Prova dos 9. Houve perdão de dívida ao Fundo de Resolução?
A chave está no diferencial entre o que o Estado vai pagar aos credores internacionais durante 30 anos e aquilo que os bancos lhe pagarão a si. E, aí, o Estado perde.
Foi o tema quente da última audição a Mário Centeno. Na Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa (COFMA), o ministro das Finanças foi repetidamente confrontado com a renegociação do empréstimo de 3,9 mil milhões de euros concedido ao Fundo de Resolução para este capitalizar o Novo Banco. A questão que se impõe é: com uma renegociação que permitiu que um empréstimo que deveria ter sido pago no ano passado vá, afinal, ser pago até 2046, há, ou não, um perdão de dívida aos bancos que suportam o Fundo de Resolução?
As afirmações
A questão foi lançada pelo deputado social-democrata António Leitão Amaro. “Qual o valor atualizado líquido dos pagamentos que o Estado recebe por este empréstimo?”
Mário Centeno fugiu sempre a responder. Primeiro, atacou a situação em que o anterior Governo deixou o Fundo de Resolução para explicar a necessidade de renegociação do empréstimo, sem a qual, diz, não haveria qualquer reembolso, porque os bancos não tinham capacidade para cumprir as condições a que estavam obrigados inicialmente.
“Não foi acautelada a solvabilidade e a sustentabilidade do Fundo de Resolução. Não sei se houve alguma conta feita sobre a capacidade do Fundo de Resolução de dar resposta, com os fundos que tinha, à resolução do BES. E não sei se o senhor deputado sabe as consequências patrimoniais e de solvabilidade das instituições financeiras que tem o Fundo de Resolução não ser solvente“, começou por dizer Centeno.
Leitão Amaro insistiu na mesma pergunta e Centeno respondeu o seguinte: “Esse valor atualizado hoje existe e sem o empréstimo não existia, porque não existia solvência do Fundo de Resolução”.
De seguida, deixou a garantia de que não há um perdão de dívida. “O que foi acordado foi uma solução que permitisse essa solvência, que permitisse que os bancos conseguissem cumprir com todas as suas obrigações para com o fundo, pagando um juro — não há nenhum perdão — com um spread acima da República“.
O contexto
Em agosto de 2014, o Banco de Portugal aplicou uma medida de resolução ao Banco Espírito Santo (BES). A medida implicou a divisão do banco em “mau” e “bom”. Do “bom”, nasceu o Novo Banco, que teve de receber uma injeção de capital de 4,9 mil milhões de euros. Esta injeção foi assegurada pelo Fundo de Resolução, que, contudo, não tinha verbas suficientes para avançar com este total. Portanto, o Estado emprestou 3,9 mil milhões de euros aos bancos que suportam o Fundo de Resolução.
Mais tarde, em dezembro de 2015, nova medida de resolução, desta vez ao Banif. O Estado teve de fazer uma injeção de 2.255 milhões de euros no banco madeirense, dos quais 1.766 vieram diretamente do Orçamento do Estado e os restantes 489 milhões do Fundo de Resolução. Uma vez mais, o fundo não tinha capitais disponíveis para avançar com esta injeção. Portanto, houve novo empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, no valor, precisamente, de 489 milhões de euros.
Entretanto, os bancos já reembolsaram 136 destes 489 milhões. Resta pagar, assim, 353 milhões do empréstimo concedido para resolver o Banif.
Feitas as contas, o Fundo de Resolução ainda tem de pagar 4,25 mil milhões (mais precisamente, 4.253.000.000) ao Estado.
As condições acordadas em agosto de 2014, na altura pelo Governo de Passos Coelho, previam que os bancos tivessem dois anos para reembolsar os 3,9 mil milhões de euros ao Estado, com juros a rondar os 8%. Já o empréstimo para a resolução do Banif estaria sujeito a juros de 1,38%. Em agosto de 2016, os 4,25 mil milhões, mais juros, já teriam de ter sido pagos.
O cenário atual
A 21 de março de 2017, o Governo de António Costa renegociou as condições do empréstimo concedido ao Fundo de Resolução. A explicação dada hoje é simples: as condições anteriores eram insustentáveis e os bancos não iam conseguir pagar. Ou, se pagassem, teriam de ser resgatados logo de seguida.
“Era impossível que o Fundo de Resolução, ao fim de dois anos, devolvesse os 3,9 mil milhões que recebeu. Já nem falo da taxa de juro de 8%. O empréstimo que fizeram ao Fundo de Resolução não era sustentável. Não era reembolsável. Ia ser reembolsado zero”, disse Centeno no Parlamento.
