Nas mensagens de Natal e de Ano Novo, Montenegro e Marcelo falaram de países diferentes

  • Joana Abrantes Gomes
  • 3 Janeiro 2025

Na sua primeira mensagem de Natal, Luís Montenegro deu destaque às medidas implementadas desde que tomou posse em abril passado. O Presidente da República traçou o que ainda está por fazer.

Um discurso conjuntural e político versus um discurso estrutural e generalista. As habituais mensagens do primeiro-ministro e do Presidente da República no Natal e no Ano Novo, respetivamente, evidenciam diferenças: enquanto Luís Montenegro destacou os avanços alcançados em menos de um ano desde que tomou posse, particularmente em matéria fiscal e de valorização dos salários, Marcelo Rebelo de Sousa, em final de mandato, deu ênfase ao que ainda há por fazer, nomeadamente no que diz respeito ao combate à pobreza.

“Podemos dizer que descrevem dois países diferentes“, considera a politóloga Paula Espírito Santo, em declarações ao ECO, apontando que a retórica “voltada para as etapas concluídas” na primeira mensagem de Natal de Luís Montenegro como líder do Governo contrasta com a repetição por dez vezes da expressão “precisamos de/que” no penúltimo discurso de Marcelo no Ano Novo.

Montenegro caracterizou 2024 como um ano “de viragem e de mudança”, após quase uma década de governação socialista, e passou em revista várias das medidas implementadas ao longo dos primeiros nove meses como chefe do Executivo: desde o alargamento da isenção no IRS e a criação de uma garantia pública no crédito à habitação para jovens, à atualização das pensões e ao aumento do complemento solidário para idosos, além do acordo tripartido com os parceiros sociais.

A mensagem do primeiro-ministro é muito baseada em avanços do ponto de vista dos grandes temas que tinha no programa [de Governo], mas que são avanços que acabam por ser mais conjunturais e menos estruturais. Ou seja, há metas que se vão atingindo, mas que estão muito distantes do horizonte mais consolidado no plano da igualdade social e do desenvolvimento económico“, argumenta Paula Espírito Santo, notando ainda que os passos referidos por Luís Montenegro são, em parte, uma “continuidade” da política do Executivo anterior.

Enquanto o líder do Governo se dirigiu aos portugueses exaltando a resolução “sem truques” e com “rigor orçamental” de “questões mais urgentes”, o Presidente da República, por seu lado, pôs a tónica num “problema estrutural” que a democracia portuguesa, no ano em que celebrou o seu 50.º aniversário, “não conseguiu resolver”: a pobreza em que se encontram cerca de dois milhões de pessoas no país.

Evocando o cinquentenário do 25 de Abril – “é olhar para o futuro, não é repetir o passado” –, Marcelo discorreu sobre a sua “visão ambiciosa” no plano nacional, quando falta pouco mais de um ano para as eleições que vão decidir o seu sucessor no Palácio de Belém, sublinha ao ECO a também professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-UL).

Na mensagem transmitida na noite de 1 de janeiro, o Chefe de Estado delineou que, além de “menos pobreza”, Portugal precisa de “mais igualdade social e territorial”; “ainda mais educação, melhor saúde e melhor habitação”; “qualificar mais os recursos humanos, inovar mais, competir com mais produtividade, continuar a antecipar no domínio da energia limpa, no domínio do digital, na tecnologia de ponta”.

A mensagem do primeiro-ministro é muito baseada em avanços do ponto de vista dos grandes temas que tinha no programa [de Governo], mas que são avanços que acabam por ser mais conjunturais e menos estruturais (…), enquanto o Presidente da República tem uma visão estrutural dos problemas de fundo da sociedade, acentuando, por exemplo, a desigualdade e a pobreza.

Paula Espírito Santo

Professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-UL)

Ao “não falar tanto do que já temos”, mas antes do que “ainda está por desenvolver”, Paula Espírito Santo considera que o discurso de “não conformismo” de Marcelo Rebelo de Sousa está relacionado com a forma como o próprio “encara a vida e a política”. “É alguém para quem, no fundo, as suas missões nunca estão terminadas, estão sempre em evolução”, reforça.

Contudo, no entender do cientista político António Costa Pinto, o país descrito nas mensagens do primeiro-ministro e do Presidente da República “é exatamente o mesmo”, apenas “falam de locais institucionais diferentes”: Luís Montenegro, que lidera um Executivo minoritário com apenas nove meses de vida e que viu o seu primeiro Orçamento aprovado, “fez sobretudo um discurso político, de defesa do seu Governo” — o que considera ser “relativamente natural” –, enquanto o de Marcelo foi “mais generalista”.

Para o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), o discurso do Chefe de Estado foi “consensual”, tanto do ponto de vista da política europeia, como do ponto de vista dos desafios institucionais, e remete para uma “posição estratégica que se encontra entre o PSD e o PS, mas que é, simultaneamente, a posição que sempre teve Marcelo Rebelo de Sousa“.

Do ponto de vista financeiro, a mensagem de Marcelo foi igualmente acentuada no futuro, mas mais na ótica da consolidação das contas públicas e de que os 16 mil milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que o país terá para gastar nos próximos dois anos “sejam mesmo usados”.

Este “recado” do Presidente da República acerca do PRR é, segundo António Costa Pinto, a única parte do seu discurso que diz respeito a políticas concretas, ou seja, de algo que o Governo pode concretizar no imediato, contrariamente aos objetivos da erradicação da pobreza ou de pôr Portugal a crescer acima da média europeia.

O PRR “é um desafio que foi importante para o [anterior] Governo do PS e que é dramático para o [atual] Governo do PSD/CDS”, realça o também professor catedrático no ISCTE, assinalando que, “à medida que se encontra próximo do fim, parece ser mais desesperante” para Marcelo “a inoperância em utilizá-lo“.

O país é exatamente o mesmo, mas o primeiro-ministro e o Presidente da República falam de locais institucionais diferentes.

António Costa Pinto

Cientista político e professor catedrático no ISCTE

O cientista político ressalva, porém, que analisar esta mensagem do Chefe de Estado “não tem grande significado”, tendo em conta que Marcelo “pulverizou os locais da sua mensagem política”, de “caráter quase constante e quotidiano”, enquanto os seus antecessores — como, por exemplo, Cavaco Silva — desenvolviam os seus discursos políticos apenas “nos lugares e nos períodos rituais” da Presidência da República, tais como nas cerimónias do 25 de Abril ou na mensagem de Ano Novo.

As diferenças para com a mensagem de Natal do primeiro-ministro ficaram também evidentes na breve referência do Presidente da República às eleições autárquicas, que deverão ocorrer na segunda metade do ano e que não receberam qualquer menção por parte de Luís Montenegro. Quando diz que, “como sempre, em 2025, o povo será o juiz supremo da nossa resposta perante tantos desafios”, Marcelo “convoca todos” na sua “aspiração por uma sociedade e um Estado melhor”, diz ainda Paula Espírito Santo.

Assim, a “mensagem conjuntural” do primeiro-ministro no Natal “identificou passos importantes que foram dados, mas que não foram suficientes para se concretizar o crescimento que Portugal deve ter para consolidar a sua democracia”, o que o Presidente da República contrapôs, na sua oitava e penúltima mensagem de Ano Novo, com uma visão “de reforma do próprio sistema”, apostando em “causas como a renovação da democracia e o rejuvenescimento da população”.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Nas mensagens de Natal e de Ano Novo, Montenegro e Marcelo falaram de países diferentes

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião