A cronologia de uma demissão na Galp

Entre a entrega da denúnica anónima e o anúncio ao mercado da demissão, passaram menos de vinte dias. Foi um processo acelerado que levou à queda do CEO da Galp em período de festas natalícias.

A Comissão de Ética e Conduta da Galp Energia recebeu a denúncia anónima sobre uma relação próxima entre o Chief Executive Officer (CEO) da companhia e uma diretora de topo que dependia hierarquicamente do gestor na semana do Natal. Era uma informação explosiva que, logo se percebeu, tinha pormenores e detalhes que não deixavam dúvidas sobre a relação amorosa e sobre os potenciais conflitos de interesse que, à luz do código da companhia, poderiam mesmo levar à demissão de Filipe Silva. Foi aberto um processo de investigação interno e passados menos de 20 dias, o gestor anuncia ao mercado a demissão por “razões familiares“. É a cronologia de uma demissão que se adivinhava numa das maiores empresas portuguesas, que vale mais de 11 mil milhões de euros.

Filipe Silva estava fora do país, em férias na Ásia, e só terá sido notificado da queixa anónima já depois do Natal. O ECO teve acesso às primeiras informações sobre a existência de uma denúncia na semana de Ano Novo, de forma confidencial e ainda sem dados relevantes sobre os protagonistas. Já no dia 2, confirmou com uma segunda fonte interna da companhia o que estava em causa, e que tinha já feito baixas em grandes multinacionais nos últimos anos, como a BP e a McDonalds.

No dia 3, sexta-feira, o ECO confrontou, em primeiro lugar, o presidente da Comissão de Ética e Conduta da Galp. Tito Arantes Fontes, presidente desta comissão desde junho de 2023, revelava que “existem diversas denúncias anónimas, mais ainda numa multinacional como a Galp”. Mas não confirmou nem desmentiu a existência desta denúncia específica. O presidente da Comissão garantia ao ECO que a sua função era investigar e procurar a verdade, e reportar depois ao Conselho Fiscal, de quem depende, as respetivas conclusões, em sigilo absoluto. Arantes Fontes esclareceu ainda que a Comissão não tinha prazos previstos para a conclusão de investigações, mas quando estão em causa processos laborais com possíveis consequências disciplinares, a Comissão de Ética tem em conta as leis que podem ser relevantes para uma decisão.

Sim, tive conhecimento da denúncia, mas não conheço o teor da mesma e assim que tiver conhecimento dela apenas a discutirei com a Comissão de Ética.

Filipe Silva

Nesse final de tarde, o ECO enviou perguntas detalhadas sobre o processo em causa a Filipe Silva e à presidente do Conselho de Administração e representante do maior acionista, Paula Amorim, Inicialmente, nem um nem outro responderam às perguntas enviadas. O CEO estava fora do país, na Ásia, com uma diferença horária e contacto difícil. Depois, pediu um prazo alargado para responder, até ao dia de sábado à tarde, porque queria avaliar a oportunidade da resposta com outras pessoas (e provavelmente advogados). Perante a insistência do ECO, acabou por responder na noite de dia 3, sexta-feira, ainda não tinham chegado as 22h.

Sim, tive conhecimento da denúncia, mas não conheço o teor da mesma e assim que tiver conhecimento dela apenas a discutirei com a Comissão de Ética“, afirmou Filipe Silva em resposta por escrito ao ECO. O gestor nunca desmentiu a existência de uma relação amorosa com uma diretora de topo da Galp. Mas confirmou ao ECO que em nenhum momento participou à Comissão de Ética qualquer relacionamento — o código de conduta assim obriga quando estão em causa potenciais conflitos de interesse –, e garantiu que nenhuma relação pessoal “ameaçou a integridade das decisões da Galp“.

