Cá na Ilha

Página perdida do diário nem sempre diário de Luís Vaz de Camões, um dos camónes preferidos pelos gentios, que um dia ficou pela Ilha, em dois anos de ventania.

Mami Pereira na Ilha de Moçambique.Mami Pereira

“Dos amores. Eis a Ilha. De um lado a bebida, do outro a comida. No meio as mulheres que, por serem de complexa gestão, devem ser consumidas com moderação. As outras coisas? Não!

Ilha de Moçambique, capital do Império. Joia turquesa de marés transparentes, cheia de hojes e de antigamentes. Cidade cor de fruta descascada, já um pouco escavacada, Património Mundial.

Aqui fico. Aqui se fica. Entre a piscina e as buganvílias do Hotel Escondidinho, o obsceno atum do Karibu (ciúmes de qualquer musa), a magnífica Matapa de Siri Siri da Sara, a corrente de ar possível do Flor de Rosa, o cafezinho português no Âncora D’ouro e as almoçaradas no Relíquias.

Ainda cá está tudo. A praia, o forte, o hospital, o padrão. Milhares de sorrisos de dentes bonitos, conchas, árvores velhas, jogos de rua, lenços do Islão, capulanas, velas remendadas e os corpos esguios feitos pinceladas, mastros vivos de embarcação.

E a toda a hora, a criançada. A ir para a escola, a vir da escola e os sem escola, a pedir esmola, a correr atrás da bola, a brincar.

Nos meus ouvidos roça o rumor da língua, nas canções da igreja, nos ecos da mesquita, na loucura dos morcegos, no refrão da chuva. Se ao menos eu conseguisse pôr isto em verso…

Contar uma Ilha que são duas. De pau e de pedra. De cima e de baixo. À direita e à esquerda. Dos nativos e dos estrangeiros. Dos de cá e dos de lá.

E, em dois anos, sei que já sou de cá, senão era Lámões. E lá fica longe. Depois da grande ponte. Depois da praia das Chocas, da Ilha de Goa, da Ilha das Cobras, da dos Sete Paus, das lagoas do Coral, depois dos pescadores, dos pecadores e de todos os peixes. Lá é cada vez mais longe. E eu já não sei de cá sair…”

Nem eu, Camões
Nem eu.

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Crónicas africanas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO vai publicar as melhores histórias da viagem, que pode ir acompanhando também aqui e aqui.

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