Fiscalizar ou não as ordens profissionais, eis a questão
Ordens profissionais aguardam proposta de lei do possível novo "estatuto". Não consideram ser necessário mexer na competência da fiscalização, mas o tema da multidisciplinaridade divide as ordens.
As ordens profissionais têm sido tema recorrente nos últimos tempos. Após a Ordem dos Médicos ter realizado uma auditoria ao lar de Reguengos de Monsaraz, o primeiro-ministro, António Costa, questionou a legitimidade da mesma para aquela ação e afirmou que as ordens não existem para fiscalizar.
O PS está a preparar um projeto para “o novo estatuto das ordens profissionais” que será nas próximas semanas levado a debate junto dos deputados. Entre os tópicos em análise poderá estar os poderes das ordens, em particular o da fiscalização.
“Não me parece que faltem ao Governo poderes de fiscalização sobre as Ordens, uma vez que tem extensos poderes nesse âmbito, tendo até já ordenado recentemente uma sindicância a uma Ordem”, refere Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados (OA).
Para o líder dos advogados o que ficou claro das reações à auditoria da OM é que a “averiguação e denúncia das Ordens sobre as graves lesões dos direitos das pessoas que ocorreram durante a pandemia não foram bem recebidas pelo Governo”. Desta forma, o bastonário acredita que a proposta de lei pretende assegurar o silêncio das ordens, “uma espécie de lei da rolha”.
"Julgo que o Governo já tem muitas competências e não me parece que o país ganhe com uma regulação profissional centrada no Estado.”
À Advocatus, Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários, demonstrou estar disponível para trabalhar numa solução que sirva o interesse público. “Julgo que o Governo já tem muitas competências e não me parece que o país ganhe com uma regulação profissional centrada no Estado, mas sinceramente não me parece que seja esse o objetivo do Partido Socialista”, acrescenta.
Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros, também não se mostra preocupado e assegura que quer a OCDE, quer a Comissão Europeia, têm vindo a colocar algumas exigências a Portugal “que agora terão de ser refletidas na lei”.
Também Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), não vê motivo para que o poder de fiscalização das ordens seja restringido ou alterado, sendo que na OCC esse poder tem sido exercido com a “ponderação”, “independência” e “proporcionalidade”.
Mas será que o facto de a fiscalização poder vir a passar para uma entidade externa significa que até ao momento essa fiscalização tem sido insuficiente ou corporativista? As ordens questionadas pela Advocatus garantem que não.
“Pode haver uma ideia estabelecida, mas que não corresponde à verdade, de que as profissões liberais se auto protegem e que não fiscalizam os seus membros e as suas práticas. A maior ou menor fiscalização não deve depender do facto de ser interna ou externa, mas sim do rigor e eficácia que as organizações profissionais imprimem a essa fiscalização e da perceção pública sobre a mesma”, explica a Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC).
Com sistemas de controlo de qualidade e de atuação disciplinar implementados há vários anos, a OROC tem vindo a proceder à sua revisão e melhoria contínuas.
Luís Menezes Leitão, bastonário da OA, defende que os profissionais devem ser julgados pelos seus pares e “não por pessoas que não fazem a mínima ideia de quais são as regras de uma profissão, uma vez que nunca a exerceram e que seriam nomeadas apenas com base na confiança política”.
"O primeiro-ministro contestou a competência da Ordem dos Médicos para elaborar o relatório sobre o Lar de Reguengos e, quando ficou claro que a lei lhe atribuía essa competência, surgiu esta proposta de mudança da lei.”
Para Carlos Mineiro Aires, estamos perante duas possibilidades de intervenção de uma entidade externa: ou existe uma fiscalização na fase de admissão, “o que para além de ser uma intromissão por elementos muito possivelmente não capacitados não é um problema para a Ordem dos Engenheiros”, ou é na atuação disciplinar, “contra o que nada temos, pois o número de processos em todo o território nacional é residual e não constitui qualquer problema quanto à transparência, isenção e forma de tratamento”.
Poderes das ordens limitados?
Enquanto umas ordens sentem que estão a tentar limitar os poderes das ordens profissionais, outras acreditam que até ao momento não, como é o caso da Ordem dos Engenheiros.
Já bastonário dos advogados é bastante assertivo na sua resposta e está confiante que os poderes estão a ser limitados. “O primeiro-ministro contestou a competência da Ordem dos Médicos para elaborar o relatório sobre o Lar de Reguengos e, quando ficou claro que a lei lhe atribuía essa competência, surgiu esta proposta de mudança da lei. No fundo, em vez de se adequar o discurso à lei, adequa-se a lei ao discurso”, refere.
