Fim do drama do teto da dívida nos EUA ainda pode castigar economia e mercados
O acordo para evitar o default dos EUA deverá ser aprovado, evitando repercussões catastróficas. Contudo, o risco de recessão agravou-se e os mercados não estão imunes aos efeitos colaterais.
O acordo forjado entre a Casa Branca e os Republicanos para suspender o limite do endividamento (debt ceiling) dos Estados Unidos reduziu substancialmente a probabilidade de a maior economia do mundo enfrentar um inédito default, mas o drama em Washington ainda tem mais capítulos e os efeitos secundários podem ser nefastos.
O primeiro capítulo, e talvez mais importante, deve acontecer já esta quarta-feira, com a votação da legislação na Câmara dos Representantes, onde os Republicanos têm a maioria (222 vs 213). No Senado, a câmara alta do Congresso, são os Democratas que têm vantagem (51 vs 49), sendo que a votação deverá acontecer no final da semana.
Os políticos norte-americanos estão agora numa corrida contra o tempo, uma vez que o Tesouro já avisou que se a legislação que suspende o teto da dívida não chegar à secretária de Joe Biden antes de 5 de junho, o país não conseguirá cumprir os seus compromissos financeiros.
A ala mais conservadora dos republicanos, sem surpresa, já manifestou a intenção de votar contra. Depois de terem selado o acordo no fim de semana, o presidente dos Estados Unidos e o líder dos Republicanos na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, encetaram numa ronda de conversas com os membros do Congresso para garantirem o apoio à lei.
Contudo, a legislação é composta por uma série de medidas que não agrada, mesmo aos Democratas, o que deixa o resultado final da votação rodeado de incerteza. Os Republicanos estão descontentes com os cortes ténues da despesa e os Democratas contestam as alterações que vão facilitar a aprovação de projetos de energia, incluindo os que utilizam combustíveis fósseis.
Com o default à espreita já na próxima semana, a margem para um impasse nas votações é muito curta. Ainda assim, como demonstra a reação tranquila dos mercados, o cenário central aponta para que o limite do endividamento seja mesmo suspenso.
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Problema adiado para o pós eleições
O acordo prevê a suspensão do teto, atualmente em 31,4 biliões de dólares, até 1 de janeiro de 2025. A data acaba por ser uma vitória para Joe Biden, pois o problema do debt ceiling ficará adiado para meados desse ano, não atrapalhando as eleições presidenciais marcadas para novembro de 2024.
No âmbito do acordo, a despesa corrente fica congelada em 2024 aos níveis atuais, limitando a subida em 2025 a apenas 1%. Numa altura de inflação elevada, estes limites representam cortes reais significativos na despesa do dia-a-dia de uma grande parte de entidades federais dos Estados Unidos.
Os cortes incidem nos denominados gastos correntes, que representam uma fatia considerável (27% em 2022) do orçamento federal de mais de 6 biliões de dólares. Biden conseguiu impedir cortes mais significativos nos programas de assistência social, bem como contrariar a pretensão de limitar o aumento anual da despesa corrente a 1% ao longo da próxima década.
A despesa na área da defesa fica limitada a um aumento de 3%, o que está a ser contestado por muitos Republicanos. Fundos não utilizados para combater a pandemia serão utilizados noutros programas e há mais ajustes numa série de projetos e fontes de despesa.
Risco de recessão agravado
A suspensão do limite do endividamento, a ser aprovado, evita o cenário catastrófico de um default que tinha consequências imprevisíveis. Sobretudo para a economia norte-americana, que enfrentava uma recessão severa quase garantida. A Casa Branca estima uma contração de 6,1% no PIB em caso de default.
Contudo, o acordo também acarreta consequências para a economia norte-americana, que já enfrentava um risco considerável de uma recessão no segundo semestre deste ano. Com o mercado de trabalho ainda robusto e o consumo das famílias resiliente, o cenário de recessão tem sido adiado.
