“Os casos mediatizados são a margem do sistema e não a norma”, diz Vítor Bento
O presidente do júri dos Investor Relation Awards considera que "uma das grandes debilidades do Estado é a qualidade da sua governance". E isso vai ser sentido no Plano Nacional de Reformas.
Vítor Bento é presidente do júri dos Investor Relations Awards. Nesta entrevista, por email, realizada no âmbito da 33.ª edição dos prémios organizados pela Delloitte, o também presidente da Associação Portuguesa de Bancos defende que “a boa governance das empresas deve assegurar, para além da maximização e preservação do valor criado, a justa distribuição desse valor por todos os stakeholders”.
A edição deste ano dos IRGAwards tem como tema principal a importância do elemento humano nas estratégias empresariais. De que valores estamos aqui a falar?
Dos valores associados à dignidade humana, à natureza social do homem e a complexidade que envolve essa natureza.
A pandemia obrigou a trabalhar à distância e ao contacto virtual com os clientes. Acha, ainda assim, que as empresas ficaram mais humanas depois da pandemia?
O que se procura valorizar é precisamente a capacidade de as empresas não perderem de vista a natureza intrinsecamente humana em que assenta a sua própria existência, o seu bom funcionamento, e, em última instância, a sua criação de valor. Não obstante a pressão “desumanizante” que o afastamento social e a mecanização das interações decorrentes da situação anormal que vivemos, possa trazer.
A ideia de que a atividade de uma empresa, além de gerar lucro, deve ter externalidades positivas para a sociedade parece irreversível. Conseguir entregar resultados nesta dimensão já é um fator decisivo para a competitividade das empresas?
Eu poria a questão noutros termos e não necessariamente na dicotomia implícita na pergunta entre lucro e o valor para a sociedade. O propósito das empresas é criar valor e, em particular — pelo menos da parte de quem as cria e mantém a sua existência — gerar lucros. Mas aquilo que a boa governance das empresas deve assegurar, para além da maximização e preservação do valor criado, é a justa distribuição desse valor por todos os stakeholders que contribuem para esse valor. E entre esses stakeholders está a sociedade onde a empresa se insere e que lhe proporciona as condições sociais para o seu bom funcionamento, e o ambiente onde todos funcionamos. Isso implica, nomeadamente, prevenir externalidades negativas (que seria retirada de valor da sociedade) ou prover à sua compensação e contribuir para a sociedade com as obrigações implícitas no contrato social envolvente: pagar os impostos que a sociedade, através dos seus órgãos legítimos, considera que lhe são devidos e respeitar a lei e as normas regulatórias. E tratar com respeito e justiça todas as pessoas de que depende o seu funcionamento. O que ficar aquém disto, não é boa governance.
Como é que se incorpora essa visão mais humanista nas empresas? Quem é que deve dar esse impulso e de que forma?
A ética que rege o funcionamento de uma empresa, enquanto entidade coletiva, e de todos os que individualmente nela colaboram é definida, por ação ou omissão, a partir do topo. Por ação, através de normas explícitas, como códigos de conduta e a sua monitorização e também pelo exemplo das lideranças (o que na linguagem anglo saxónica se define como walk the talk). Por omissão, porque quando não haja uma conduta exemplar no topo e/ou este não estabeleça o expectável “código ético” da empresa, o deslaçamento ético tenderá a espalhar-se mais tarde ou mais cedo.
Mesmo tendo em conta alguns importantes desvios pontuais, os comportamentos dominantes nas nossas empresas tendem a ser bons.
Vê isso a acontecer de forma suficientemente abrangente nas empresas portuguesas? Temos assistido a alguns maus exemplos.
Como em toda a existência humana, há comportamentos melhores e comportamentos menos bons. Mas não me compete, muito menos aqui, fazer avaliações particulares. Direi apenas que, mesmo tendo em conta alguns importantes desvios pontuais, os comportamentos dominantes nas nossas empresas tendem a ser bons. E não resisto a acrescentar uma palavra de cautela. A ênfase mediática que é compreensivelmente colocada nos comportamentos desviantes, mas que não ressalta os bons comportamentos, gera inevitavelmente um adverso efeito de paralaxe que nos pode levar a considerar que a situação é pior do que realmente é. É preciso ter presente que os casos compreensivelmente mediatizados são a margem do sistema e não a sua norma.
Quando olha para o tecido empresarial português, que forças e fraquezas considera que foram evidenciadas pela crise sanitária e económica? E quando olha para o Estado português?
Do lado das forças é importante destacar a resistência e a capacidade de rápida reinvenção em face de adversidades inesperadas, dando mais uma vez jus ao ditado de que a necessidade é mestra de engenhos. As fraquezas resultam sobretudo da dependência excessiva que a economia tem de algumas atividades, e que foram muito adversamente afetadas pela pandemia. Quanto ao Estado, isso seria tema para uma conversa mais longa. Mas ficamo-nos só pela referência de que uma das grandes debilidades do Estado é a qualidade da sua governance (não confundir com “Governo”, que é apenas uma parte dessa governance e que deve ser analisado sob outros ângulos).
O Estado tem uma governance de qualidade muito frágil. E isso (…) irá inevitavelmente ser sentido, mais uma vez, na aplicação do PRR.
Tem defendido que o Estado tem de acelerar o passo do seu próprio progresso, de forma a facilitar uma convergência mais rápida da economia portuguesa para os níveis mais elevados de prosperidade na Europa. Está confiante que o PRR dará um contributo muito significativo nessa aceleração?
Reitero o que disse no final da resposta anterior. O Estado tem uma governance de qualidade muito frágil. E isso, que é uma das causas subjacentes ao nosso duradouro mau desempenho, irá inevitavelmente ser sentido, mais uma vez, na aplicação do PRR.
Foi mais difícil para as empresas gerir as relações com os investidores neste período?
Não creio. E terá também havido de tudo: mais difícil para uns, mais fácil para outros, dependendo da perspetiva das respetivas atividades. Terá sido talvez mais exigente em termos de explicações necessárias face ao entorno adverso.
Considera que é necessário as empresas desenvolverem mais a relação com outros stakeholders. Devia, por exemplo, haver um gabinete ou departamento de relações com a sociedade?
Como disse numa outra resposta acima, faz parte da boa governance tratar todos os stakeholders com justiça, assegurando que cada um obtém da empresa a quota de valor que cabe por direito ao seu contributo. A resposta a esse desígnio pode ser assegurada de várias formas. O essencial é assegurar que as formas adotadas não se tornem apenas formas, mas proporcionem a substância que delas se espera.
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