Um dia, um avião da Ryanair aterrou no aeroporto de Ponta Delgada. Dele saiu Michael O'Leary, para anunciar que, dentro de poucos meses, ia revolucionar a ilha.
Os alarmes começaram a soar alguns meses antes da revolução. Em outubro de 2014, Passos Coelho, na altura primeiro-ministro, e Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional dos Açores, chegavam àquilo a que chamaram de “entendimento perfeito” para a abertura do espaço aéreo. O então primeiro-ministro dizia acreditar que as ligações aéreas dos Açores estariam liberalizadas no verão do ano seguinte. Não foi preciso esperar tanto.
“Dizia-se que era a easyJet. Um dia, vejo um avião da Ryanair. O O’Leary [Michael O’Leary, o CEO da lowcost] meteu-se no avião, veio cá fazer uma conferência de imprensa e disse ‘a partir de 29 de março de 2015, vamos ter uma base em Ponta Delgada’. Fiquei comovido, ninguém aqui estava à espera”. A recordação é de José Romão Leite Braz, dono do grupo Azoris Hotels, e foi partilhada durante um almoço com jornalistas.
Dito e feito: a 29 de março de 2015, um domingo, são inaugurados os primeiros voos de companhias lowcost para os Açores, que agora contam com sete voos diários de e para o Continente. No fim, “a Ryanair ultrapassou todos pela direita”: a companhia aérea irlandesa não só já ultrapassou a TAP na quota de passageiros transportados de e para os Açores, como vai alargar a oferta e começar a ligar Ponta Delgada a Frankfurt e a Londres já a partir de abril.
“Acredito que, se correr bem aqui, naturalmente, vai transbordar para as outras ilhas.
A vitória é da Ryanair, mas o ganho é de todos. “O efeito da abertura do espaço aéreo foi extraordinário”, reconhece Romão Braz. Depois de anos de um “desenvolvimento crítico” do turismo nos Açores, em que “havia voos, mas os hotéis estavam às moscas”, o cenário é bem diferente agora e a hotelaria açoriana está a receber mais de 1,3 milhões de hóspedes e a empregar mais 24% do que há dois anos. É o mesmo que dizer que, nos primeiros nove meses de 2016, os Açores bateram os números do conjunto de 2015, que, já de si, foi ano recorde.
As contas são claras:
- O arquipélago tem agora mais de mil estabelecimentos turísticos (a esmagadora maioria, cerca de 800, são alojamentos locais) a funcionar na época alta, quando, antes da liberalização, eram à volta de 350 estabelecimentos turísticos;
- O número de hóspedes passou de 396 mil no conjunto de 2014 para 509 mil no acumulado de janeiro a setembro de 2016;
- A taxa de ocupação da hotelaria tradicional passou de 34% para 50% no conjunto de janeiro a setembro de 2016, isto é, os hoteleiros já conseguem ocupar metade das camas que têm disponíveis, uma marca que nem em 2007, ainda hoje o ano de referência para o turismo nacional, foi atingida.
Foi para “aproveitar o momento que se está a atravessar” que Romão Braz e a família investiram três milhões para renovar a imagem e melhorar a oferta dos três hotéis do grupo Azoris. Agora, acredita o hoteleiro, é preciso diversificar a oferta. “Precisávamos de hotéis de cidade, já os temos. Agora, temos de ter hotéis diferentes, que respondam a nichos. Se correr bem aqui, acredito que, naturalmente, esta tendência vai transbordar para outras ilhas”.
O Santa Bárbara Eco Beach Resort, na costa norte de São Miguel, é um dos “hotéis diferentes” de que o turismo açoriano precisa. Por feliz casualidade, abriu três meses depois da liberalização do espaço aéreo e, feito o balanço, o resultado foi melhor do que se esperava.
O resort nasceu pelas mãos de Rodrigo Herédia e João Reis, que começaram a sonhar o projeto há sete anos, ainda a abertura do espaço aéreo era uma miragem. Inaugurado há ano e meio, o complexo que fica por cima do areal mais extenso da ilha, o da praia de Santa Bárbara, não podia ter tido melhor começo. “Tivemos uma procura extraordinária. O estabelecimento começou a ser comercializado em março e, nos seis meses de operação que tivemos em 2015, a taxa de ocupação foi de 85%”, detalha Joana Damião Melo, diretora geral do Santa Bárbara.
O Azoris e o Santa Bárbara são dois bons exemplos do novo retrato da hotelaria açoriana, mas o impacto está longe de se fazer sentir só nos hotéis. Dos cafés aos supermercados, passando pelo alojamento local, o sentimento é geral: os turistas entraram em força e, num lado ou no outro, deixam dinheiro.
“Compram vinhos e águas, gastam bem, sobretudo os que chegam de avião, porque os dos cruzeiros já estão sempre a pagar”, conta Jorge Cordeiro, enquanto ajuda um casal de turistas a escolher uma garrafa de vinho, num supermercado de Ponta Delgada. “As vendas aumentaram à volta de 30% desde 2014”. Nas ruas de São Miguel, o continental com grana passou a ser o casal com filhos, o jovem pé de chinelo, o nórdico, o americano. E todos gastam. “O continental tem o bolso mais fechado mas, quando tem dinheiro, não esquece ninguém da família!”
30% é, precisamente, o ritmo a que está a crescer a atividade turística nos Açores, nota a secretária Regional da Energia, Ambiente e Turismo. São valores que “manifestam que o potencial turístico dos Açores está a encontrar a sua identidade, ao posicionar-se favoravelmente dentro dos segmentos de procura”, diz Marta Guerreiro.
Se não há hotéis na Ribeira Grande, é normal que os turistas só venham cá de passagem.
O entusiasmo é muito, mas não toca a todos, até porque a ilha não é só Ponta Delgada, nem o arquipélago é só São Miguel.
O senhor Fagundes descansava no banco de trás do seu táxi quando lhe perguntamos se nos pode levar à costa sul. Era meio-dia, estava estacionado na praça da Ribeira Grande desde as nove da manhã e este era o primeiro serviço que ia fazer. “Há dias em que faço 10 euros, outros em que não faço nada”. Nada que o preocupe. “Tenho a vida organizada, a minha pequena reforma e o meu filho a trabalhar em Boston”.
O seu colega Mário Jorge Borges é menos otimista. “As lowcost trouxeram muita gente, mas fica tudo em Ponta Delgada. Para a Ribeira Grande não vem nada. Não tenho clientes estrangeiros, os que tenho são os mesmos clientes de sempre. Mesmo os turistas que vêm cá não deixam dinheiro. Chegam, tiram uma fotografia e vão-se embora“.
Na loja de licores Mulher de Capote, a perspetiva é bem diferente. Idália Ferreira é dona da fábrica que produz o licor mais antigo dos Açores, de 1936, e chegou à Ribeira Grande nos anos 80, vinda dos Estados Unidos, onde estava emigrada. A diferença de então para cá é inegável: “A liberalização teve um impacto muito positivo e quem disser o contrário não diz verdade.”
Desacordos à parte, numa coisa há consenso: tem de haver investimento em todo o arquipélago. “A região tem e é conhecida pelos instrumentos atrativos que tem em termos de investimento, em especial nesta área, para o turismo”, refere Marta Guerreiro, adiantando ainda que está previsto o “desenvolvimento dos produtos primários diferenciados em cada uma das ilhas do arquipélago”.
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Crónica de uma ilha liberalizada. São todos contra todos e, no fim, ganham todos
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