A linha da vida do BCP: dos 200 contos aos 20 cêntimos
O BCP estreou-se em bolsa há precisamente 30 anos a valer 200 contos. O ECO foi aos arquivos da Bolsa de Lisboa e mostra-lhe os altos e baixos que marcaram a história do maior banco privado português.
“Aviso: Faz-se público que foram admitidas à cotação no mercado oficial 550.000 acções no valor nominal de 10.000 escudos cada um do Banco Comercial Português, S.A., correspondentes ao actual capital social da empresa e representadas por títulos de 1, 10 e 100 acções. Bolsa de Valores de Lisboa, 2 de Setembro de 1987. O Presidente da Comissão Directiva, António Braz dos Santos“.
Começou assim a vida do BCP na bolsa portuguesa há precisamente 30 anos. É uma história de relativo sucesso no mercado de capitais, marcada por altos e baixos, conflitos e guerras entre acionistas e casos de polícia. Mas também de resiliência face às inúmeras diversidades e obstáculos que foi superando ao longo do tempo e que chega aos dias de hoje com dois grandes acionistas de referência em nova luta pelo controlo do maior banco privado português: os chineses da Fosun e os angolanos da Sonangol.
Aviso no Boletim de Cotações da Bolsa de Valores de Lisboa
Estávamos no início de setembro de 1987. Fundado dois anos antes por pouco mais de duas centenas de acionistas em nome individual, entre os quais Américo Amorim, Ferreira da Silva, Jorge Jardim Gonçalves, Pedro Teixeira Duarte e Ângelo Ludgero Marques, aos quais se associaram muitas empresas como a Vista Alegre, Têxtil Manuel Gonçalves, Salvador Caetano e Revigrés, entre outras, o Banco Comercial Português S.A. chegou ao mercado de capitais em plena época de euforia bolsista. Nesse ano, mais de 90 empresas e bancos tinham sido admitidos na bolsa de valores portuguesa.
A 4 de setembro chegaram à praça 110 mil ações do BCP da classe “Portador” e outras 440 mil ações do BCP “Nominativas e Portador Registado”, num total de 550 mil títulos com o valor nominal de dez contos cada (50 euros, sem contar com o efeito da inflação). Mas a primeira sessão de sempre do BCP não registou sequer qualquer movimento: zero ações trocadas porque nenhum dos acionistas quis vender ações naquele dia apesar de ordens acima dos 100 contos, segundo o Boletim de Cotações da Bolsa de Valores de Lisboa relativo aquela sessão e que foi cedido pela Euronext Lisbon ao ECO.
Assim, foi apenas na sessão do dia 9 de setembro que os primeiros papéis começaram a andar de mão em mão. Não foram muitos na verdade: 350 títulos. A que preço? As ações ao portador (cujo detentor não se conhecia) fecharam a sessão nos 200 contos. Sim, 200 contos que convertidos em euros (sem contabilizar a inflação) dão 1.000 euros. As ações “Nominativas e Portador Registado” custavam 160 contos. Eram os títulos mais caros da bolsa nacional, o que condicionava a sua liquidez. O BPI, por exemplo, tinha um preço de 25 contos (Portador) e 15 contos (Nominativas e Portador Registado).
Boletim de cotações no dia 9 de setembro: última ação negociada do BCP valia 200 contos
O entusiasmo inicial depressa foi contaminado pela conjuntura internacional. E os primeiros meses de vida na bolsa viriam a revelar-se premonitórios quanto ao resto da história do BCP na bolsa: aumento de capital atrás de aumento de capital, perdas para os acionistas, mas ao mesmo tempo demonstração de resistência mesmo em situações de grave crise. Até hoje.
No final de setembro de 1987, as ações ao portador chegaram a valer cerca de 280 contos (cerca de 1.400 euros), tocando o valor mais elevado de sempre, num período bastante positivo nas bolsas mundiais. Entrou outubro e os mercados colapsaram com um crash na bolsa de Nova Iorque. Numa só sessão, a 19 de outubro, o índice americano Dow Jones afundou 20%. O BCP foi arrastado.
