Onde estão as cativações? Centeno foge. O ECO ajuda
Mário Centeno diz que está tudo na Conta Geral do Estado. Mas o documento sistematiza e explica sobretudo as verbas libertadas. Quanto ao que ficou cativo, a leitura é mais complexa.
Quais foram, exatamente, os gastos que ficaram por fazer no ano passado, por causa das cativações? E em que ministérios? Estas perguntas foram repetidas pelos deputados da Assembleia da República, durante a audição do ministro das Finanças, esta quarta-feira. Ao final do dia, Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, repetiu as perguntas. No Parlamento, Mário Centeno remeteu a resposta para a Conta Geral do Estado, mas consultado o documento, não é fácil encontrar as verbas que acabaram por ser cortadas. Ainda assim, em 352 páginas de relatório, o ECO encontrou respostas.
“Aparece certamente como um ‘Ronaldo das Finanças’, mas entretanto as despesas correntes ficaram congeladas”, criticou a deputada bloquista, Mariana Mortágua, durante a comissão de Orçamento e Finanças, onde o ministro foi ouvido, ao abrigo do regimento. “Se não quer que se faça uma interpretação errada, explique onde é que estão as cativações,” continuou, argumentando que as interpretações que estão a ser feitas sobre as consequências das cativações “são legítimas” enquanto não se souber “onde é que estas verbas estão a ser cativadas.”
"Se não quer que se faça uma interpretação errada, explique onde é que estão as cativações.”
Ao final do dia, Passos Coelho reforçou a pressão: “O que é que se cortou? Porque é que não dizem? O que é que estava planeado e não se fez?” O líder da oposição endureceu o discurso e duvidou de que fosse possível cortar “mil milhões de euros sem tocar na saúde, educação, na defesa, na administração interna.”
Durante a manhã, no Parlamento, Mário Centeno preferiu dizer onde é que não estão as cativações — e sublinhou que não estão na Saúde, nem na Educação, nem na Lei de Programação Militar. Mas a pergunta mantinha-se, e a deputada repetiu-a: “Ao contrário, diga onde é que estão.” No final da reunião, o BE entregou uma pergunta formal ao Governo, pedindo precisamente informação sobre os montantes cativados em 2016 e 2017, por rubrica, por classificação orgânica, funcional, económica, ou outra que seja considerada relevante.
Está tudo na Conta Geral do Estado?
Durante a reunião, o ministro remeteu para a Conta Geral do Estado, garantindo que está lá tudo explicado. O problema é que não é assim tão simples. Consultado o documento, verifica-se que há informação sistematizada sobre as rubricas em que as cativações foram aplicadas e quais foram os programas que justificaram a parte fundamental das descativações. Ou seja, identifica os motivos que levaram Mário Centeno a dizer “sim”, perante um pedido de libertação de verbas. Mas não dá conta — pelo menos de forma igualmente clara e sistematizada — das vezes em que o ministro disse “não”. E estas é que justificam os 942,7 milhões de euros cortados efetivamente à despesa.
O gráfico seguinte mostra, por classificação económica, as cativações aplicadas e os montantes libertados pelo ministro das Finanças ao longo do ano.
Onde foram aplicados os cativos, e o que foi descativado?
Conta Geral do Estado, 2016
Verifica-se que a rubrica com um valor maior de cativos foi a de aquisição de bens serviços — e que foi também para esse mesmo fim que Centeno libertou mais verbas. Vê-se também que, apesar de tudo, foi aqui, juntamente com outras despesas correntes, que os cortes mais se concretizaram.
Mas sobre os cortes concretizados, ou seja, as tais vezes em que Centeno disse “não” e as cativações ficaram mesmo congeladas, o detalhe é curto. Este é o gráfico que mostra os valores em causa:
O que ficou definitivamente cortado?
Fonte: Conta Geral do Estado, 2016
Nos mapas anexos da Conta Geral do Estado há mais informação sobre a forma como se distribuem estes cativos finais (os valores que ficaram mesmo cortados), mas a informação não está explicada e por isso é mais difícil de conjugar com o que consta no resto do relatório.