Passados poucos minutos, foi Paula Amorim a responder às perguntas detalhadas do ECO. Com uma resposta institucional que, no mercado, foi vista como um sinal de que o lugar de Filipe Silva estava mesmo em risco. “A Presidente do Conselho de Administração reitera o compromisso da Galp no cumprimento do Código de Ética e Conduta, atuando por isso, sempre que aplicável e nos termos das disposições legais e estatutárias”. Em nenhum momento fez uma defesa do gestor. A empresária salientou ainda que “a Comissão de Ética e Conduta da Galp é a estrutura interna e independente a quem cabe, designadamente, proceder à receção e tratamento de informações transmitidas ao abrigo do Procedimento de
Comunicação de Irregularidades e, quando aplicável, à instrução de eventuais processos de averiguação”. À luz do que se sabe hoje, a resposta cuidadosa de Paula Amorim deixa perceber que já antecipava o risco de a Galp ter de escolher um novo CEO, o quarto em menos de meia dúzia de anos. Confirmou-se.

O fim de semana foi de troca intensa de informação na Galp, além, obviamente, do choque e da surpresa dentro da companhia pelo teor da notícia. Sucederam-se as pressões sobre a Comissão de Ética para se perceber a fundamentação da denúncia, eventuais detalhes para fazer a defesa do gestor e da própria Galp, mas o presidente daquela entidade independente e prevista nos estatutos da companhia manteve-se fechado em copas. Seria ainda necessário ouvir Filipe Silva e a diretora da Galp para avaliar a credibilidade da denúncia, mas isso só seria feito no início desta semana, depois do regresso do gestor da Ásia no fim de semana. À medida que o tempo passava, ganhava força a tese de que o CEO poderia mesmo cair, especialmente depois das declarações em que não desmentiu a relação e da resposta cuidada de Paula Amorim.

As pessoas da Galp têm a obrigação de reconhecer quando estejam, possam vir a estar ou possam ser percecionados como estando perante uma situação que configure conflito de interesses. Nas circunstâncias em que identifiquem estar perante um conflito de interesses, devem reportar através da plataforma existente para o efeito, por forma a que sejam tomadas as medidas que permitam eliminar ou gerir tais conflitos…

Código de Ética e Conduta da Galp

A notícia tinha sido revelada pelo ECO na sexta-feira à noite, já depois das 22h, mas só no domingo começou a ganhar força mediática e na segunda-feira acabou mesmo por ser uma das notícias do dia em todos os meios. No podcast “Expresso da Manhã“, conduzido por Paulo Baldaia e dos mais ouvidos do país, o tema foi mesmo este. “Caso amoroso poderá levar à demissão do CEO da Galp?”, era a pergunta ao editor de Economia do Expresso, o jornalista Miguel Prado”. E a abertura da bolsa na segunda-feira mostrava o desconforto dos investidores com a notícia (já a antecipar o pior), com o título a abrir com uma queda na casa dos 1,5%. As televisões também agarraram o tema e isso acelerou o processo, e a urgência de uma clarificação.

Perante a comissão de ética, Filipe Silva não terá negado a existência do relacionamento próximo com a diretora que tinha sob as suas ordens diretas e isso precipitou uma decisão que foi anunciada ao mercado ao final da tarde de terça-feira. O que diz o Código de Ética e Conduta da Galp deixava pouca ou nenhuma margem a Filipe Silva para se manter em funções. “As pessoas da Galp têm a obrigação de reconhecer quando estejam, possam vir a estar ou possam ser percecionados como estando perante uma situação que configure conflito de interesses. Nas circunstâncias em que identifiquem estar perante um conflito de interesses, devem reportar através da plataforma existente para o efeito, por forma a que sejam tomadas as medidas que permitam eliminar ou gerir tais conflitos…”. As regras da companhia, o alarme social e de mercado e a impossibilidade de gerir de forma discreta uma solução tornaram a saída inevitável.

Não se sabe se a Comissão de Ética concluiu o seu trabalho e se o entregou ao Conselho Fiscal, como manda o código, ou se Filipe Silva antecipou o que percebeu ser o desfecho deste processo. Num comunicado curto, em inglês, de apenas nove linhas, a Galp informava o mercado que Filipe Silva tinha notificado Paula Amorim do pedido de demissão com efeitos imediatos “por razões familiares”. Sem revelar os detalhes do acordo a que terá chegado, até porque o mandato vai literalmente a meio. No mesmo comunicado, a Galp revelava uma curta declaração da empresária: “Gostaria de enfatizar a contribuição de Filipe Silva para a companhia nos últimos 12 anos, período durante o qual a sua dedicação foi importante para o crescimento da Galp”.

O sucessor será conhecido nos próximos dias.

 

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