Paula Franco, bastonária da OCC, admite que são necessárias alterações, mas que as mesmas devem ser feitas com base num “diálogo construtivo” com as ordens e “nunca sob a pressão de um relatório da OCDE, adotado pela AdC, que em pouco atenta à realidade laboral e económica portuguesa”.
Multidisciplinaridade divide ordens
Há muito se fala da possibilidade da instituição da multidisciplinaridade nas diversas ordens. No que toca à advocacia, o Governo já tinha deixado uma porta aberta para a integração de novas profissões nas firmas de advogados. Nas “grandes opções do plano” definidas para 2020, o Governo deixa em aberto a possibilidade de criação de sociedades multidisciplinares.
Mas o bastonário dos advogados continua a mostrar-se totalmente contra. “Trata-se de uma forma ínvia de permitir o exercício da advocacia por quem não tem qualquer competência para o efeito, apenas porque se associa a um advogado, que se disponibiliza a ser seu sócio nessa atividade”, nota.
Também o bastonário dos notários prevê consequências gravíssimas na constituição de sociedades multidisciplinares. “Numa sociedade multidisciplinar poderiam potenciar-se situações de usurpação das funções de notário, por não habilitados para o exercício da profissão, ou até desenvolver-se práticas de angariação ilícita de clientela que são proibidas por reconhecidamente colocarem em causa a independência no exercício de funções”, explica Jorge Batista da Silva.
Sem opinião, Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros, refere apenas que “porquanto é prática comum a associação de engenheiros com outros profissionais para dar resposta pontual a concursos ou oportunidades que surjam, através de acordos ou parcerias pontuais e efémeros”.
O Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados tem já uma janela aberta para as sociedades multidisciplinares. Isto porque permite a existência de sociedades profissionais onde a maioria do capital é detido por contabilistas certificados, e ao mesmo tempo, a existência de sociedades de contabilidade, podendo estas ter o seu capital detido por não contabilistas certificados.
“No atual contexto, no mundo da contabilidade, há muitos anos que já existem sociedades multidisciplinares, não se tendo verificado, rompimentos, ameaças ou fragilidades face às sociedades profissionais nos deveres éticos e deontológicos dos contabilistas certificados responsáveis por essas sociedades, tão pouco, podemos afirmar que o exercício da profissão é mais vantajoso nas sociedades profissionais em detrimento das sociedades de contabilidade”, explica Paula Franco.
"Porquanto é prática comum a associação de engenheiros com outros profissionais para dar resposta pontual a concursos ou oportunidades que surjam, através de acordos ou parcerias pontuais e efémeros.”
Segundo a Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, as grandes sociedades de auditoria prestam um conjunto de serviços de diferente natureza, embora inter-relacionados, como serviços de consultoria em tecnologias de informação, de gestão, assessoria fiscal, entre outros. No entanto, “muitos destes serviços não podem ser prestados aos mesmos clientes por razões de independência e de prevenção de conflitos de interesses, estando até alguns já proibidos“.
“Na Europa, há alguns movimentos políticos no sentido de propor que as sociedades de auditoria sejam proibidas de prestar qualquer outro serviço, o que contraria a intenção da multidisciplinaridade que a própria OCDE também defendeu no relatório que emitiu sobre a concorrência”, refere a OROC.
Para a ordem um trabalho de auditoria com qualidade implica a partilha de conhecimentos de elevada complexidade. “As equipas de auditoria devem ser, nos casos de entidades de maior dimensão e complexidade, equipas multidisciplinares. Vemos com preocupação os movimentos de separação de competências”, acrescenta.
Universidades e formação
Com várias formações e cursos, as ordens promovem complementos extras às licenciaturas por considerarem essencial para o desempenho dos profissionais. Essas formações são também uma fonte de receita das ordens.
“Desde o processo de Bolonha que a formação das universidades a nível de licenciatura é insuficiente para se exercer a advocacia, o que leva à necessidade de um maior controlo no estágio. Se fosse exigido outro grau para entrada na Ordem, como o mestrado, o estágio poderia ser reduzido. Enquanto não o for, temos que manter a atual duração do estágio. Não se trata de uma questão financeira, mas de assegurar que à profissão só têm acesso profissionais qualificados, o que é essencial para garantir que os cidadãos não saem lesados“, refere Luís Menezes Leitão, bastonário da OA.
Para a Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, a formação académica universitária é fundamental para a integração de novos profissionais com as competências mínimas exigidas para um serviço de qualidade. Mas essas competências acabam por ficar limitadas no tempo e no conteúdo, sendo necessárias formações contínuas.
Paula Franco, bastonária da OCC, refere que a formação académica permite acima de tudo o acesso à profissão e que isso não implica menos ganhos financeiros. “A OCC vê e trata a formação como um investimento junto dos seus futuros e presentes membros“, refere.
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