Por exemplo: o valor total dos cativos finais identificados nestes mapas não corresponde exatamente ao valor que consta do quadro por classificação económica. Enquanto aqui o total dos cativos finais é de 942,7 milhões de euros, para a Administração Central, nos mapas por classificação orgânica (por ministério) ou por classificação funcional o total ascende a 1.006,7 milhões de euros, também para a Administração Central.
Ainda assim, e porque estas formas de organização da informação acrescentam, vale a pena ver os próximos gráficos:
Em que funções foram aplicados os cortes?
Fonte: Conta Geral do Estado
E em que ministérios?
Fonte: Conta Geral do Estado
Analisada a informação disponível, há dois dados que saltam à vista: tanto na Educação como na Saúde — áreas em que o ministro das Finanças garantiu que não há cativações — estão identificados valores cativos, ou seja, cortes definitivos. Estão registados cerca de 40 milhões de euros de cortes na Educação, e cerca de 80 milhões na Saúde.
Mas afinal há cativações na Saúde e na Educação?
Contactado, o Governo manteve a sua palavra. “Tal como referido pelo ministro das Finanças na COFMA [comissão parlamentar] do dia 5 de julho, não se verificaram cativações na Saúde, ou seja no Serviço Nacional de Saúde (hospitais e centros de saúde), nem na Educação, ou seja, nas Escolas. Estes estabelecimentos são o que normalmente se entente por Saúde e Educação e são responsáveis pela quase totalidade da despesa dos Ministérios da Saúde e da Educação,” respondeu fonte oficial do Ministério das Finanças.
Então como se justifica que apareçam aqueles valores cativos? “Os Ministérios da Educação e da Saúde têm, para além dos estabelecimentos de ensino e de saúde, outros serviços de natureza administrativa e funcional que não se distinguem dos existentes noutros ministérios. É nesta área (transversal a todos os ministérios) que as cativações se aplicam, e também acontece nestas áreas destes ministérios em concreto“, explica.
Traduzindo: há cativações, mas não são em rubricas que implicam diretamente o serviço aos utentes dos hospitais e centros de saúde, nem aos alunos, garante o Executivo. O Governo acrescenta ainda que “o conjunto das áreas funcionais da Educação e Saúde têm na verdade uma execução com reforços muito substanciais, de várias centenas de milhões.” No final das contas, a despesa executada pela Educação e Saúde aumentou face a 2015. A polémica da suborçamentação da Educação marcou, aliás, o arranque da discussão do Orçamento do Estado deste ano e o facto de o Governo garantir que não há cativações, não quer dizer que os hospitais, os centros de saúde e as escolas não sintam aperto orçamental — essa é outra questão.
Mesmo assim, continuam por responder algumas informações pertinentes: quais foram os gastos concretos que ficaram por fazer, por falta de aprovação por parte do ministro das Finanças da verba necessária? Correspondem a cortes nas gorduras do Estado, e portanto a decisões de boa gestão, ou a cortes que colocam em causa os serviços? A Conta Geral do Estado não permite responder, porque a informação que o Governo é obrigado a prestar neste âmbito não inclui que sejam identificados os pedidos de libertação de verbas recusados.
Os gastos que o ministro aprovou
Ainda assim, a Conta Geral do Estado especifica as vezes em que Centeno disse “sim” aos pedidos de libertação de cativos. Aqui fica a informação disponível, de forma sistematizada, dos valores libertados ao longo do ano.
Nas despesas com pessoal:
- 35,7 milhões foram para o IEFP pagar encargos com retroativos salariais associados aos concursos de promoção de 2004, 2005 e 2016;
- 8,8 milhões foram para a Direção-geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), pelo fim dos cortes salariais;
- 3 milhões para a Polícia Judiciária, também pela reversão dos cortes;
- 1,5 milhões para o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGEFJ), pelo mesmo motivo;
- 4,6 milhões para a Assembleia da República e a Presidência da República, pela reversão da redução remuneratória.
