Fornecedores acusam distribuição de “carregar” nas margens e tirar prateleira aos produtos de marca
Fabricantes acusam retalhistas de ter cada vez menos espaço e margens "muitíssimo mais elevadas" do que as marcas brancas. Fenómeno "não é deliberado" e margens não vão além dos 3%, responde APED.
Em Espanha e França, fabricantes e retalhistas estão em “guerra aberta”, o que já levou ao afastamento de grandes marcas como a Pepsi, Bimbo ou Pascual. Deste lado da fronteira, o ambiente é menos “hostil”, mas a Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca (Centromarca) também se queixa de ter cada vez menos espaço nas prateleiras e que as margens comerciais são “muitíssimo mais elevadas” nestes artigos face às aplicadas nos produtos equivalentes de marca própria. A Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) recusa comentar “opções estratégicas e comerciais” dos supermercados, mas garante que a redução na oferta de marca própria não é “deliberada”.
“Há um acentuar muito grande dessa tendência nos últimos dois a três anos e a inflação, logicamente, ajuda”, sublinha ao ECO o diretor-geral da Centromarca, Pedro Pimentel, numa alusão ao facto de os supermercados em Portugal estarem também a cortar na oferta de produtos de fabricante. “As pessoas foram confrontadas com aumentos de preços muito substanciais e os rendimentos não aumentaram”, pelo que “têm de reagir em função da sua disponibilidade financeira”, acrescenta o representante dos fabricantes.
Em Portugal não há dados públicos sobre a evolução do número de referências de produtos de marca própria e de produtos de marca de fabricante à disposição dos clientes nas prateleiras. No entanto, as estatísticas relativas às vendas em valor acabam por ilustrar o peso das chamadas marcas brancas: representam já cerca de 46% da quota de mercado nas vendas em loja.
Entre 4 de dezembro e 31 de dezembro de 2023, as vendas em valor das marcas de supermercado cresceram 15,3% face ao período homólogo, enquanto as vendas de marca de fabricante subiram apenas 6,3%, de acordo com os dados da Nielsen. No que toca às marcas próprias, os dados mais recentes da consultora, relativos à semana iniciada a 25 de fevereiro, mostram um maior peso no segmento da alimentação (52,3% de quota de mercado), caindo na higiene do lar e pessoal para 40,8% e nas bebidas para 23,3%.
Em declarações ao ECO, o diretor-geral da APED começou por sublinhar que “não pode nem deve comentar as opções comerciais dos associados”, mas confirmou que “o conceito do hard discount está a ter um crescimento relevante no mercado” português. O que, completa, faz com que haja “naturalmente uma expressão e um peso maior de marcas próprias desses retalhistas no conjunto do sortido em relação à marca de fabricante”.
No entanto, Gonçalo Lobo Xavier faz questão de ressalvar que “não há nenhum retalhista que esteja a fazer isso de forma deliberada“. Entre os principais retalhistas a operar na área do hard discount está a cadeia espanhola Mercadona, em que as marcas próprias representam 86,5% das vendas em valor em 2023 (contra 85,1% em 2022); ou a alemã Lidl, em que o peso relativo foi de 75,7% (contra 72,8% no ano anterior), de acordo com os dados da Kantar.
“Reduz escolha” e limita a inovação
Estes são os dois retalhistas em que a marca própria mais pesa nas vendas. No polo oposto estão a Auchan (35,2% vs. 31,6% em 2022), a dona do Pingo Doce (40,1%) e a dona do Continente (41,9%). O diretor-geral da Centromarca sublinha que as cadeias de supermercados têm “toda a legitimidade” de privilegiar as suas marcas, mas avisa que isso tem “consequências”. Por um lado, “reduz a escolha” para o consumidor. Por outro, “diminui o mercado”, dado que os fabricantes “deixam de ter espaço para vender os seus produtos” e isso trará consequências para a inovação.
“Ou seja, daqui a dez anos vamos comer o mesmo que comemos hoje. Não vai haver incentivo para que as empresas continuem a trabalhar no sentido de melhorar as suas ofertas porque não vão ter espaço no supermercado para vender os seus produtos”, antevê Pedro Pimentel.
Daqui a dez anos vamos comer o mesmo que comemos hoje. Não vai haver incentivo para que as empresas continuem a trabalhar no sentido de melhorar as suas ofertas porque não vão ter espaço no supermercado para vender os seus produtos.
