Viagem a Oxford

Haverá algum limite para a acomodação legítima da diferença? O que garante a unidade de uma sociedade multicultural? Haverá espaço para a promoção de uma qualquer noção de identidade comum?

A melancolia é um sentimento de todos os tempos. Ensaio um passeio melancólico, uma peregrinação urbana, fragmentária e pós-moderna numa rua anónima no lado errado de Oxford – Cowley Road. Em plano de fundo, as reflexões de Robert Burton, autor da obra “The Anatomy of Melancholy”, publicada no ano de 1621, parecem guiar e inspirar os meus passos na aventura pelo hinterland de uma Inglaterra exótica, tropical e estranha. Se Robert Burton expiava a sua melancolia entre o Christ Church e as filas de livros na biblioteca da Bodleian, no meu caso viajo pela rua e registo a vida de um velho lugar.

Cowley Road já foi lugar de uma fonte milagrosa, morada de dragões no tempo do Rei Artur, zona de leprosos na Idade Média, refúgio de pobres e de indigentes no século XIX, subúrbio industrial em pleno século XX. A rua a leste de Oxford é hoje uma espécie de Torre de Babel, uma configuração do rosto confuso de um país multicultural. Distante de Elgar e da nostalgia de “Brideshead Revisited”, distante da melancolia agreste do som working class dos “The Clash”, Cowley Road irradia a melancolia de um lugar feito de todos os lugares e dispersa a nostalgia pelos sons electrónicos de um DJ asiático no palco improvisado de um teatro Vitoriano.

Na aparente e simples melancolia, a viagem é também um roteiro sobre a política. Pode mesmo falar-se da existência de uma “Política da Melancolia”, aliás um tema recorrente no século XVII de Robert Burton. Se a melancolia atormentava o espírito do homem e condicionava a acção e disposição do corpo humano, os escritores e filósofos do século XVII exploraram novas e outras conceptualizações da doença para poderem dissertar sobre as desordens do corpo político. Assim, o conflito político, a revolta popular, o predomínio da facção, a guerra civil, passaram a ser observados como representações da natureza melancólica do corpo político.

Ao escreverem sobre a fonte e a origem da melancolia, escritores e filósofos reflectiam sobre as causas e as curas de uma doença que provocava a desordem no governo e a infelicidade nos governados. Sendo a política uma representação da doença, a cura para a doença representava a solução para as convulsões da política. A regeneração do corpo político projectava assim o desejo de felicidade e a saudável ambição de uma nova ordem no mundo dos homens. Neste movimento marcado por uma irresistível lógica formal, estaria então definida uma associação entre o mal da Melancolia e a solução da Utopia. Em “The Anatomy of Melancholy”, e dissertando sobre as origens e o mal de uma vida indolente, Robert Burton associava esse particular modo de vida ao sintoma de uma doença que afectava o corpo político.

O destino da nação jamais seria alcançado enquanto o espírito político não fosse libertado de tão séria enfermidade. Robert Burton idealiza então um reino imaginário, um país perfeito, um império no qual a todo o homem seria vedada a possibilidade de uma existência indolente, ao mesmo tempo que o Estado suportaria toda e qualquer genuína necessidade. Nos meus passos perdidos não proponho nenhuma Nova Utopia. No entanto, procuro projectar nos tempos de hoje um olhar e uma atenção que remetem para o carácter de uma tradição associada a uma “Política da Melancolia”, e em particular quando, na vulgaridade e no anonimato de Cowley Road, o olhar parece ter encontrado o barómetro que regula a riqueza das nações.

O autor destas linhas, o flâneur no outro lado de Oxford, encontra em Cowley Road os pequenos vestígios de todos os mundos. Uma rua cujo carácter se resume a um somatório de identidades díspares, à presença de etnias múltiplas, ao ritual de muitas religiões, à contingência de vidas provisórias assinaladas por todos os conflitos do mundo.

Tal como na Índia em tempo colonial, a língua inglesa opera na margem enquanto idioma político que mantém a aparência de uma ordem. Cowley Road revela uma sequência impressionante de lugares – com uma guarda-de-honra de cavalheiros sem-abrigo em intervalos regulares pelo passeio, desfilam restaurantes da Jamaica, do Bangladesh, da Índia, da Polónia, da China, do Kurdistão, da França, do Japão, da Itália, da Tailândia, da Ucrânia ou do Irão; lojas de saris, cafés étnicos, um posto do Royal Mail, lojas de fast-food, floristas da Nigéria, pubs com música da Síria, lojas de tatuagens, um supermercado com especialidades da Rússia, lojas de apostas, duas mesquitas, três igrejas, um centro comunitário judaico, três lojas de bicicletas, um cemitério, um ervanário da China, uma loja de conveniência Tesco, uma esquadra de polícia, dois centros de medicina alternativa, um escritório da Oxfam, um cinema independente, várias wi-fi coffee shopps, um bingo, um parque infantil que capta a atenção das prostitutas, uma loja de penhores ou um estabelecimento de lap-dancing que anuncia o seu comércio aos Domingos. Cowley Road é a face visível de uma Inglaterra pós-colonial e, em certo sentido, o rosto observável de uma sociedade pós-industrial. A morte do Império é a vida das Nações. Mas em Cowley Road, as Nações regressaram para viverem na velha Nação que já foi um Império.

Na minha mente pressionada pelas leituras e pelo frio surge a ideia de um “isolarion”, uma palavra do século XV que denominava o mapa detalhado de um determinado lugar. No espírito da palavra, existiria ainda a tentação de procurar no detalhe do pequeno lugar os ensinamentos que permitissem a compreensão de todo o mundo. A minha curta deslocação tenta cumprir com rigor os detalhes da viagem, produzir o mapa de um pequeno lugar isolado e descobrir a diversidade de um país multicultural. Mas no final da peregrinação, algumas perguntas persistem na paisagem sobre Oxford – Haverá algum limite para a acomodação legítima da diferença? O que garante a unidade de uma sociedade multicultural? Haverá espaço para a promoção de uma qualquer noção de identidade comum?

De regresso a casa, não guardo na memória do lugar nem na confusão dos livros comprados qualquer tipo de resposta. Apenas a mesma melancolia que se torna invisível pelo uso e que me arrastou para uma pequena odisseia no território fluido de Cowley Road.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Viagem a Oxford

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião