Bruxelas quer criar um xerife europeu dos mercados à imagem da SEC nos EUA
A Comissão Europeia pretende centralizar a regulação financeira na Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA), tirando poder às autoridades nacionais.
- A Comissão Europeia lançou uma ofensiva histórica para centralizar a supervisão financeira na União Europeia, transformando a ESMA num "super-polícia" dos mercados financeiros.
- Bruxelas propõe que a ESMA passe a supervisionar diretamente entidades significativas, como contrapartes centrais e prestadores de serviços de criptoativos, esvaziando as competências das autoridades nacionais.
- A nova estrutura da ESMA poderá levar a uma supervisão mais eficaz, mas também suscita resistência dos Estados-membros que relutam em perder soberania financeira.
A Comissão Europeia lançou esta quinta-feira a maior ofensiva de sempre para a centralização da supervisão financeira na União Europeia, no âmbito de um pacote de medidas para a criação de um mercado único de serviços financeiros.
O objetivo é transformar a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) num “super-polícia” dos mercados, com poderes diretos sobre as grandes bolsas e a totalidade do mercado cripto. Para a CMVM, liderada por Luís Laginha, e os seus congéneres europeus, a mensagem é de que o tempo da fragmentação acabou.
Bruxelas decidiu que 30 anos de Mercado Único são suficientes para perceber que, nos serviços financeiros, o mercado não é, de facto, único.
Num movimento que promete fazer correr muita tinta nos corredores dos reguladores nacionais — de Lisboa a Frankfurt –, a equipa de Maria Luís Albuquerque, a comissária europeia para os Serviços Financeiros e da União da Poupança e dos Investimentos, apresentou esta quinta-feira um pacote legislativo que desenha, pela primeira vez de forma inequívoca, uma verdadeira “SEC europeia”.
O plano de Bruxelas passa por transformar a ESMA, sediada em Paris, num supervisor com dentes, orçamento e, crucialmente, jurisdição direta sobre os “pesos pesados” do sistema financeiro europeu.
A proposta, que visa revitalizar a União dos Mercados de Capitais, não se fica por meias-medidas. O plano passa por transformar a ESMA, sediada em Paris e liderada desde novembro de 2021 por Verena Ross, num supervisor com dentes, orçamento e, crucialmente, jurisdição direta sobre os “pesos pesados” do sistema financeiro europeu.
Se até hoje a ESMA era muitas vezes vista como um organismo de convergência técnica, o futuro reserva-lhe o papel de xerife principal. E isso é, desde logo, visível na lista de entidades que passam a responder diretamente perante esta entidade, contornando os supervisores nacionais.
A Comissão Europeia quer que a ESMA supervisione diretamente as contrapartes centrais (CCP) e as Centrais de Valores Mobiliários (CSD) consideradas “significativas”, bem como as plataformas de negociação (bolsas) que tenham uma dimensão crítica para a economia da União Europeia ou uma forte componente transfronteiriça. Além dessas, a Comissão Europeia quer também que a ESMA centralize a supervisão de num setor que tem tirado o sono a muitos reguladores: os criptoativos.
Numa decisão que esvazia quase por completo as competências das autoridades nacionais nesta matéria, Bruxelas propõe que todos os Prestadores de Serviços de Criptoativos (CASP) passem a ser autorizados e supervisionados diretamente pela ESMA.
Todos os prestadores de serviços de criptoativos serão autorizados e supervisionados diretamente pela ESMA, refletindo a natureza transfronteiriça inerente às atividades relacionadas com criptoativos.
A lógica da equipa de Maria Luís Albuquerque é pragmática: o negócio cripto é, por natureza, transfronteiriço. Deixar a supervisão retalhada por 27 autoridades nacionais, com diferentes níveis de recursos e know-how, é um convite à arbitragem regulatória.
“Todos os prestadores de serviços de criptoativos serão autorizados e supervisionados diretamente pela ESMA, refletindo a natureza transfronteiriça inerente às atividades relacionadas com criptoativos”, destaca a Comissão Europeia num dos documentos que suportam a proposta.
