Morreu Alexandre Soares dos Santos, o Sr. Jerónimo Martins
"Senhor de uma personalidade poderosa e magnética, de presença imponente, não deixa ninguém indiferente". As palavras são sobre Alexandre Soares dos Santos e estão retratadas numa publicação da JM.
Alexandre Soares dos Santos, antigo líder do grupo Jerónimo Martins, morreu esta sexta-feira aos 84 anos. A notícia está a ser avançada pelo jornal Público.
“Só tive sorte na vida”. A frase é de Alexandre Soares dos Santos, um dos empresários mais emblemáticos do país, com uma fortuna avaliada em 3.419 milhões de euros, segundo dados da Forbes. Ainda assim, sempre defendeu que só queria deixar aos filhos “um exemplo de vida”.
Alexandre Soares dos Santos nasceu no Porto em 1934. Com um ano de idade, muda-se para Lisboa para o colégio académico dos Anjos. Regressa mais tarde ao Porto para fazer o liceu em regime de aluno interno e, conhece, como colega de carteira, Francisco Sá Carneiro, que anos mais tarde viria a ser primeiro-ministro.
Os tempos eram outros e as visitas a Lisboa aconteciam apenas duas vezes ao ano, no Natal e na Páscoa. Mas Alexandre Soares dos Santos recordava esses tempos com carinho. Segue-se o liceu D. João de Castro, de novo em Lisboa. Assegura a entrada em Direito, mais por vontade do pai do que propriamente por vocação. No terceiro ano do curso percebe que não é aquilo que pretende e abandona a faculdade. O pai não reage bem e estão três ou quatro anos distantes. Uma reação que, anos mais tarde, Alexandre Soares dos Santos diz compreender em absoluto. “Os meus filhos ligam-me todos os dias às 7h30 da manhã. Não fico preocupado se não me ligam, mas fico chateado”. A voz do patriarca da família a falar.
Os meus filhos ligam-me todos os dias às 7h30 da manhã. Não fico preocupado se não me ligam, mas fico chateado.
Com o curso de Direito interrompido, Alexandre Soares dos Santos vai para a Alemanha e ingressa na Unilever. “Fui procurar a minha vida. Gostei da vida internacional e nunca pensei voltar a Portugal”, afirmou numa entrevista ao Público, em 2002. Mas a vida dá muitas voltas. E a de Alexandre Soares Dos Santos não fugiu à regra.
O pai morre rápido demais e “obriga-o” a regressar a Portugal. A Jerónimo Martins, detida pelas famílias Santos e Vale, e que ambos tinham concordado que era para vender, torna-se o seu desafio. Corria o ano de 1968 quando Alexandre decide comprar a parte da família Vale. Entra na distribuição para ser um contrapoder à Unilever, que chegou a ter mais de 60% da JM, e é assim que nasce um grupo de distribuição.
Na base da decisão de manter a JM esteve o espírito de missão. “Se tenho um avô que, aos dez anos, abandonou a aldeia na Beira para ir trabalhar para o Porto, o que nos deu um conforto brutal toda a vida, não tenho o direito de vender. Tenho é de o homenagear e agradecer o que nos deixou e fazer crescer“.
E como fez crescer. Hoje, a Jerónimo Martins é um dos grandes grupos empresariais nacionais.
Soares dos Santos, que tantas vezes surpreendeu o país com declarações mais ou menos polémicas, costumava dizer: “Não ligo nenhuma ao dinheiro. Gosto do dinheiro para viver bem”.
Para o empresário, o “dinheiro fez-se para criar emprego, modernizar o país, dar melhor qualidade de vida a todos os que trabalham connosco”.
Francisco Seixas da Costa que, em 2012, é surpreendido com um telefonema de Soares dos Santos a convidá-lo para trabalhar no grupo, corrobora esta afirmação do “patrão”. “Alguns empresários e, Soares dos Santos é disso um exemplo, não vivem para usufruir da riqueza, claro que também usufruem, mas há um sentido de criação de riqueza, ligada à criação de emprego”. “Há aqui uma ambição permanente, uma escassa contemplação do imediato”, acrescenta o ex-embaixador.
O dinheiro fez-se para criar emprego, modernizar o país, dar melhor qualidade de vida a todos os que trabalham connosco.
É, de resto, neste contexto que nasce, em 2009, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), um tributo ao avô.
De trato fácil mas extremamente exigente e determinado, Soares dos Santos é considerado por quem o conhecia bem, como extremamente agradável, afável e simpático.
Seixas da Costa acrescenta ainda a simplicidade. A mesma com que Soares dos Santos, no tal telefonema de 2012, o convida para trabalhar na Jerónimo Martins, sem antes terem tido qualquer contacto.