No primeiro relatório e contas apresentado pós-entrada em bolsa, Jardim Gonçalves resumia o ano desta forma: “Não é possível fazer uma referência ao ano económico de 1987 sem nos determos naqueles que terão sido os factos mais marcantes no mundo dos negócios. Refiro-me, bem entendido, à queda do dólar norte-americano e à crise que afetou o mercado de capitais nas praças financeiras mais significativas dos países de economia de mercado. (…) Ao terminar o ano de 1987, as principais bolsas mundiais não se recuperaram ainda da queda sofrida em Outubro…”
Para os acionistas do BCP, outubro, novembro e dezembro de 1987 trouxeram uma desvalorização das ações de 70%. No final do ano, um título do BCP ao portador “já só” valia 86 contos — longe dos 280 contos do final de setembro.
Mensagem de Jorge Jardim Gonçalves no relatório e contas de 2017
Apesar do mau desempenho bolsista, como reconhecia o presidente executivo, 1987 dificilmente poderia ter corrido melhor para o BCP em termos operacionais. Foi um ano de forte expansão do negócio e de dimensão do banco, seja em termos de recursos obtidos, créditos concedidos, número de trabalhadores até número de… computadores.
Fechou o ano com lucros de 1,7 milhões de contos face aos 80 mil contos registados em 1986, segundo a demonstração de resultados apresentada na Bolsa de Valores de Lisboa e cedida pela Euronext ao ECO. Os recursos de clientes multiplicaram-se por cinco para 105 milhões de contos e funcionários já eram quase 500, o dobro do ano anterior.
Primeira demonstração de resultados do BCP na bolsa
No mesmo relatório, Jardim Gonçalves salientou a consolidação do banco nesse ano. “O Banco Comercial Português veio, nesse aspeto, a consolidar uma posição de grande destaque cotando-se, pelo volume de consultas, pelo número e montante das operações realizadas e pela qualidade dos seus interlocutores internacionais, como um dos principais operadores e, como tal, tornando-se um observador privilegiado das tendências de negócio”.
“Uma Palavra do Presidente” assinada por Jardim Gonçalves nas contas de 1987
A linha da vida
No final de 1987, o BCP apresentou-se com uma capitalização bolsista de 220 milhões de euros. Só em 1993 superou a fasquia importante dos 1.000 milhões de euros, num período em que o crescimento do banco se fez sobretudo por via orgânica. Aquisições de bancos só no ano a seguir: comprou o Banco Português Atlântico em 1994.
Mais compras surgiram nos anos a seguir, financiadas por sucessivos aumentos de capital que alimentavam o apetite aglutinador do BCP no setor financeiro nacional, e num momento particularmente positivo na economia, em convergência com a União Europeia. Depois do Atlântico em 1994 seguiram-se o Banco Mello e o Banco Pinto & SottoMayor, concretizadas em 2000. Foi precisamente no final desse ano que o BCP atingiu o maior valor de mercado na sua história, acima dos 11.600 milhões de euros.
Valor de mercado do BCP entre 1987 e 2007
Fonte: Bloomberg
O ano de 2002 acabou por marcar um profundo revés (mais um) no valor do banco na bolsa. Passou de um market cap de 10.000 milhões para metade em apenas 12 meses, já a economia dava sinais de forte desaceleração face às taxas apresentadas na década anterior. Nesse ano a economia cresceu menos de 1%. E em 2003 contraiu mesmo.
O BCP foi recuperando valor nos anos seguintes, à boleia também da internacionalização do negócio — sobretudo Polónia e Grécia e junto das comunidades luso-descendentes, incluindo Angola e Moçambique.
Em 2006, voltou a superar a fasquia dos 10.000 milhões — a fasquia a que Paulo Teixeira Pinto chamava de “linha da vida do BCP” — e deu um sinal de força quando anunciou uma oferta para adquirir a totalidade (oferecia sete euros por ação) do Banco BPI. O processo de OPA encerrou sem sucesso em maio de 2007, ano em que o BCP valorizou ainda mais apesar do público conflito entre os acionistas e administração de Paulo Teixeira Pinto. Em 2008, novo tombo.
