O Estado de uma União febril
Ursula von der Leyen fez um discurso razoável, nada de entusiasmante, talvez o possível nas presentes circunstâncias.
Como que atacada por sucessos vírus, a União Europeia (UE) enfrenta há anos (nove, doze, quinze, talvez mais) sucessivas crises. O subprime e as dívidas soberanas, a crise económica, Ucrânia I, o drama dos refugiados, Brexit, pandemia, invasão da Ucrânia.
Foi sobre elas, a resposta europeia e os desafios do futuro, que a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em nome do executivo, veio falar, projetando as realizações, as ameaças e as esperanças dos europeus, no já tradicional Discurso do Estado da União. Uma União febril, que pressente a fragilidade crescente da sua posição na cena mundial, mas também o potencial que ainda encerra, sendo ainda, para viver, um dos melhores espaços –político, social, económico, cultural – do mundo.
O discurso de von der Leyen foi recebido, a crer nas reações já observadas, com sentimentos contrastantes, mais ou menos mitigados: nem demasiado entusiasmo nem excessivo pessimismo. Desde “o que se esperava”, até “falta de ambição”, passando por um encomiástico “melhor presidente da Comissão desde há muito”, ouvi um pouco de tudo.
O discurso teve, como alguns dos anteriores, frases aspiracionais e motivacionais:
“A Europa foi a resposta à chamada da História”. “É preciso ganhar a confiança dos europeus”, com as eleições a 300 dias de distância. “Completar a União é o melhor investimento para a paz, progresso e prosperidade”. “O futuro da Europa depende das escolhas que fizermos hoje”. Nada de muito dramático, mas decente.
Sob os aplausos dos Meps, repetidos 30 vezes ao longo da intervenção, von der Leyen começou por recordar alguns sucessos da Comissão, com 90% dos objetivos de 2019 cumpridos.
Tratou depois 10 pontos específicos (pelas minhas contas):
- O pacto verde (green deal) e a transição climática, porque “o planeta está a arder”. As indústrias europeias continuarão a ser apoiadas.
- Empregos, com a concorrência em destaque. E anunciou uma investigação às ajudas de Estado aos veículos elétricos provenientes da China, na luta contra as práticas injustas.
- Biodiversidade, ligada à conservação das florestas, mas também à autossuficiência na produção alimentar. Será lançado um diálogo estratégico sobre agricultura na UE.
- Os desafios económicos, repartidos entre emprego, inflação e facilitação dos negócios. Neste momento, disse, não são as pessoas que procuram os empregos, são os empregos que procuram as pessoas. Anunciou um novo diálogo social, a ter lugar, como há 40 anos, em Val Duchesse.
- Lembrou a importância de usar a massa crítica económica e financeira da UE para reduzir a dependência e o preço das matérias primas da energia. E, para aumentar a competitividade da economia europeia, anunciou a redução das obrigações a que estão sujeitas as empresas europeias no âmbito da União em 25%. Mário Draghi fará um relatório sobre a competitividade europeia. Quanto às relações com a China, no que respeita à segurança económica, a política será de de-risking e de-coupling (redução de riscos e dissociação).
- Focou a transição digital sobretudo nos riscos da Inteligência Artificial. As empresas que trabalham na matéria serão associadas à concretização do Regulamento europeu. E os supercomputadores europeus (3 dos 5 maiores no mundo, disse) serão postos à disposição das PME do setor. Uma abordagem global, melhor governação, inovação responsável – para mitigar, disse “os riscos de extinção” decorrentes da IA.
- Na dimensão geopolítica, destaque para o corredor Índia-Médio-Oriente-Europa, espécie de belt and road à europeia, com investimento em ligações ferroviárias, um pipeline de hidrogénio e um cabo de alta velocidade para dados. A UE, resumo das suas palavras, quer mudar a sua relação com os países emergentes, que culpam a globalização pelos seus males.
- A migração, em particular os refugiados, é uma constante dor de cabeça, reconheceu, e são precisas soluções práticas. É sobretudo possível atacar o negócio do tráfico humano e a Comissão vai organizar uma conferência internacional “para acabar com isso de vez”.
- A guerra na Ucrânia não podia faltar. A Presidente evocou Victoria Amelina, romancista ucraniana morta por um míssil russo quando jantava com escritores colombianos em Kramatorsk, e salientou que a Europa é o lar dos refugiados (o sítio em que confiamos uns nos outros, disse) e que a UE continuará a responder ao apelo da História, mantendo-se ao lado da Ucrânia até quando for preciso! Os refugiados ucranianos serão sempre bem-vindos.
- E saltou para o alargamento, que reputa de indispensável. O próximo deve ser um catalisador do progresso europeu, e a Europa pode funcionar com mais de 30 países. À cautela (digo eu), será aberta a avaliação de resultados (reporting) sobre o primado da lei aos países do alargamento, apoiando as reformas (será também, parece-me, um acicate). E a Comissão fará testes de pré-alargamento, para aferir da capacidade da UE funcionar com esses países.
- Sobre a violência contra as mulheres: “não é não” – deve ser a regra. O mesmo sobre a igualdade: não faz sentido que ao mesmo trabalho não corresponda a mesma retribuição.
Algumas críticas se seguiram ao seu discurso, como o da líder dos Socialistas & Democratas, Iratxe Garcia Pérez, que apontou a falta de mais compromissos em matéria social.
Em suma, um bom discurso, com interrogações à mistura. Poderia ter ido mais longe? Claro, mas mais vale que tenha ido a algum lugar – e foi. Algumas das iniciativas podem suscitar dúvidas sobre a sua exequibilidade (e utilidade). Outras, não foram além do proclamatório.
Mas este é um exercício difícil. Uma Europa tão multifacetada e dividida, nalguns dossiês essenciais como a imigração, o alargamento ou até (muito em surdina, ou nem por isso) a guerra na Ucrânia, requer um equilíbrio nem sempre fácil.
Sobram dois comentários:
Apesar de ter salientado a importância das eleições europeias de 2024, von der Leyen não deu qualquer sinal sobre a disponibilidade (e vontade) de se candidatar. O tabu permanece. E foi curiosa a gafe, a meio do discurso, quando se dirigiu aos “honorable members” (isto é, aos deputados) como “honorable member-states” (Estados-membros), provocando um pequeno bruábá na sala. Gafe corrigida com rapidez e entre sorrisos.
Em suma, na minha opinião, um discurso razoável, nada de entusiasmante, talvez o possível nas presentes circunstâncias. Retenho, para terminar, a mensagem aos jovens eleitores, que pela primeira vez vão votar em 2024, sobre o que lhes reserva o futuro em relação a:
O que lhes interessa; a guerra e suas consequências; as mudanças climática, o digital, a IA e o impacto que terá nas suas vidas; o acesso a uma habitação acessível e a um emprego justo.
Todo um programa.
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