A exigência com que tratava os outros era a mesma com que se desafiava a si próprio. Soares dos Santos costumava dar o seu exemplo, sobretudo quando, na Alemanha, na sua incursão pela Unilever foi trabalhar, durante seis semanas, como operário. E cinco meses como vendedor, função com a qual dizia tinha aprendido os truques todos.
Soares dos Santos defendia que era importante passar por todos os departamentos, do mais baixo ao mais alto, porque só assim se conhecia o grupo. Foi talvez por isso que o filho Pedro, o escolhido no momento da sucessão, começou como marçano numa loja da Jerónimo Martins. Uma visão que se enquadra noutro dos seus lemas de vida. “Se conhece bem o negócio [como nós conhecemos a JM] a tomada de decisão é mais fácil”, costumava afirmar.
De resto, garantia que as grandes decisões da sua vida tomou-as de manhã. Seis e meia ou sete da manhã. Afinal, já diz o ditado, “é de manhã que começa o dia”.
Sobretudo, encaixa que nem uma luva noutra das suas máximas bem expressa na entrevista do Público: “A empresa não é minha. É das pessoas que lá trabalham, que têm o direito de saber que caminho a empresa leva. E o acionista tem de perceber o que é ser acionista. Tem direito a dividendos”.
A vida do “Sr. Jerónimo Martins” — como tantas vezes era tratado — não foi feita só de momentos bons. Soares dos Santos viu-se confrontado com a doença: cancro do fígado e dos intestinos. Nem isso o desarmou. Também na entrevista ao Público em 2012, contava que a reação imediata, em 2006, foi “atacar” e não começar a chorar ou a despedir-se da família. Mais tarde, havia também de ser diagnosticado com cancro na próstata e é o próprio que aborda o tema sem constrangimentos e com outro lema de vida: “Passou. Não olha para trás”.
Era assim Alexandre Soares dos Santos, o mesmo homem que garantia: “Não ligo nenhuma ao passado. Só me interessa o dia de amanhã”.
Não ligo nenhuma ao passado. Só me interessa o dia de amanhã.
A entrada na Polónia
Se, a nível pessoal, era a doença a atormentá-lo, a nível empresarial, a JM viveu também períodos conturbados. A expansão internacional, com dois mercados em simultâneo (Brasil e Polónia), não teve os melhores resultados. A par disso, o grupo estava também presente nas dotcom. Por isso, houve que fazer alterações e reconhecer o erro. A solução passou por vender, em 2002, o Brasil. Na Polónia, o problema foi atacado com a ida de Pedro Soares dos Santos para aquele mercado para concentrar a operação no formato das lojas de desconto.
Soares dos Santos admitiria, anos mais tarde, que a entrada na Polónia não foi fácil. “Podia ter sido o fim de uma família como acionista de Jerónimo Martins“, dizia, nessa altura.
A primeira aquisição naquele país do leste acontece com a cadeia de cash & carry Eurocash. “De todas as nações da Europa do Leste que tinham vivido sob o domínio e influência soviética, a Polónia era a mais próxima da Europa Ocidental e possuía uma força de trabalho qualificada e infraestruturas desenvolvidas, quer ao nível rodoviário e energético, quer ao nível de fábricas”, explicava, sobre a escolha do novo mercado.
Soares dos Santos queria ser um player importante, mas estava longe de imaginar que ia chegar tão rapidamente à liderança. Hoje, a Polónia é o grande motor de crescimento do grupo, representando mais de 65% do total das vendas da JM.
Já sobre o Brasil, Soares dos Santos era claro. “O investimento da América do Sul devia ter tido lugar após a consolidação da Polónia. Surgiram-nos com uma companhia interessantíssima em São Paulo e deixámo-nos seduzir por essa compra. Mas não foi a compra que foi mal feita. O que foi mal feito foi não termos deixado aquela empresa quieta e sossegada e consolidar a Polónia, e depois começar novamente com o Brasil”.
Aliás, Soares dos Santos costumava dizer que “uma das características da JM é aprender com os erros e implementar rapidamente a correção“.
Quero estar sentado em dinheiro.
A crise financeira e a escassez de crédito também cruzaram o caminho do “Sr. Jerónimo”. Mas este é já, por essa altura, um homem precavido. “Quero estar sentado em dinheiro”, terá dito ao filho Pedro e a Luís Palha da Silva, o homem que liderou os destinos do grupo antes do filho o que, traduzido, queria dizer que o endividamento do grupo tinha de ser controlado.
