Do “se e só se” ao “valor expressivo”. O que mudou no discurso do Governo sobre o Novo Banco
Dois anos após a venda do Novo Banco, o Fundo de Resolução já foi chamado a injetar quase dois mil milhões no capital da instituição. Este era um cenário que António Costa considerava improvável.
A 31 de março de 2017, António Costa e Mário Centeno juntavam-se na residência oficial do primeiro-ministro para explicar as condições da venda do Novo Banco ao fundo norte-americano Lone Star. Era o culminar de um processo iniciado a 3 de agosto de 2014, dia da resolução do Banco Espírito Santo (BES), e o desfecho da segunda tentativa de venda do Novo Banco, depois de a primeira ter sido fechada sem que fosse encontrado um comprador.
Na altura, os dois governantes defenderam três ideias chave: o cenário de liquidação da instituição estava afastado; não haveria qualquer impacto, direto ou indireto, para as contas públicas ou para os contribuintes; e seria salvaguardada a estabilidade do sistema financeiro, até porque o Fundo de Resolução só seria chamado a capitalizar o Novo Banco quando se verificassem situações muito específicas. Passaram dois anos e, desde então, o Fundo de Resolução já foi chamado a injetar quase dois mil milhões de euros no banco, um montante que já levou o Ministério das Finanças a pedir uma auditoria à concessão de créditos por parte do antigo BES e Mário Centeno a disponibilizar-se de imediato para ir ao Parlamento prestar esclarecimentos sobre a situação do Novo Banco. O que aconteceu? E o que mudou no discurso do Governo desde então?
Na apresentação de 31 de março de 2017, o primeiro-ministro começava por assegurar que as três condições estabelecidas para a concretização da venda tinham sido alcançadas:
- “Está afastado o espetro da liquidação do banco e assegurada a sua continuidade. O Novo Banco continuará a cumprir o seu papel muito relevante no financiamento da economia, com proteção integral dos depositantes e sem novos sacrifícios involuntários dos detentores das obrigações do banco”;
- “Não existirá impacto direto ou indireto nas contas públicas, nem novos encargos para os contribuintes. Ao contrário do inicialmente proposto, não é concedida qualquer garantia por parte do Estado ou de qualquer outra entidade pública. O necessário reforço de capital é integralmente assegurado pelo investidor privado e eventuais responsabilidades futuras não recairão sobre os contribuintes, mas sobre os bancos, que asseguram o capital do Fundo de Resolução”;
- “É também salvaguardada a estabilidade do sistema financeiro no seu conjunto. Por um lado, porque eventuais responsabilidades futuras estão substancialmente garantidas pelo conjunto de ativos confiados à gestão do Fundo de resolução. Por outro lado, porque não serão exigidas aos bancos quaisquer contribuições extraordinárias e, finalmente, porque o Fundo de Resolução ainda beneficiará da futura alienação dos 25% de capital que continuará a deter”.
A solução encontrada, considerada “equilibrada” e suficiente para proteger “os contribuintes, a economia e a estabilidade do sistema financeiro”, implicou duas injeções de capital no Novo Banco, por parte do Lone Star. Ao todo, foram mil milhões de euros, dos quais 750 milhões no momento da conclusão da operação e outros 250 milhões mais tarde. Por via desta injeção, o Lone Star passou a deter 75% do Novo Banco, ficando o Fundo de Resolução com os restantes 25%.
Ao mesmo tempo, foi criado um mecanismo de capitalização contingente, que pode ser acionado até 2026 e que prevê injeções de capital no Novo Banco, por parte do Fundo de Resolução, no valor máximo de 3,89 mil milhões de euros. Mas, para que o mecanismo seja ativado, é preciso que se reúnam, cumulativamente, duas condições:
- Que o conjunto de ativos do Novo Banco considerados tóxicos, avaliados em 7,9 mil milhões de euros, sofram uma desvalorização face ao seu valor de referência no balanço;
- Que os rácios de capital do Novo Banco, por via dessas desvalorizações, baixem de cerca de 12,5%.
Quando ambas estas condições se verificam, o mecanismo de capital é ativado, mas apenas no montante necessário para repor o rácio de capital no nível previsto no contrato, e não para compensar o Lone Star por quaisquer perdas com os ativos. Foi a este modo de funcionamento que António Costa se agarrou, em março de 2017, para defender o “equilíbrio” da solução encontrada. “O mecanismo que existe [prevê] que o Fundo de Resolução, relativamente a um conjunto de ativos bem preciso, terá de cobrir necessidades de capital, se e só se, quando e só quando, em resultado de um evento relativamente a algum desses créditos, o rácio de capital baixar dos 12,5% — e na estrita medida para repor o rácio nos 12,5%“.