A distribuição rejeita o argumento de que o corte na oferta tenha implicações na liberdade de escolha do consumidor, sublinhando que há “retalhistas com maior pendor e maior equilíbrio entre marca própria e marca de fabricante, e outros retalhistas que têm maior pendor para a sua própria marca”. “O consumidor é que está, de alguma forma, a usar a sua liberdade e a procurar aquilo que considera serem os melhores negócios“, ripostou o diretor-geral da APED.
O organismo que representa as grandes marcas nota, por outro lado, ainda que “não há categoria nenhuma que seja imune” a este fenómeno, que está também a ser “acelerado” pelo facto de, atualmente, as retalhistas estarem a privilegiar a abertura de lojas de pequena dimensão e em que “a diversidade é muito curta”. “Estamos a empurrar o consumidor para um consumo muito fixo, fechado e muito pouco alternativo. É a mesma coisa que converter a RTP na Benfica TV, Sporting TV ou Porto Canal”, compara Pimentel.
Batalha sobre as margens
Outra crítica apontada em Portugal, tal como em Espanha e França, diz respeito às margens que são aplicadas aos produtos de marca. “As margens aplicadas aos produtos de fabricantes são muitíssimo mais elevadas do que as margens aplicadas aos produtos equivalentes de marca própria. A diferença de preços na prateleira nasce de custos, mas a grande diferença deriva de uma coisa chamada margem comercial”, defende Pedro Pimentel.
Gonçalo Lobo Xavier, que representa a grande distribuição, rejeita essa ideia, contabilizando que a “margem média no retalho alimentar é na ordem dos 2 a 3%”, enquanto a “margem de um industrial é muito superior”, podendo chegar aos 15% a 20%.
“Os fabricantes estão a refletir no preço que vendem aos retalhistas o aumento das matérias-primas e dos custos de fatores de produção. Do mesmo modo, os retalhistas tentam amortecer esses aumentos com uma logística apurada, com ganhos de eficiência”, assinala ainda o diretor-geral da APED, acrescentando que “as margens não são comparáveis”.
“[Os fabricantes] fazem chegar os seus preços também com um valor que lhes parece justo, mas é um valor de mercado que, face à concorrência, pode ser mais alto – e não é apenas pelas margens. É também pelo preço que o fornecedor apresenta ao retalhista”, nota Gonçalo Lobo Xavier.
Os fabricantes fazem chegar os seus preços também com um valor que lhes parece justo, mas é um valor de mercado que, face à concorrência, pode ser mais alto – e não é apenas pelas margens. É também pelo preço que o fornecedor apresenta ao retalhista.
Em Espanha, a indústria alimentar está em “guerra aberta” com os supermercados, acusando a distribuição de concorrência desleal ao reduzir o número de produtos de marca de fabricante vendidos nas prateleiras. Segundo um estudo da Kantar, relativo ao mercado espanhol, a redução foi de 23% desde 2019.
Por outro lado, há insígnias a “boicotar” algumas marcas. O grupo Dia retirou das suas lojas os produtos de marca Bimbo e a Mercadona retirou a Leche Pascual, noticiou o El Economista. Também as marcas da americana PepsiCo foram alvo de “boicote” no Carrefour, com a retalhista a queixar-se de aumentos de “preços inaceitáveis”. Começou em janeiro e abrangia os estabelecimentos em França, Bélgica, Espanha, Itália, noticiou o The Wall Steet Journal.
Em Portugal, a associação que representa os fabricantes afasta um ambiente de “hostilização”, mas sublinha que é importante que “os parceiros do retalho percebam que as marcas lhes fazem falta nos supermercados”. Não, obstante, Pedro Pimentel admite que há “dificuldades de relacionamento” entre fornecedores e supermercados, ainda que isso não tenha a mesma “visibilidade” que em Espanha. “Na verdade essas situações acontecem com alguma frequência”, desabafa.
Já do lado da distribuição, o porta-voz da APED assegura que não tem “nenhuma indicação de um movimento semelhante” ao que está a acontecer em Espanha e entende que os supermercados têm uma “relação equilibrada” com todos os elos da cadeia.
Por fim, assegura que, apesar da escalada da inflação, os retalhistas têm procurado “amortecer” as subidas de preço. Realça o estudo independente, publicado pelo Banco de Portugal, que indicou que, a partir do momento em que a isenção temporária do IVA entregou em vigor, houve uma “passagem quase completa para os preços no consumidor, que ascende a 99%“. A publicação mostrou ainda que o anúncio do IVA Zero levou a um ajuste antecipado de preços” de 1,27%.
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