Guerra pelo poder
Em 1984, numa reunião no Hotel Infante de Sagres, no Porto, que serviu de rampa de lançamento do BCP, ficaram algumas das ideias-chaves acerca do que deveria ser o modelo de governo do banco: “O novo banco não poderia ser uma espécie de self-service dos acionistas, cabendo integralmente aos administradores a responsabilidade e autonomia de gestão, assim como a possibilidade de se prever, nos estatutos, a possibilidade de a Assembleia Geral poder nomear alguns membros para colaborar com o Conselho de Administração, em assuntos relevantes para a sustentabilidade do banco”. (1)
Em 1987, os órgãos sociais estavam assim distribuídos: Jorge Jardim Gonçalves liderava o conselho de administração, onde estavam ainda Eduardo Consiglieri Pedroso, Eurico Ferreira Nunes, Francisco Ferreira da Silva e Luís Mota Freitas; a mesa da Assembleia Geral tinha António Teixeira de Melo como presidente por impedimento de Luís Valente de Oliveira; e Ricardo Bayao Horta era o presidente do Conselho Fiscal do BCP.
Órgãos sociais do BCP em 1987
Mais de duas décadas depois, em 2007, estes ideais anunciados naquele hotel do Porto foram desvirtuados pela luta de poder entre os acionistas e órgãos sociais do BCP. Foi o período mais quente da vida do banco.
De um lado Jardim Gonçalves, histórico ex-presidente do BCP, e acionistas de referência como a construtora Teixeira Duarte. Do outro Paulo Teixeira Pinto, que havia substituído Jardim Gonçalves dois anos antes, e o grupo dos sete, como ficaria conhecido o grupo composto pelos acionistas Manuel Fino, Vasco Pessanha, Diogo Vaz Guedes, Bernardo Moniz da Maia, Filipe de Botton, João Pereira Coutinho e Joe Berardo.
Foram lançadas propostas para reforçar os poderes do conselho de supervisão liderado por Jardim Gonçalves, incluindo a nomeação do presidente do conselho executivo e reforço da dos mecanismos de blindagem do estatutos do BCP e que os aliados de Teixeira Pinto rejeitaram. Em resposta, os apoiantes de Teixeira Pinto propuseram alterações no governo societário e nos estatutos do banco. Neste impasse, os ataques públicos entre Jardim Gonçalves e Teixeira Pinto subiram de tom. Propôs-se a destituição de administradores.
Mas a assembleia geral de 27 de agosto, que definiria o futuro banco, deixou tudo na mesma. “Foram retiradas, pelos respetivos proponentes, as propostas relativas aos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da ordem de trabalhos, não tendo sido apresentada qualquer proposta relativa ao ponto 8, pelo que não ocorreu qualquer deliberação sobre os pontos da ordem de trabalhos“, comunicou o BCP ao mercado. Paz no banco? Nem por isso.
Novo afundanço na bolsa e a Sonangol
Ainda que a batalha dos acionistas não tenha beliscado o valor do banco, que fechou 2007 com uma capitalização bolsista de 10.545 milhões de euros, o ano seguinte veio a provocar uma destruição tremenda para os acionistas. Terminou o ano a valer apenas 3.826 milhões de euros, refletindo uma queda de 60% face a 2007.
Foi um ano de terror nas bolsas, fortemente impactada pela crise do subprime que culminou com a falência do Lehman Brothers no dia 15 de setembro de 2008.
E foi precisamente nesse ano que se deu a entrada da petrolífera estatal angolana Sonangol, robustecida pelo elevado preço do petróleo, no BCP. “Em maio e setembro de 2008, o banco celebrou acordos de parcerias estratégicas com a Sonangol e o BPA. O conjunto de instrumentos (…) prevê, designadamente, uma participação indicativa de referência pela Sonangol no capital social do BCP e a apresentação aos acionistas do BCP de proposta de designação de um membro da Sonangol para integrar os corpos sociais do BCP”, lê-se na história do banco publicada no seu site.
