nos primeiros três meses de 2024, é considerada por alguns como uma medida de prudência financeira, enquanto a UTAO a interpreta como um claro exemplo de condicionamento político.

É certo que entre 4 de janeiro e 14 de fevereiro, por via de uma operação sindicada e de cinco leilões de obrigações do Tesouro, o IGCP conseguiu colocar cerca de 7,5 mil milhões de euros em títulos de dívida de longo prazo junto dos investidores mas, no final de 2023, “havia obviamente dúvidas como os mercados iriam reagir”, referiu Medina aos deputados no Parlamento destacando as tensões geopolíticas que se vivam na altura.

O que são CEDIC?Ao contrário da leitura que a UTAO faz do DLEO 2024, Medina clarifica ao ECO que o condicionamento imposto ao fundo da Segurança Social durante os primeiros três meses de 2024 através dessa legislação “tem menos a ver com vendas de obrigações do Tesouro por parte do FEFSS e mais com as aplicações em CEDIC.”

No final do ano passado, o fundo da Segurança Social acumulava 2,6 mil milhões de euros aplicados em CEDIC que, como sucede sempre, eram remunerados a uma taxa de juro determinada pelo IGCP, tomando por referência as taxas do mercado monetário interbancário para prazos equivalentes. “Essas sim tinham impacto na tesouraria do Estado e mexiam com as disponibilidades de tesouraria do Estado”, refere Medina.

Esta “rede adicional de proteção” sobre a tesouraria do Estado promovida por Medina através do condicionamento da gestão do FEFSS evitava assim que o IGCP tivesse de passar dois avultados cheques em datas muito próximas:

  • Um de 6 mil milhões de euros para pagar aos investidores que detinham a obrigação do Tesouro que venceu a 15 de fevereiro;
  • E, eventualmente, outro cheque de 2,6 mil milhões de euros ao FEFSS pelos CEDIC que detinha em carteira, levando a que fossem imediatamente convertidos em depósitos à ordem junto do IGCP para que, posteriormente, a equipa de gestão do FEFSS pudesse utilizar para realizar os investimentos que bem entendesse.

É importante notar que a conversão de CEDIC em depósitos à ordem não tem qualquer implicação na posição líquida do IGCP e por isso sem efeito na tesouraria do Estado. No entanto, ao converter estes títulos de dívida pública para depósito à ordem colocando o dinheiro disponível, significaria que, a partir desse momento, o dinheiro poderia sair do perímetro do Estado para que o FEFSS o aplicasse em outros investimentos.

A divergência de interpretações entre Medina e a UTAO sobre os condicionalismos impostos à gestão do FEFSS expressos no DLEO/2024 põe a nu a complexidade das decisões de gestão da dívida pública e a importância de se equilibrarem os diferentes interesses em jogo. A abordagem de Medina, vista por alguns como uma medida de prudência financeira, contrasta com a leitura mais crítica da UTAO, que vê nessa decisão um exemplo de condicionamento político.

Esta discrepância lança luz sobre a tensão inerente entre a gestão técnica e a intervenção política na administração dos fundos públicos, tendo como pano de fundo uma discussão mais ampla sobre as melhores práticas na gestão financeira do Estado, a começar pela gestão da almofadada da Segurança Social.

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