Quénia de quem?
Quis o destino que o nosso encontro estivesse marcado para o meu último dia de África e não para o primeiro. E isso fez toda a diferença.
Eu quis vir ao Quénia por causa da Karen, do livro, do filme e da música. Mas quis o destino que o nosso encontro estivesse marcado para o meu último dia de África e não para o primeiro. E isso fez toda a diferença.
A Karen teve uma quinta em África, eu estive em África na última quinta. Sobrevoámos o Quénia de avioneta, ela cheia de emoção, eu cheia de Atarax. Ambas gostamos de café, aventureiros de olhos claros e kikuyus. E se não contarmos com o facto de ela ser dinamarquesa e ter tido sífilis e eu ser portuguesa e ainda não ter obra publicada, então há muito pouca coisa em que não sejamos almas gémeas. E África claro. Ambas adoramos África!
Aliás, depois de quatro meses a gastar dinheiro em África. Posso quase dizer que amo África. E mais dinheiro tivesse, mais de África gostava. Agora, gostar de África, sem dinheiro, aí é que está o desafio.
Ora pensem, o melhor restaurante do mundo não é a mesma coisa para o cliente e para o tipo que lava os pratos. África também não. Depois de quatro paradisíacos meses em quatro incríveis países, é muito difícil dizer que África é só linda, é só elefante na savana, é só marisco barato, só pôr-do-sol de encomenda.
É muito fácil adorar a minha empregada (“dá-me tanto jeito, é tão asseadinha e nem sequer me rouba”) mas… e gostar da pessoa além da função? E gostar de África além do cenário, além do serviço, além da ficção? Aí é que mora a questão.
A Karen, como qualquer pessoa que tenha vivido ou visitado África “à patrão”, viveu uma fantasia. Quando se faz isto por uma semana fica-se com a doce e ingénua ideia que África é mesmo assim, aquele pedaço de céu entregue às mais preguiçosas criaturas. Mas quanto mais tempo de estrada se tem, especialmente se for naqueles chapas em decomposição, como é que se fala de África com pretensão, pertença ou possessão?
A Karen não teve uma quinta em África. Ela foi hóspede de um pequeno condado com o mesmo nome, hoje transformado numa espécie de Quinta da Marinha de Nairobi, a uma simpática hora de trânsito da maior favela de África. Felizmente, as pessoas que vivem em Karen vão ter o mesmo tipo de saudades de África que eu e a Karen temos. Os da favela? Não.
Quem gosta de girafas pode viver com elas no espectacular Giraffe Manor, quem gosta, sem cifrões, pode roubar-lhes um beijo no Giraffe Center. Por mais umas notas, pode fazer-se o mesmo com elefantes no orfanato do David Sheldrick. Quem só tiver um dia para ir ao Quénia pode mesmo fazer um safari no Parque da própria cidade. Quem já fez tudo, pode fazer como eu e ir ver a casa da Karen.
O problema é que quando lá cheguei não vi África nenhuma. Nem dela, nem de ninguém. Ali estava o relógio de cuco suíço, a grafonola com o Mozart austríaco, o chá inglês, os livros em dinamarquês, a comida europeia e a mobília importada. E tudo aquilo me fez sentir (pela milionésima vez vezes 120 dias) estrangeira em África, mais uma estrangeira fascinada por um continente tão de si diferente que não devia caber numa palavra. E percebi porque é que ela chamou ao livro Out of Africa, que em nada se traduz por África Minha. Porque, por mais que a queiramos, não é nossa, nem no sonho. Nunca há de ser. E isso sim, é o final feliz!
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Crónicas africanas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO publicou as melhores histórias da viagem. Pode continuar a acompanhar as viagens aqui e aqui.
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