Os cálculos da Casa Branca apontam para que o acordo para suspender o limite da dívida implica cortes de despesa em torno de 1 bilião de dólares ao longo da próxima década. Os Republicanos reclamam o dobro do impacto. Certo que é a economia norte-americana vai perder um dos amortecedores que permitiu atenuar os efeitos da inflação elevada e subida de juros no poder de compra das famílias. Os gastos federais contribuíram com cinco décimas para o crescimento de 1,3% do PIB no primeiro trimestre.
A Moody’s assinala que o impacto na economia será “gerível”, com o pico dos efeitos negativos a ser sentido na segunda metade de 2024. Espera uma contração de 0,15% no PIB e a eliminação e 120 mil empregos. O JPMorgan calcula que os cortes na despesa equivalem a 0,2% dos PIB, bem abaixo dos 0,7% registados em 2011, altura em que EUA também estiveram muito perto de um default.
Tesouro pode gerar crise de liquidez
Os mercados respiraram de alívio com as notícias do acordo em Washington, embora também seja verdade que nunca chegaram a entrar em pânico com a possibilidade de default, pois o cenário foi sempre visto como tendo baixa probabilidade.
Ainda assim, os analistas alertam que as consequências do drama do debt ceiling nos mercados ainda não estão dissipadas, pois é previsível que depois do acordo ser aprovado no Congresso se assista a um frenesim de emissões de dívida que pode absorver liquidez dos mercados.
O teto do endividamento foi atingido em janeiro deste ano, sendo que deste então o Tesouro adotou um plano de contingência, com medida extraordinárias, para impedir os cofres do país de ficarem sem dinheiro. Na semana passada, o Tesouro tinha apenas 39 mil milhões de dólares em cash, o nível mais reduzido desde 2017.
Quando receber luz verde para emitir dívida sem restrições, é garantido que o Tesouro vai em força ao mercado de dívida obter financiamento para regularizar os pagamentos federais. As estimativas dos analistas apontam para a emissão de 1 bilião de dólares até setembro, com o foco nos títulos de curto prazo. As previsões oficiais apontam para que o Tesouro aumente a sua posição em cash para 550 mil milhões de dólares no final de junho, o que representa um saldo líquido de meio bilião de dólares num só mês.
Com o Tesouro dos EUA num frenesim a emitir dívida, será inevitável absorver uma elevada quantidade de liquidez existente no mercado, concorrendo com os bancos norte-americanos, que têm assistido a uma fuga de depósitos devido à crise no setor e alternativas com retorno mais elevado.
Com a crise do debt ceiling resolvida, o Tesouro norte-americano não terá dificuldades em atrair investidores, sobretudo porque os títulos de dívida de curto prazo apresentam rendibilidades muito atrativas, com yields superiores a 5%.
O Bank of America compara este efeito a uma subida de 25 pontos base nas taxas de juro da Fed, sendo que começa a ganhar força a possibilidade de o banco central efetuar mais um agravamento de juros na reunião deste mês de junho.
Além do efeito quase direto na atividade dos bancos, uma enxurrada de emissões de dívida pública também poderá afetar os mercados acionistas, pois incentiva os investidores a procurarem ativos de menor risco, engordando o fluxo de capital que se está a deslocar das ações para as obrigações.
Certamente que as autoridades vão gerir as contas do Tesouro com pinças para não gerar instabilidade nos mercados financeiros, mas o risco de episódios de stress não é de descartar. Acresce que esta absorção de liquidez por parte do Tesouro acontece numa altura em que a Fed também está a drenar liquidez dos mercados, no âmbito do aperto da política monetária através da redução do seu balanço. O banco central está a reduzir a sua carteira de títulos de dívida a um ritmo de 95 mil milhões de dólares por mês.
Nos últimos anos os bancos centrais inundaram os mercados de liquidez para impulsionar a economia, o que constituiu um importante combustível para a valorização dos ativos cotados. Agora, com a inflação a persistir em níveis muito elevados, os bancos centrais estão a efetuar o caminho contrário, sendo que a visibilidade das consequências é ainda muito turva.
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