Em aquisição de bens e serviços:
- 45,7 milhões de euros para o Planeamento e Infraestruturas. Aqui destacam-se os compromissos com as PPP rodoviárias, bem como manutenção e exploração da rede rodoviária e conservação da ferrovia. Também foram pagos novos contratos de consumo de eletricidade e combustível, manutenção e reparação de material circulante da CP.
- 31,8 milhões de euros para Segurança Interna. Destaca-se a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, que recebeu 10,9 milhões de euros e a Proteção Civil, que viu 7,1 milhões libertados. O SEF ganhou mais 5,3 milhões de euros. Mas estes montantes foram sobretudo para pagar despesas com o pessoal da GNR e PSP.
- 27,9 milhões de euros para Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Foram sobretudo para a Fundação da Ciência e Tecnologia, para pagar bolsas. Também houve instituições do Ensino Superior com verbas reforçadas, como por exemplo a Universidade de Coimbra e a Universidade do Porto, entre outras.
- 21,1 milhões para a Justiça. Foram para o IGFEJ, a DGRSP e a Direção-geral da Administração da Justiça, sobretudo para pagar apoio judiciário e serviços postais dos tribunais, bem como alimentação, medicamentos, material de consumo clínico e prestação de serviços de saúde a reclusos.
- 20 milhões para o Ensino Básico e Secundário e Administração Escolar. Destaca-se a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. Também a Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares e a Secretaria-Geral, para reforço das despesas com pessoal das escolas básicas e secundárias, devido à reversão da redução remuneratória, quebra de receita do Fundo Social Europeu e outros fatores.
- 16,6 milhões para a Defesa. O Exército e a Força Aérea foram as entidades onde se verificaram mais descativações, para aplicação em despesas com pessoal, devido à reversão da redução remuneratória.
Outras despesas correntes:
- 108,8 milhões para o Ensino Básico e Secundário e Administração Escolar. Foi na totalidade para o Instituto de Gestão Financeira da Educação, para pagar despesas com pessoal e despesas com a Segurança Social, devido à reversão dos cortes e à quebra de receita do Fundo Social Europeu.
- 38,3 milhões em Segurança Interna. As principais descativações ocorreram na Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, para pagar despesas com pessoal da GNR e da PSP, relacionadas essencialmente com a reversão da redução salarial.
- 33,5 milhões na Justiça. Novamente para o pagamento de apoio judiciário e serviços postais dos tribunais, assim como a alimentação, os medicamentos e material de consumo clínico e a prestação de serviços de saúde dos reclusos, e para reforço das despesas com pessoal na Direção-Geral da Administração da Justiça.
Investimento:
- 207,4 milhões de euros no Planeamento e Infraestruturas. Serviram para a Infraestruturas de Portugal pagar os contratos das PPP rodoviárias e os contratos de manutenção e exploração da rede rodoviária e a conservação ferroviária no âmbito do Plano Ferrovia 2020.
Passivos Financeiros
- 60,7 milhões de euros para a Metro do Porto pagar compromissos previamente contratualizados, nomeadamente para amortizar empréstimos.
Também há cativações este ano?
Sim. No Orçamento do Estado para este ano a estratégia parece repetir-se. De acordo com a análise da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) à proposta de Orçamento do Governo, há outra vez mais de 1.500 milhões de euros que só podem ser usados se o ministro deixar.
Neste valor estão incluídos 522,5 milhões de euros de cativações e reservas orçamentais, 535 milhões de euros da dotação provisional e outros 500 milhões de euros de dotações centralizadas. Estas verbas correspondem a despesas para a aquisição de bens e serviços (488,9 milhões de euros), 100 milhões de euros de investimentos e 968,6 milhões para outras despesas correntes.
E apesar de já haver dados de execução orçamental até maio, não é possível identificar quais foram as verbas libertadas pelo ministro até ao momento e para que programas ou organismos. Conforme explica a nota da UTAO enviada esta quarta-feira aos deputados, os dados da DGO permitem ver que “no período de janeiro a maio de 2017, a dotação provisional não foi utilizada e a reserva orçamental foi reafetada residualmente.” Estão em causa 535 milhões de euros da dotação provisional e 433,6 milhões da reserva orçamental. Mas não é possível identificar o ponto de situação dos cativos, que não constam nestes valores.
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