Bênçãos e copos de água
Quem é que quer saber das tartarugas e das baleias quando pode chupar mojitos em vez de os beber e escaranfunchar ouvidos em vez de os lavar?
Era uma vez um planeta a flutuar no cosmos à mercê de forças invisíveis e misteriosas, todas as espécies que o habitavam, tendo elas mais ou menos patas, tinham uma coisa em comum: eram mortais. Uma destas espécies, especialmente incomodada com a fatal previsibilidade natural, desejava a imortalidade acima de tudo e então criou um conceito chamado Deus (que basicamente vinha dar resposta a todas as questões impossíveis de responder).
O problema é que Deus só resolvia os problema do Além e ficava aquém das dificuldades diárias, então o Homem criou a segunda imortalidade, o plástico.
Leo Baekeland (1863-1944), químico belga, naturalizado americano, nunca veio fazer as feriazitas a Bali mas como pai do primeiro plástico totalmente sintético, já chegou a todo o lado. Cem anos passaram e o plástico cresceu e reproduziu-se ad infinitum, numa série de objetos sem os quais a vida seria, constrangedoramente, a mesma.
O plástico passou das sessões de Tupperware para as infalíveis donas de casa, nos anos 40, para ser uma ilha no Pacífico com 17 vezes o tamanho de Portugal. O único problema é que, ao contrário do plástico e das ambições humanas, o planeta é limitado e, de repente, a imortalidade desta espécie sintética começou a acelerar a mortalidade das espécies naturais.
Mas quem é que quer saber das tartarugas e das baleias quando pode chupar mojitos em vez de os beber e escaranfunchar ouvidos em vez de os lavar? Quem é que quer saber dos pinguins quando pode comprar bananas e tangerinas protegidas por plástico apesar da casca, quem é que quer saber dos peixes que comemos (já para não falar dos que não comemos) se, numa viagem de 120 dias como a minha, os hotéis nos pedem para não pormos logo as toalhas para lavar (para poupar o meio ambiente) mas nos oferecem 240 garrafinhas de água, 360 tubinhos de champô, além dos sacos, tocas de banho e escovas de dentes.
Eu digo-vos quem é que quer saber. O alegre turistinha que estende a toalha do hotel (tem de se usar ao máximo), numa praiinha de Bali. Pois é aqui no meio dos retiros zen e das construções de bambu que vive o plástico desprezado. Nas praias da costa oeste de Bali não se apanham conchas, apanha-se lixo. Ou, pior, não se apanha, leva-se com ele nas trombas, com as ondas. As marés são como o algodão, não enganam e raramente estão limpas.
Kuta, Canggu e Seminyak são o top do must (not) see, a não ser que se queira ficar na piscina do hotel eco-unfriendly. É aqui, entre os Beach Clubs para ver o sunsets e as aulas de surf para principiantes que se fazem os “domingos de limpeza das praias”. O problema é que o lixo, como Deus, está em todo o lado mas ao contrário de Deus, não vai lá só com domingos.
Passeando pela praia é fácil ver os principais culpados e já que o lixo é de marca, bom seria marcar os responsáveis. Aqui a maré baixa traz maioritariamente copos de água Aqua (sim, vende-se água em copos de plástico), todo o tipo de refrigerantes, styrofoam, sacos variados, “e olha, lá estão os champozinhos do meu hotel” . Para ajudar ainda temos quatro milhões de balineses a fazer oferendas diárias que já não se limitam à flor e à folha mas ao rebuçado, à bolacha e a tudo o que couber no pratinho, envolto em plástico (não vão os deuses apanhar micróbios). E sim, há templos nas praias e não imaginam a quantidade de bênçãos deitadas ao mar.
Mas já não chega rezar, já não chega mudar de praia, não chega parar de comer peixe, já não chega reciclar. Criámos um monstro que vai passar perna ao próprio Matusálem (avô do Noé que chegou quase quase a viver 1.000 anos). Vamos aprender da pior maneira que há uma razão para o Universo não criar imortais, eles não são o prolongamento da vida mas o seu contrário.
Vamos acabar com ele, pel’amor da Terra?
“Crónicas asiáticas” são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. O ECO publica as melhores histórias da viagem à Ásia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui. Leia ou releia também as “Crónicas africanas” e as “Crónicas indianas”.
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