Haverá, contudo, uma exceção cirúrgica, mas com rasteira. As entidades financeiras tradicionais (como bancos ou empresas de investimento) que já sejam supervisionadas a nível nacional e que prestem serviços de criptoativos como atividade acessória, mantêm-se sob a alçada do supervisor local, com uma nuance: se o volume de negócios com criptoativos ultrapassar metade da faturação total da entidade durante dois anos consecutivos, a supervisão transita automaticamente para a ESMA (exceto no caso dos bancos).
Para o mercado, isto significa um interlocutor único. Para a CMVM e para o Banco de Portugal, que através da proposta de lei do Governo aprovada em agosto em Conselho de Ministros, com vista à execução do Regulamento do Mercado de Criptoativos (o chamado MiCA), foram instituídos a partilharem a supervisão dos criptoativos, significa perderem a tutela direta sobre as exchanges e corretoras de criptoativos que se instalem em Portugal, mantendo apenas um papel de coadjuvante ou de “olheiro” local.
A nova cara da regulação europeia
Para gerir as novas valências e todo o novo poder, a ESMA vai mudar de cara. A estrutura de governance será reformulada para se libertar das amarras nacionais.
Atualmente, muitas das decisões da ESMA são tomadas pelo Conselho de Supervisores, onde se sentam os presidentes das autoridades nacionais (como o presidente da CMVM). O problema, aponta Bruxelas, é que estes tendem a defender os interesses domésticos.
A solução proposta por parte da equipa de Maria Luís Albuquerque é a criação de um Conselho Executivo, composto por cinco membros independentes a tempo inteiro e pelo presidente da ESMA. Será este o novo centro nevrálgico, responsável pelas decisões de supervisão direta.
Bruxelas considera que o orçamento da nova ESMA seja paga integralmente pelas taxas cobradas às entidades supervisionadas (princípio do utilizador-pagador). Para as atividades da ESMA que não são cobertas por taxas (como a regulação geral), Bruxelas propõe alterar a chave de repartição.
Aos supervisores nacionais, reunidos no Conselho de Supervisores, restará o papel de definir a regulação geral e o poder de objetar a certas decisões, mas perdem o comando do dia-a-dia da supervisão das grandes entidades.
E para garantir que a supervisão não é feita apenas a partir de torres de vidro em Paris, a Comissão Europeia introduz a possibilidade de a ESMA colocar pessoal nos Estados-membros.
Não se trata de criar 27 sucursais burocráticas, mas de ter equipas funcionais deslocadas onde a ação acontece, seja para inspeções in loco ou para garantir proximidade geográfica quando necessário.
“A presença local continuaria a ser estritamente funcional, limitada e sujeita a uma justificação de custo-benefício”, defende a Comissão Europeia num dos documentos que acompanha a proposta.
A suportar financeiramente estas alterações profundas na estrutura da ESMA estará a indústria financeira. O modelo de financiamento prevê que a supervisão direta seja paga integralmente pelas taxas cobradas às entidades supervisionadas (princípio do utilizador-pagador), considera a Comissão Europeia.
O argumento de Bruxelas é económico e urgente: sem um supervisor único forte, não há mercado único de capitais. E sem mercado único, a Europa continuará a ver as suas poupanças fugirem para os EUA.
No entanto, há um rebuçado para os orçamentos nacionais. Para as atividades da ESMA que não são cobertas por taxas (como a regulação geral), Bruxelas propõe alterar a chave de repartição. Atualmente, os supervisores nacionais pagam 60% e o orçamento da União Europeia 40%. A nova proposta alivia a carga sobre entidades como a CMVM, passando a divisão para 50-50.
A proposta da Comissão Europeia é arrojada e antecipa uma batalha política dura. Os Estados-membros, ciosos da sua soberania financeira, não entregarão os anéis de bom grado. Mas o argumento de Bruxelas é económico e urgente: sem um supervisor único forte, não há mercado único de capitais. E sem mercado único, a Europa continuará a ver as suas poupanças fugirem para os EUA.
Para Portugal, isto significa que a supervisão das maiores infraestruturas e do setor cripto passará a ser comandada em inglês e francês, a partir de Paris. À CMVM restará a supervisão do retalho tradicional, das entidades mais pequenas e a colaboração com o novo “super-xerife” europeu. Resta saber se Lisboa aceitará ser apenas uma “esquadra” na nova arquitetura de segurança financeira da Europa.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Bruxelas quer criar um xerife europeu dos mercados à imagem da SEC nos EUA
{{ noCommentsLabel }}