Mais uma vez, Soares dos Santos estava a olhar para a frente. Colaboradores do grupo dizem que uma das suas melhores característica era “o de ser uma pessoa com uma grande visão, sempre a pensar no futuro e com um grande contributo ao país”. Quem com ele trabalhou uma série de anos não tem dúvidas em afirmar: “Era inspirador”.
De resto, uma publicação interna do grupo dedicada a Soares dos Santos não podia ser mais elogiosa: “Senhor de uma personalidade poderosa e magnética, de uma presença imponente, não deixa ninguém indiferente”.
À Polónia havia de juntar-se, em 2013, a Colômbia. Tal como a Polónia, o país da América do Sul apresentava critérios fundamentais: uma população superior a 40 milhões de habitantes e um mercado emergente em crescimento. “Toda a vida pensei que a Jerónimo Martins tinha que crescer, tinha de se transformar num grande grupo”, diria Soares dos Santos.
A sucessão
Para lhe suceder no cargo de presidente executivo, Alexandre escolheu o filho Pedro. “Somos muito pouco diferentes”, confessou certa vez. “O Pedro merecia ser CEO. Merecia!”, afirmou, na entrevista ao Público. Para trás ficava a presidência de Luís Palha da Silva. “O Dr. Luís Palha sabia, isso, não foi surpresa”, garantia.
No dia da sucessão, a 4 de dezembro de 2013, Pedro Soares dos Santos, o escolhido pelo principal acionista da Jerónimo Martins escrevia uma carta aberta ao pai. Nessa missiva, Pedro reconhece que nunca se viu como o candidato natural à sucessão e acrescenta: “Verdadeiramente, o pai não tem sucessor porque é único. Nada se compara ao seu carisma, à sua capacidade de atrair, mobilizar e liderar as pessoas à sua volta”.
O Pedro merecia ser CEO. Merecia!
“Desempenhar este cargo depois de si, pai, é, ao mesmo tempo, a maior responsabilidade o maior privilégio da minha vida. O senhor foi, é, e será sempre a minha grande referência, o meu confidente e o maior exemplo para mim”.
Na missiva, Pedro admite que a “grande preocupação foi sempre nunca lhe falhar e ajudá-lo, até ao limite das minhas capacidades e das minhas forças, na construção desta grande obra que é hoje o Jerónimo Martins e que todos devemos à sua visão, à sua coragem e à sua liderança”.
Pedro Soares dos Santos mostra-se ainda grato por tudo o que teve a oportunidade de aprender com o pai. “Ao longo dos anos, tive alguns chefes mas nunca conheci outro ‘patrão’, para além do pai. Foi consigo que aprendi, bem ou mal, mas o melhor que soube e que pude, quase tudo o que sei. Serei sempre grato pelos conselhos, pelas opiniões, até pelas discussões (às vezes duras) que temos e, com que tenho aprendido, tanto sobre o negócio, o exercício da liderança e sobre a vida”.
A carta terminava com um “Obrigado por tudo, pai! E até já!
Na hora da despedida, o “pai” assumia que saía satisfeito. “Saio feliz”, disse numa entrevista publicada na revista interna do grupo em que é homenageado.
Para trás ficavam 45 anos na liderança do grupo e uma carreira de sucesso. Soares dos Santos admitia de que a principal característica que marcou a sua vida foi a determinação. “Uma grande determinação. Saber exatamente o que você quer e para onde quer ir. E ir. Ter a determinação para lá chegar”.
Uma grande determinação. Saber exatamente o que você quer e para onde quer ir. E ir. Ter a determinação para lá chegar.
O homem forte da Jerónimo Martins não tinha dúvidas: a par da determinação “tem de ter uma dose de bom senso enorme. E, em terceiro lugar, mais importante que tudo: tem de criar uma equipa à volta de si que acredite. Acredite nos valores e princípios que você defende, acredite nas boas intenções e, pelo exemplo, acreditam ainda mais em si. Isso é o mais importante”.
O saber rodear-se é uma característica que o empresário Ilídio Pinho destaca: “O Alexandre Soares dos Santos foi um grande empresário, um homem do mundo, muito determinado e muito esclarecido. Gostava de estar bem rodeado com pessoas conhecedoras, que possam trazer valor”.
Já sobre o processo de sucessão, Seixas da Costa não tem dúvidas. “A sucessão foi muito bem preparada e planeada. Uma transição que se fez de uma forma organizada e muito suave”. O ex-embaixador diz mesmo que não houve, por essa altura, “qualquer rutura. A sua sucessão — pelo Pedro — é, perfeitamente natural e forte”.
A criação da Fundação e o desencanto
Em 2009, Alexandre Soares dos Santos criava a Fundação Francisco Manuel dos Santos, uma homenagem ao homem que deu início a tudo: o avô.
