O espaço público de televisão
Um sinal aberto de televisão é uma concessão pública que implica direitos e deveres. E a promoção do racismo implica sanções por parte do regulador.
Toda a gente sabe que a única razão pela qual a TVI convocou Mário Machado a aparecer em antena foi o desespero da audiência. Pior ainda foi justificar como “um ato de democracia”, o que é de uma desonestidade intelectual grave e vale zero quando está em causa o tempo de antena dado a um racista. Pelos vistos é preciso recordar que o sinal aberto de televisão é um espaço público concessionado, atribuído pelo estado mediante o cumprimento de obrigações que estão bem claras.
Há dois pontos particularmente relevantes para este caso na lei da televisão: O primeiro está escrito no artigo 34 e confirma que “Todos os operadores de televisão devem garantir, na sua programação, designadamente através de práticas de auto-regulação, a observância de uma ética de antena, que assegure o respeito pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos fundamentais e demais valores constitucionais, em especial o desenvolvimento da personalidade de crianças e adolescentes.”
O outro está no artigo 27º, que afirma no ponto 1 que “A programação dos serviços de programas televisivos e dos serviços audiovisuais a pedido deve respeitar a dignidade da pessoa humana e os direitos, liberdades e garantias fundamentais” e, no ponto 2, que “Os serviços de programas televisivos e os serviços audiovisuais a pedido não podem, através dos elementos de programação que difundam, incitar ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela deficiência.”
O incumprimento deste último em particular é considerado pela própria lei uma contra-ordenação muito grave, com multas de 75 a 375 mil euros e entre 1 e 10 dias de suspensão da licença ou da transmissão do programa em que for cometida. É aqui que deve entrar a Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC). Ela tem pautado a sua existência por uma discrição quase absoluta em termos editoriais, o que é lógico como princípio mas perigoso quando tomado por regra inviolável. O sucesso da CMTV, que empurra os padrões éticos sempre para baixo, tem de ser denunciado e controlado antes que se generalize a sua imitação, como parece ser o caso.
Esta lógica de “quanto pior melhor” não é nova mas tem vindo a agravar-se nos últimos anos, graças ao domínio do modelo imposto nas redes sociais. E, não tenhamos dúvidas, vai agravar-se a curto prazo: as receitas publicitárias da televisão vão continuar a descer e a guerra pelas audiências vai intensificar-se. Ao mesmo tempo, o triunfo das emoções sobre o racionalismo vai continuar a dominar o espaço público.
Como a elite que às vezes escreve por aí é imune às redes sociais e não vê os programas “do povo”, não tem noção do risco que todos corremos com a promoção destes discursos de ódio. Entretidos com o fracasso dos coletes amarelos, muitos apressaram-se a confirmar que a indignação das redes sociais não salta a fronteira entre o real e o virtual. Não percebem que o risco não é esse. O risco é que o discurso do “são todos iguais” provoque a alienação de quem se devia interessar, deixando o campo aberto para toda a espécie de extremistas asquerosos. Ou muito me engano ou muita gente só vai perceber isto depois das eleições europeias…
Ler mais: Andrew Keen escreveu logo em 2007 um texto muito importante chamado The Cult of the Amateur: How Today’s Internet Is Killing Our Culture. Mas a obra do ano passado é igualmente importante: chamada How to Fix the Future, lida com a forma como temos de resolver os problemas da revolução digital através de cinco ferramentas estruturais: a regulação, a inovação, a responsabilidade social, a educação e o trabalho. E isto, mesmo que não pareça, tem tudo a ver com o que se discutiu em Portugal esta semana.
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