Limite máximo de quatro pessoas por grupo perto das escolas gera descontentamento nos restaurantes, cafés e pastelarias. Dizem que a medida é "sem sentido" e que não têm autoridade para a fiscalizar.
Com a entrada em vigor do estado de contingência e o regresso à escola de cerca de 1,2 milhões de estudantes, o Governo anunciou que estão proibidos ajuntamentos de grupos com mais de quatro pessoas em todos os restaurantes, cafés e pastelarias que estejam localizados num raio de 300 metros dos estabelecimentos de ensino.
Se à primeira vista medida poderia vista como mais um esforço para travar a Covid-19, certo é que a decisão está a gerar descontentamento por parte dos estabelecimentos comerciais. Segundo os proprietários, trata-se de uma “medida de gabinete”, “sem sentido”, “injusta” e que, em último caso, poderá gerar conflito com os clientes.
“É uma atitude ad hoc, uma atitude feita de gabinete sem pensar que a 310 metros podemos ter outros estabelecimentos que já podem ter cinco, seis ou dez pessoas“, afirma ao ECO, José Manuel Sá, gerente do restaurante Barrosã. Para o dono deste estabelecimento em Alvalade, a medida é “ridícula” e “não tem sentido”, não só pelo facto de este restaurante não ser “dedicado a crianças e estudantes”, mas também pelo facto de os responsáveis não se sentirem com autoridade para fiscalizar o seu cumprimento.
José Sá alerta que a decisão poderá gerar conflito na relação com os clientes, o que prejudicará o negócio. “Nós não somos polícias, nem temos esse papel. E se o fizermos vamos criar uma reação negativa das pessoas. Uma coisa é um polícia dizer-lhe uma coisa a si, outra coisa é um empregado de mesa que lhe está a dar uma ordem”, atira.
A opinião de que não tem “autoridade para impedir ajuntamentos” e de que “é para todos ou não é para ninguém” é partilhada pelo dono do Café da Drogaria, poucos metros ao lado do restaurante Barrosã e também na rua paralela à rua Escola EB 2,3 Eugénio dos Santos. Tal como vários comerciantes, Delfim Catonito já viu o seu negócio “ter melhores dias” e, por isso, acha que haveria medidas mais adequadas para combater o negócio.
Empresários não querem assumir “autoridade”
Outra das questões levantadas pelo dono do Café da Drogaria é como é que os estabelecimentos vão conseguir efetivamente implementar a medida sem entrar na esfera pessoal dos clientes. “Nós não podemos estar a perguntar aos clientes se fazem parte do mesmo agregado familiar“, justifica, acrescentado que é da responsabilidade individual o cumprimento ou não da norma.
“Eu posso estar aqui a dizer que não podem estar mais do que quatro e vão lá para fora e estão dez ou quinze”, sublinha Delfim Catonito. Certo é que segundo a resolução do Conselho de Ministros publicada em Diário da República, a fiscalização compete às “forças e serviços de segurança e as polícias municipais”, tal como aconteceu com as medidas aplicadas durante o estado de emergência.
Quando me vierem aqui exigir coisas eu entrego-lhes a chave, vou com o pessoal para casa e as pessoas que fiquem aqui a implementar os serviços e depois que deem rentabilidade ao fim do mês”.
E os incumpridores podem até incorrer em contraordenações, tal como acontece com o uso obrigatório de máscaras em escolas, transportes públicos e comércio ou a proibição do consumo de bebidas alcoólicas na via pública. Nesse sentido, os infratores podem ser punidos com “uma coima de 100 a 500 euros para pessoas singulares e de 1.000 a 5.000 euros para pessoas coletivas, sem prejuízo da responsabilidade civil do infrator nos termos gerais do direito”, segundo explicou fonte oficial do Ministério da Administração Interna, ao ECO. Em caso de negligência os montantes referidos são reduzidos em 50%.
Contudo, a penalização legal parece não assustar José Manuel Sá. “Não sei se tem multas ou se não tem multas. Mas quando me vierem aqui exigir coisas eu entrego-lhes a chave, vou com o pessoal para casa e as pessoas que fiquem aqui a implementar os serviços e depois que deem rentabilidade ao fim do mês”, confidencia o dono do restaurante Barrosã, visivelmente incomodado.
