Passos, Cavaco e a privatização da TAP

Os dois ex-governantes criticaram, e bem, a reversão da privatização da TAP. Esqueceram-se foi de criticar a própria privatização que fizeram.

No final da semana passada, dois ex-governantes de direita quebraram um longo silêncio e, curiosamente, ambos falaram sobre a TAP e para criticar a reversão parcial da privatização feita pelo Governo de António Costa em 2016.

Existem várias boas razões para criticar essa reversão de privatização, mas Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho não acertaram em nenhuma delas.

Para encontrar bons argumentos para dizer mal da reversão da privatização basta ler este relatório produzido pelo Tribunal de Contas, em junho de 2018. Resumidamente, o tribunal concluiu que ao aumentar a sua posição de 39% para 50%, mantendo o estatuto de empresa privada:

  1. O Estado ficou com metade do capital, mas não mandava na empresa (Era o consórcio privado Atlantic Gateway que indicava os nomes do presidente da assembleia geral, do secretário da sociedade, dos principais titulares do conselho fiscal, dos membros da comissão de vencimento, dos administradores da comissão executiva e ainda dos membros dos órgãos das empresas subsidiárias da TAP);
  2. O Estado ficou com 50% do capital da TAP, mas ficou apenas com 5% dos direitos económicos;
  3. Em caso de incumprimento da dívida por parte da TAP, a empresa estatal Parpública passou a ser a “única responsável por aquela dívida perante as instituições financeiras”;
  4. E, finalmente, a Parpública também passou a ser “a única responsável pela capitalização da TAP SGPS, sempre que os capitais próprios descessem abaixo do limiar mínimo definido”. Esse limite definia que os capitais próprios da TAP não podiam ser inferiores a 571,4 milhões de euros negativos.

Resumidamente, o Estado privatizou o negócio e os lucros e nacionalizou o risco, as responsabilidades e o passivo. Foi uma reversão que basicamente beneficiou os privados que nessa altura viam-se a braços com dificuldades de renegociar a dívida da TAP e conseguiram, com esse acordo, uma garantia pública da dívida financeira da TAP, no valor de 615 milhões. Por isso é que os privados não se queixaram de ter perdido a maioria do capital da transportadora aérea.

Cavaco Silva e Passos Coelho resolveram criticar a reversão da privatização da TAP, não por causa das razões 1, 2, 3 e 4 elencadas pelo Tribunal de Contas, mas porque defendem ambos que se não tivesse acontecido a reversão em 2016, seriam agora os privados a ter de arcar com os custos da reestruturação.

O regresso de Cavaco e Passos

Cavaco Silva, em entrevista ao Observador, afirmou que sem a reversão da privatização “as coisas seriam muito diferentes hoje, muito diferentes se não tivesse sido tomada essa decisão em 2016”. Pedro Passos Coelho, numa conferência, esta sexta-feira, também considerou que “agora que a TAP está ameaçada na sua sustentabilidade, em vez de serem os privados, que arriscaram investir na privatização”, a responderem pelos resultados perante a banca e outros credores, são o Estado e os contribuintes “quem têm de assumir os prejuízos que já quase só podem dividir com os funcionários da empresa, que mais parece ter sido renacionalizada”.

Estas afirmações partem de um pressuposto incorreto: que se os privados ainda tivessem 61% da TAP, seriam eles a suportar a quota-parte dos 3,4 a 3,7 mil milhões que a companhia precisa até 2024. O problema é que os privados não têm, nem pouco mais ou menos, esse dinheiro. Ou seja, para evitar a insolvência da TAP teria de ser sempre o Estado a injetar o dinheiro, diluindo a posição da Atlantic Gateway.

Isto leva-nos a concluir que antes da reversão da privatização houve um erro original que foi a própria privatização, ou seja, entregar a companhia aérea nas mãos de empresários sem arcabouço financeiro para responder a uma chamada de capital numa empresa com a dimensão da TAP. Senão vejamos a quem é que o Governo de Passos Coelho vendeu e quis vender a TAP, numa altura em que Cavaco Silva estava no Palácio de Belém.