O que o atual Governo fez, acrescentou, “foi criar as condições para que esse empréstimo seja sustentável, para que se consiga criar estabilidade no sistema financeiro e para que os depósitos estejam seguros”.
As condições são estas, segundo o documento disponibilizado pelo Fundo de Resolução:
- Os bancos têm agora até 2046 para reembolsar o Estado. A partir de 31 de dezembro de 2017 e até 31 de dezembro de 2021, pagarão uma taxa de juro anual de 2%. A partir dessa data, essa taxa será revista a cada período de cinco anos, passando a considerar-se a taxa de juro anual que Portugal paga para emitir dívida a cinco anos. A esse juro, acresce um spread de 0,15%. Isto no caso do empréstimo para a injeção no Novo Banco.
- No caso do empréstimo concedido para a resolução do Banif, os bancos pagarão uma taxa de juro anual de 1,38% até 31 de dezembro de 2020. A partir dessa data, as condições são as mesmas que no primeiro caso.
As acusações
São essas condições que a oposição contesta. “O problema não é terem feito a renegociação, foram as condições a que chegaram, dando, por isso, um claro perdão de dívida aos bancos“, afirmou Leitão Amaro. A sustentá-lo, os cálculos de dois economistas: Ricardo Cabral e João Duque. O primeiro defende que as novas condições de pagamento do empréstimo implicam um perdão de 44,7% da dívida dos bancos. O segundo calcula que a renegociação implique que o Estado vá perder 1,7 mil milhões deste empréstimo.
Ao ECO, João Duque explica o raciocínio. “O empréstimo é a 30 anos, mas as taxas de juro são atualizadas de acordo com a yield do prazo de cinco anos. Quando o Estado pede a dez anos, não pede para lhe emprestarem à taxa de três meses”, refere o economista.
Em causa, diz, está a taxa de juro a que o Estado se financia. É que, para emprestar dinheiro ao Fundo de Resolução, o Estado teve, ele próprio, de pedir emprestado aos credores internacionais.
Prova dos 9
Há um “claro perdão de dívida aos bancos”, como diz Leitão Amaro? Há. E não há, se, num cenário quase milagroso, Portugal passasse a financiar-se a 30 anos ao mesmo custo com que se financia a cinco. Certo é que não é possível calcular hoje, com certeza, qual a fatura para o Estado.
Recuemos. A 21 de março, Portugal pagava uma taxa de juro de 4,79% para se financiar a 30 anos. Nessa mesma data, acordou com os bancos que eles pagariam uma taxa de 2% (um valor próximo, mas abaixo, dos juros que Portugal paga para se financiar a cinco anos, atualmente de 2,21%) pelo empréstimo de 3,9 mil milhões. Pelo empréstimo de 353 milhões, pagariam um juro de 1,38%.
A chave está no diferencial entre o que o Estado vai pagar aos credores internacionais durante 30 anos (um juro de 4,79%) e aquilo que os bancos lhe pagarão a si (juros na casa dos 2%).
O problema é que não é possível afirmar, hoje, que as taxas de juro que Portugal paga hoje se mantêm iguais ao longo de 30 anos. A tendência, diz João Duque, até é de aumento dos juros. Mas, no limite, as taxas de juro a cinco e a 30 anos podem ficar iguais. “Nesse caso, não temos prejuízo nenhum”, admite o economista. Mas o facto é que, com as condições atuais “só nos últimos cinco anos do contrato com os bancos é que a taxa corresponderá ao prazo do resto do contrato”.
Há ainda que contar com outro fator que pode reduzir este “perdão” de dívida. Segundo explicou o economista Ricardo Cabral ao Público, o Fundo de Resolução poderá conseguir pagar o empréstimo antes do prazo de 2046. Isto porque o modelo encontrado está desenhado para que os bancos não tenham de pagar mais de 100 milhões de euros, por ano, em juros. Ao mesmo tempo, estima-se que as receitas do Fundo de Resolução, resultantes das contribuições do setor bancário, sejam de cerca de 250 milhões de euros por ano. O fundo fica, assim, com margem de manobra para pagar mais rapidamente, reduzindo a fatura do que o Estado perde.
Mas, assumindo que as condições de financiamento de 21 de março se mantêm pelos 30 anos seguintes, haverá, como dizem João Duque e Ricardo Cabral, um perdão de dívida.
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