Menos contestatário é António Varela, dono da Pastelaria Jacaré Paguá, na Avenida de Roma. Há 30 anos a trabalhar numa das avenidas mais movimentadas de Lisboa, conhece “perfeitamente” as pessoas da zona e muitos dos estudantes da Escola Secundária Rainha Dona Leonor que por ali passam. “Eles conhecem-me perfeitamente e respeitam-me. Sou quase como um professor para eles”, conta ao ECO, orgulhoso.
Assim, António diz que a proximidade com os alunos e residentes e o facto de ter poucas mesas faz com que a implementação da medida seja mais “fácil de resolver”. Dentro da pastelaria só se podem sentar duas pessoas em cada mesa, ao passo que na esplanada tem quatro mesas, com cadeiras para quatro, três e duas pessoas. Mais do que isso, não deixa. “Não posso deixar, não é permitido”, defende.
Tal como José Sá e Delfim Catonito, António Varela considera que a medida “não tem sentido nenhum”, já na escola os estudantes “acabam por estar todos juntos”, mas “leis são leis” e têm de ser cumpridas, defende. Posição bem diferente tem Vítor Ramos, empregado de mesa no Restaurante Sequoia, também em Alvalade, que considera que a medida “faz sentido”, já que se “tem de se fazer de tudo o que estiver ao nosso alcance para minimizar a propagação do vírus”.
E o que acham os clientes?
Mas o descontentamento generalizado não é apenas dos donos dos estabelecimentos comerciais. Sentado na esplanada do Café da Drogaria enquanto espera que a filha saia da escola, Nuno Félix confidencia que como consumidor a medida não o “incomoda” ou afeta “grande coisa”. Contudo admite que “este tipo de medidas” têm afetado “bastante” o negócio da restauração.
Para Nuno Félix trata-se de uma questão de “vários pesos e várias medidas”, já que os estabelecimentos estão limitados quanto ao número de clientes que podem receber, mas, em contrapartida, em espaços públicos não há esse controlo. “Se for ali à porta da escola estão ali dezenas de pessoas em cima umas das outras à espera que os filhos saiam da escola. Quer dizer estas medidas de distanciamento social caem por terra necessariamente nestes momentos“, denuncia.
Se for ali à porta da escola estão ali dezenas de pessoas em cima umas das outras à espera que os filhos saiam da escola. Quer dizer estas medidas de distanciamento social caem por terra necessariamente nestes momentos”.
Certo é que esta medida vai vigorar até 30 de setembro, altura em que deverá ser revista em conjunto com as restantes regras do estado de contingência. Mas neste tempo de adaptação à nova lei, nem todos respeitam as novas regras. “Eu sei. Até tinha falado com eles, mas tenho fome e preciso de comer” diz ao ECO, de resposta na língua, um jovem, quando questionado sobre o facto de estar a almoçar na mesma mesa com mais quatro amigos.
Mais contido, outro amigo apronta-se a justificar que “veio uma pessoa a mais” que não estava prevista e “como é só mais uma pessoa, não faz assim tanta diferença”, justifica. “Mas nós temos cuidados. Usamos máscara, álcool-gel e temos cuidado para não tocar em coisas desnecessárias“, garante o outro amigo.
Esta foi uma das várias medidas implementadas pelo Governo para travar o número de casos de Covid-19 em Portugal, no âmbito da entrada no país no estado de contingência. Com o regresso às aulas há mais pessoas a circularem e, por isso, o primeiro-ministro diz que o objetivo é evitar “grandes ajustamentos à saída da escola”, nomeadamente nos estabelecimentos próximos onde os alunos tendem a juntar-se, apontou António Costa.
Certo é que os números de casos de infeção não param de aumentar, tendo chegado a ultrapassar a fasquia de 600 novos casos por vários dias. Face a esta subida, o primeiro-ministro convocou uma reunião de urgência com o gabinete de crise para o acompanhamento do ponto de situação. À saída, António Costa alertou esta sexta-feira que, “a manter-se” a tendência atual de crescimento da pandemia, “chegaremos a 1.000 novos casos por dia na próxima semana”.
Também o Presidente da República veio dizer que o aumento “não é uma boa notícia”, apelando aos portugueses que cumpram com as normas delineadas pelo Executivo sem que seja necessário intervenção por parte das autoridades policiais. “[As medidas] só produzem efeitos se as pessoas ajudarem. Não há máquina de Estado em condições de aplicar sanções se forem incumpridas. É impossível estar atrás de todas as pessoas”, conclui Marcelo Rebelo de Sousa.
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“Nós não somos polícias” para estar a proibir mais do que quatro pessoas numa só mesa
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