Capitalistas sem capital

Primeiro, em 2012, a TAP esteve prestes a ser vendida ao empresário colombiano-brasileiro-polaco Gérman Efromovich. O negócio pressupunha um encaixe de 35 milhões para o Estado, a assunção do passivo que rondava 1,5 mil milhões de euros e ainda uma recapitalização da TAP em duas fases: 166 milhões de euros no imediato e mais 150 milhões no prazo de 18 meses. A privatização foi abortada precisamente no dia em que ia ser aprovada em Conselho de Ministros porque Efromovich não conseguiu sequer apresentar uma garantia bancária para os 166 milhões de euros que deveria injetar na TAP. No ano seguinte, em 2013, a Folha de São Paulo noticiava que Gérman Efromovich pediu um financiamento de mil milhões de reais (340 milhões de euros) à Caixa Econômica Federal para apresentar uma nova proposta pela transportadora aérea portuguesa. Pedido que foi negado pelo banco.

A última notícia que tivemos de Germán Efromovich, já este ano, foi a de que estava em prisão domiciliária no Brasil com o irmão José, ambos suspeitos de corromper um executivo da Transpetro, uma subsidiária da petrolífera estatal Petrobras.

A venda da TAP não foi feita a Efromovich, e acabou por ser feita ao empresário brasileiro-americano David Neeleman que, em consórcio com o português Humberto Pedrosa, comprou 61% da TAP, pagando ao Estado 10 milhões de euros e injetando na companhia 354 milhões. Mais tarde, viria a injetar mais fundos na TAP, mas através de um empréstimo obrigacionista da sua outra empresa de aviação, a Azul.

Tal como Efromovich, David Neeleman não tinha nem vontade, nem dinheiro para acudir à TAP neste momento. O ministro Pedro Nuno Santos confirmou que “David Neeleman não queria meter nem um cêntimo na TAP” e, mesmo que quisesse não teria capacidade financeira para tal. Uma das últimas notícias que tivemos sobre Neeleman foi a de que vendeu uma parte da posição que detinha na companhia aérea Azul, porque não tinha cash suficiente para pagar um empréstimo pessoal de 30 milhões de dólares que contraiu junto de um banco.

Se Neeleman não tem liquidez para liquidar uma dívida de uns “míseros” 30 milhões a um banco, como poderia ele ter 3,4 a 3,7 mil milhões para injetar na TAP? Saiu Neeleman e ficou Humberto Pedrosa que, através da Barraqueiro, ficou com 22,5% da TAP.

Dos 1,2 mil milhões que foram injetados na TAP este ano, Humberto Pedrosa entrou com zero euros e Bruxelas deverá obrigar o Estado a converter o empréstimo público de 1,2 mil milhões em capital, diluindo a posição de Pedrosa na TAP para perto de 0%. Porque tal como Efromovich e Neeleman, Pedrosa também não tem capacidade financeira para chamadas de capital numa empresa com a dimensão da TAP.

TAP pública não é ideologia, é aritmética

Creio ter ficado claro que o problema da TAP não tem a ver apenas com a reversão da privatização, mas com a própria privatização. Uma coisa é vender a companhia a uma empresa como a Lufthansa (ela própria alvo de um bailout na Alemanha), outra é vender a empresários sem capital e achar que numa situação de aperto, como a atual, iriam ter dinheiro para salvar a TAP.

Mesmo num cenário hipotético de terem dinheiro para injetar na TAP, que não têm, para os privados as contas de uma falência da TAP seriam fáceis de fazer: de um lado da balança, uma chamada de capital de 3,7 mil milhões de euros, e no outro prato da balança, a falência que os levaria a perder os 354 milhões que já injetaram na companhia. É fácil perceber para onde penderia o fiel da balança privada.

As contas para o Estado não são tão fáceis de fazer. De um lado da balança pesam os mesmos 3,7 mil milhões de recursos públicos para salvar a TAP e, do outro lado da balança, os custos da falência que para os privados não aquece, nem arrefece: as ligações privilegiadas às ilhas e às comunidades portuguesas, a transferência do hub de Lisboa para Madrid, a perda de 2,6 mil milhões de euros/ano de exportações, a destruição de 10 mil postos de trabalho diretos e ainda a responsabilidade pelo passivo da empresa. Aqui não seria tão óbvio para qual dos lados penderia o fiel da balança.

Da próxima vez que quiserem vender a TAP a investidores privados, olhem para estas duas balanças. Não é uma decisão ideológica, é apenas aritmética.

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