Abrandamento do mercado obriga startups a “esticar” rondas e travar contratações

Desvalorização dos mercados financeiros vai obrigar startups a gerirem injeções de capital por mais tempo, antecipam sociedades de capital de risco portuguesas.

Caras startups, apertem os cintos porque os próximos meses vão ser recheados de turbulência. A desvalorização das empresas tecnológicas nos mercados financeiros dos Estados Unidos vai ter impacto na captação de rondas de investimento em Portugal, as empresas terão de gerir as injeções de capital por mais tempo e os planos de contratações abrandar ou mesmo travar, alertam as sociedades de capital de risco ouvidas pelo ECO/Pessoas.

Os sinais de que o ambiente “quente” e a elevada liquidez de financiamento no ecossistema de startups estão a arrefecer estão a evidenciar-se. Depois de períodos de elevado crescimento operacional, sucedem-se pelos Estados Unidos e pela Europa anúncios de redução de pessoal, a Klarna ou os unicórnios Getir (decacórnio desde março) e Gorillas, estes últimos fortemente alavancados por rondas de investimento que avaliaram as duas empresas em mais de mil milhões de dólares (931,65 milhões de euros), são apenas alguns dos anúncios mais recentes.

E, dúvidas houvesse de que o ‘inverno’ poderá estar a chegar ao setor tech, o índice tecnológico norte-americano (NASDAQ) está a dar sérios avisos à navegação: já recuou mais de 30% desde o início do ano, lembra o administrador executivo da Bynd, Francisco Ferreira Pinto.

“Já há menos empresas tecnológicas a entrarem no mercado de capitais e diminuiu o número de fusões”, acrescenta a líder da Investors Portugal. Lurdes Gramaxo antevê que, a prolongar-se a situação, os efeitos vão “dificultar as rondas seed [semente] e pre-seed“, dirigidas a startups com menos tempo de mercado.

As consequências estão à vista. “Seguem-se tempos desafiantes: a aversão ao risco, tanto de empreendedores como de investidores, será mais evidente nos próximos meses, não apenas pela queda do mercado mas por outros fatores externos que ditam uma retração económica — a pandemia e os efeitos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia”, atenta Pedro Santos Vieira, um dos sócios da Shilling.

Tudo como dantes…até agora

2021 foi um ano sem precedentes para as startups portuguesas: o montante total de investimento em rondas ultrapassou o patamar do unicórnio pela primeira vez, para um total de 1,1 mil milhões de euros, segundo a plataforma Dealroom. Capital não faltou para apostar em novas empresas, graças ao grande volume de liquidez pós-pandemia. O ano passado ficou marcado pelo surgimento de quatro unicórnios com ADN português: Feedzai, Remote, Anchorage Digital e SWORD Health.

Mesmo nos primeiros cinco meses do ano já foi investido mais dinheiro em startups (426 milhões de euros) do que em todo o ano de 2020 (349 milhões de euros). Contudo, boa parte das rondas de investimento anunciadas nas últimas semanas foi fechada antes do abrandamento dos mercados. Agora é que começa o verdadeiro desafio para levantar capital junto dos privados.

Se antes se faziam rondas para 18 meses de runway e por vezes 12 meses, agora os investidores dificilmente investem para períodos inferiores a 24 meses

Stephan Morais

Sócio-gerente da Indico Capital Partners

“Esticar” o capital e congelar contratações

Boa parte das startups depende do levantamento de capital para financiar a atividade: é uma ferramenta para acelerar o crescimento associada à responsabilidade de elevar o negócio para novos patamares. Numa fase em que é necessário apostar em desenvolvimento e ainda não há grandes fontes de receita, normalmente, é preciso gerir o dinheiro durante um ano. No capital de risco, esse período é designado de runway.

Mas o abrandamento do mercado vai obrigar a gerir o orçamento de forma mais criteriosa, ou seja, será preciso “esticar” o dinheiro por mais tempo. “Se antes se faziam rondas para 18 meses de runway e por vezes 12 meses, agora os investidores dificilmente investem para períodos inferiores a 24 meses”, destaca o sócio-gerente da Indico, Stephan Morais.

A política de contratações será a mais afetada pela mudança de contexto. “A gestão da tesouraria é particularmente sensível em tempos de incerteza e pode haver situações em que será necessário reduzir contratações e mesmo despedir”, adverte Lurdes Gramaxo. A mesma mensagem é transmitida pelas restantes sociedades de capital de risco.

Ainda assim, há algumas alternativas aos despedimentos. Stephan Morais propõe a “redução do investimento em marketing“; a representar o Estado, a Portugal Ventures sugere um maior recurso a prestadores externos de serviços (outsourcing); e Francisco Ferreira Pinto aconselha apostar em “mais e melhores vendas” para “conseguir a estabilidade financeira por via dos clientes e do crescimento do seu negócio”, reduzindo a dependência do capital externo.

Quem mantiver as contratações, “deve analisar bem o retorno do investimento” em recursos humanos, entende Pedro Santos Vieira.

A gestão da tesouraria é particularmente sensível em tempos de incerteza e pode haver situações em que será necessário reduzir contratações e mesmo despedir

Lurdes Gramaxo

Presidente da Portugal Investors

Unicórnios portugueses resistem

Portugal conta com sete empresas que conseguiram obter a valorização de mais de mil milhões de dólares. Farfetch (entretanto em bolsa), OutSystems, Talkdesk, Feedzai, Sword Health, Anchorage e Remote são as sete tecnológicas — com ADN português — que atingiram essa avaliação.

Ao ECO/Pessoas, os investidores afastam um cenário de perda deste estatuto apesar de haver menos capital a fluir nos mercados. “Os unicórnios com ADN português possuem planos de negócio e de crescimento alicerçados em valores e modelos estáveis e que resistirão a fases menos previsíveis de mercado”, nota o investidor da Shilling.

Francisco Ferreira Pinto acrescenta que estas empresas “têm uma base de investidores com capacidade de apoiar a empresa caso haja alguma necessidade de curto prazo”.

Apesar da incerteza, o responsável da Shilling acredita que “2022 ainda trará novos nomes com ADN português à lista de startups com estatuto de unicórnio”.

Os unicórnios com ADN português possuem planos de negócio e de crescimento alicerçados em valores e modelos estáveis e que resistirão a fases menos previsíveis de mercado.

Pedro Santos Vieira

Shilling

Ainda há vencedores

No meio do pessimismo, há algumas startups que partem em vantagem. Para a Portugal Ventures, novos negócios “associados a energias alternativas ao fornecimento de energias fósseis da Rússia, em particular as energias renováveis, bem como as áreas de alimentação e novos materiais mais sustentáveis”.

A capital de risco pública lembra ainda a recuperação do setor do turismo, após dois anos de pandemia que enfraqueceram a indústria.

Mesmo com toda a incerteza, quase todos os investidores recordam que algumas das tecnológicas portuguesas mais ativas no mercado nasceram em plena crise da troika. É com o cinto bem apertado e o fato de combate vestido que as startups nacionais vão enfrentar os próximos meses.

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