O Fundo de Resolução, relativamente a um conjunto de ativos bem preciso, terá de cobrir necessidades de capital, se e só se, quando e só quando, em resultado de um evento relativamente a algum desses créditos, o rácio de capital baixar dos 12,5%. Para que haja essa necessidade, era preciso que houvesse uma sucessão de eventos de crédito superiores a 600 milhões.
Por esta altura, o primeiro-ministro antecipava também que seria pouco provável que o Fundo de Resolução fosse chamado a injetar quantias significativas de capital. “Com o nível de capitalização previsto [feito então pelo Lone Star], os rácios de capital sobem acima dos 15%. Entre os 15,5% e os 12,5%, haverá cerca de 600 milhões de euros de distância. Para que haja essa necessidade, era preciso que houvesse uma sucessão de eventos de crédito superiores a este montante, que afetassem o capital e que obrigassem a repor o capital, não no montante dos 600 milhões, mas no montante necessário para atingir outra vez os 12,5%. É um mecanismo muito distinto de uma garantia”, assegurava então o primeiro-ministro.
Só que, passados dois anos desta venda, o Novo Banco já solicitou duas injeções de capital ao Fundo de Resolução que ultrapassam em muito esses 600 milhões: a primeira, no ano passado, no valor de 792 milhões de euros e a última, já este mês, no montante de 1.149 milhões, depois de ter reportado prejuízos de 1.412 milhões de euros no exercício de 2018. Se esta segunda injeção acabar por ser feita exatamente neste valor, o Fundo de Resolução já terá mobilizado 1.941 milhões para capitalizar o Novo Banco, aproximando-se a um ritmo acelerado do máximo de 3,89 mil milhões que poderá disponibilizar, de acordo com o que ficou definido no contrato de venda.
A justificar estes prejuízos de 1,4 mil milhões, que por sua vez levaram o Novo Banco a recorrer novamente ao Fundo de Resolução, estão as vendas de crédito malparado ao longo do ano passado, incluindo uma carteira de 2.150 milhões de euros em dezembro, que são reconhecidas como perdas nas contas. As imparidades e provisões que são constituídas para cobrir estas perdas com a desvalorização de ativos foram, assim, significativamente reduzidas, em mais de 65% — mesmo assim, o banco ainda tinha 710 milhões de euros em imparidades no exercício de 2018.
É neste cenário que o Governo muda agora de discurso e vem até pedir uma auditoria ao Novo Banco, para analisar o processo de concessão de créditos que foram dados ainda no tempo do BES e de Ricardo Salgado. “Dado o valor expressivo das chamadas de capital em 2018 e 2019, o Ministério das Finanças, em conjugação com o Fundo de Resolução, considera indispensável a realização de uma auditoria para o escrutínio do processo de concessão dos créditos incluídos no mecanismo de capital contingente“, indicou o Ministério de Mário Centeno, em comunicado emitido na semana passada. Ainda assim, o Ministério ressalvou que o montante pedido ao Fundo de Resolução ainda está “dentro do limite” que ficou definido no momento da venda.
Porventura, uma comissão parlamentar de inquérito seria mais adequada para fazer uma apreciação da atuação do Banco de Portugal neste processo.
Esta quarta-feira, António Costa já foi mais longe e, para responder à vontade de Marcelo Rebelo de Sousa, que considera que a auditoria deveria ser feita ao período após a resolução do BES, admitiu que se constitua uma nova comissão de inquérito, mas para avaliar a atuação do Banco de Portugal. Isto porque, como lembrou o primeiro-ministro, a fase posterior à resolução foi “conduzida diretamente” pelo Banco de Portugal e “não cabe ao Governo supervisionar o Banco de Portugal”. Assim, sugeriu: “Porventura, uma comissão parlamentar de inquérito seria mais adequada para fazer uma apreciação da atuação do Banco de Portugal neste processo“.
Importa recordar que, no ano passado, no documento em que fundamentava a autorização dada a Portugal para vender o Novo Banco ao Lone Star, a Comissão Europeia concluía que esta instituição manteve algumas das más práticas do BES. “As práticas do BES contribuíram para a sua falência. Mas, mesmo depois da fundação do banco de transição e sob o controlo direto do Banco de Portugal, o Novo Banco parece ter feito muito pouco para remediar práticas de crédito problemáticas“, apontou então a Comissão Europeia.
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