Da nacionalização à China
À crise do subprime nos EUA sobrepôs outra: as crises das dívidas soberanas na Zona Euro, que atingiram sobretudo a Grécia (2010) e Portugal (2011), dois dos principais mercados do BCP e onde o banco havia investido bastante em dívida pública, o que deixava a instituição exposta a um elevado risco.
Voltaram a suceder-se os aumentos de capital. Mas, ao invés de financiar o crescimento do banco como na década de 90, estes já só serviram para garantir sua sobrevivência. De resto, o BCP até teve de se socorrer da ajuda do Estado que lhe empresta 3.000 milhões de euros para evitar um outro destino mais fatal, numa altura em que o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco de Portugal apertavam as regras para garantir que a desconfiança do mercado não se alastrava ao sistema financeiro.
O Estado entrou no banco já no final de 2012, com Nuno Amado já na liderança. Ainda antes de ser aprovado o plano de reestruturação, que previa uma redução da dimensão do banco no mercado nacional e internacional em julho de 2013, o BCP vendeu a operação na Grécia, onde detinha o Millenium Bank. Vendeu depois o negócio na Roménia, mantendo o Bank Millenium na Polónia, além das operações estratégicas em Angola e Moçambique.
Ao mesmo tempo, na bolsa, a cotação seguia cada vez mais deprimida. Fechou 2011 a valer menos de 1.000 milhões de euros. Recuperaria nos anos seguintes mas voltaria à casa dos 1.000 milhões em 2016, com o crédito em incumprimento a passar uma fatura pesada no bolso dos acionistas do banco. Por esta altura, o título negociava na casa de um a dois cêntimos.
O final de 2016 marcou um novo capítulo na história do banco. Sem capital, os acionistas foram “obrigados” a abrir a porta à entrada aos chineses da Fosun, de onde vinham os únicos grupos com capacidade financeira. A entrada deu-se em fevereiro de 2017, com o aumento de capital de 1.300 milhões de euros, e que conferiu aos chineses o estatuto de maior acionista do banco. Já detêm um quarto do capital do banco e uma intenção de resposta dos angolanos da Sonangol na disputa pelo título de grande acionista do banco.
O último dinossauro, mas pequeno
Três décadas depois, o BCP resiste na bolsa e o facto não passou despercebido à Euronext, que realiza esta segunda-feira uma cerimónia para celebrar a efeméride. A iniciativa acontece num momento em que o BCP regressa às primeiras páginas dos jornais, já que anunciou na sexta-feira um processo para tentar travar a garantia de 3,9 mil milhões de euros que foi concedida pelo Fundo de Resolução na venda do Novo Banco aos americanos do Lone Star.
O banco fechou o mês de agosto a valer pouco mais de 3.300 milhões de euros na bolsa e é o dinossauro que resta da banca portuguesa no PSI-20, depois de os últimos anos terem levado BES, Banif, BPI e, ao que tudo indica, o Montepio, acentuando o declínio da importância do setor financeiro na representatividade do mercado.
Quem manda no PSI-20?
Fonte: Bloomberg
Longe, bastante longe da capitalização bolsista dos 10.000 milhões de euros de 2000 e 2001 ou 2006 e 2007, a tal linha de vida do banco, o BCP surge assim no quinto lugar de maior cotada em market cap da bolsa nacional, atrás da EDP, Galp, Jerónimo Martins e EDP Renováveis.
Na verdade, depois de se ter estreado nos 200 contos, ou 1.000 euros, a ação chega ao 30.º aniversário em bolsa em baixo de forma e a tentar máximos do ano nos… 26 cêntimos.
Desempenho do BCP desde o início do ano
Fonte: Bloomberg
Em termos de operação, o banco que obteve um lucro de 80 mil contos e que dizia que tinha 200 computadores em 1986 é atualmente o maior banco privado português — ainda que rivalize com o espanhol Santander Totta pelo título de segundo maior banco privado a operar em Portugal. A liderança está entregue ao banco público, a Caixa Geral de Depósitos.
(1) Dicionário de História Empresarial Portuguesa, Séculos XIX e XX, Volume I Instituições Bancárias, da autoria de Miguel Figueira de Faria e José Amado Mendes
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A linha da vida do BCP: dos 200 contos aos 20 cêntimos
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