“A Fundação é uma justa retribuição à sociedade portuguesa, que tanto deu e continua a dar ao grupo, por forma a partilhar as benesses que desde o meu avô temos vindo a receber”, justificava Alexandre Soares dos Santos.
A ideia foi também a forma encontrada pela família para ajudar a ter “uma sociedade ativa, que sem medo e em plena liberdade, expõe os seus pensamentos, a sua crítica e os seus anseios. Uma sociedade que deverá ser consciente dos seus direitos, mas também dos seus deveres e que assume as suas responsabilidades. Que obriga os seus deputados e o seu governo a ouvi-la e a decidir de acordo com o que ela quer”.
Mas foi também com a criação da Fundação que Alexandre Soares dos Santos se desencantou. Era natural ouvi-lo dizer que “há um preconceito contra quem tem sucesso em Portugal”.
Soares dos Santos tinha grande sentido social, e que por vezes se sentia frustrado por esse sentido não ser percebido pelo exterior.
Seixas da Costa adianta mesmo que “Soares dos Santos tinha grande sentido social e que, por vezes, se sentia frustrado por esse sentido não ser percebido pelo exterior”. O ex-embaixador adianta ainda: ” Soares dos Santos considerava mesmo que a criação da Fundação Francisco Manuel dos Santos não foi bem percebida. Este sentimento incomodava-o, deixava-o frustrado mas, mais do que isso, desencantava-o”, sublinhando que “há um pouco a consciência de que a sociedade não dá o justo reconhecimento a quem se dedica a estas causas sociais, mas isso não o fazia desistir. Mas diria que se sentia um pouco frustrado e incomodado”.
Os amigos
“Dou-me com todo o mundo“, costumava dizer Soares dos Santos. O patrão de Jerónimo Martins sempre foi avesso ao mediatismo. Ainda assim, ia dando entrevistas e falando com os jornalistas. Na entrevista com cariz mais intimista que dá ao Público já em 2002, referia que só tinha um amigo, do tempo do liceu.
Apesar dessas suas declarações, há nomes que aparecem ligados ao patrão da JM. Carlos da Câmara Pestana, o homem que ajudou o Itaú a tornar-se o maior banco privado da América Latina; Jardim Gonçalves, o ex-patrão do BCP, ou Artur Santos Silva, do BPI, são alguns dos nomes com quem Soares dos Santos privaria. A par disso, e por via profissional, tinha muitos amigos internacionais, sempre pessoas que estiveram ligadas ao grupo ou a si próprio, nos bons e nos maus momentos. Jorge Ponce Leão, ex-quadro da Jerónimo Martins era também um bom amigo.
Já sobre o patrão da Sonae, o grande concorrente da Jerónimo Martins, Soares dos Santos nutria grande respeito. Seixas da Costa sublinha: “Penso que sempre existiu entre os dois grupos um respeito mútuo e uma grande consideração. Nunca ouvi algo negativo sobre Belmiro ou sobre Paulo Azevedo. Havia grande consideração por serem pares no negócio”.
Apesar de ser um dos maiores empresários nacionais, Soares dos Santos gostava de dizer que não tinha poder nenhum. Costumava dizer que era atendido pelo Primeiro-Ministro e pelos ministros mas, se enquanto presidente do conselho de administração lhes escrevesse uma carta, não obtinha qualquer resposta.
A preocupação com os netos
Verdadeiro patriarca, Soares dos Santos sempre gostou de estar rodeado pela família. E pelos netos, em particular. Os mesmos que obrigou a irem ver os campos de concentração na Polónia. “Para saberem o que é a vida, que a vida não são só hotéis de cinco estrelas”, afirmava.
Era notória a sua preocupação por “dar mundo aos membros da família”, e retirá-los do círculo em que se movimentavam. Outro dos ensinamentos que pretendeu passar aos netos era o de que “não se pode aceitar a derrota”. “Digo aos meus netos que a palavra ‘derrota’ não faz parte do nosso vocabulário”, enfatizava Alexandre Soares dos Santos.
Visionário, Alexandre Soares dos Santos deixa um legado inquestionável aos filhos e aos netos que vai muito para além da fortuna que conquistou, até porque, como costumava dizer, “a única coisa que me interessa deixar é uma lição de vida, de conduta”. “O resto é um património que têm de cuidar, para o qual outras pessoas contribuíram. Meu é aquilo que penso, aquilo de que gosto, aquilo que defendo e espero que topem. E que tenham respeito pelas pessoas. Só me irrito verdadeiramente quando não há respeito pelas pessoas“, afirmou na entrevista ao Público.
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