A Huawei consolidou um império e acabou apanhada no fogo cruzado das tensões comerciais entre EUA e China. A economia global está em causa nesta guerra mundial em que Portugal não é neutro.
Apanhada no fogo cruzado da guerra comercial, a Huawei corre o risco de sufocar aos poucos, perecendo às mãos das sanções desenhadas à medida pela Presidência dos EUA. A decisão da Google de deixar de fornecer tecnologia ao conglomerado chinês, apesar de entretanto suspensa, foi só a primeira pedrada num charco que, mais cedo ou mais tarde, poderá tornar-se um mar revolto e perigoso para uma das empresas asiáticas com maior presença na Europa.
Na madrugada de segunda-feira, a Reuters lançou a notícia de que a Google iria deixar de fornecer atualizações ao Android usado nos telemóveis da Huawei. Mais: a peça indicava que os próximos lançamentos da marca não teriam licença para usar aplicações básicas como o Gmail, o Maps e o YouTube. Também a Microsoft removeu silenciosamente os computadores da Huawei da sua loja online. E as fabricantes de processadores Intel e Qualcomm optaram igualmente por deixar de fazer negócios com a Huawei.
Em causa, a decisão dos EUA de pôr o nome da empresa na lista negra das exportações, dificultando a vida às fornecedoras norte-americanas com negócios junto da parceira chinesa. As decisões das gigantes norte-americanas nem tiveram, necessariamente, de ser feitas por vontade própria. Mesmo que não o quisessem, acabaram por ser encostadas à parede por uma ação do Departamento do Comércio, em plena guerra sino-americana das tarifas. Uma espécie de pingue-pongue entre Donald Trump e Xi Jinping, em que a economia mundial está em jogo.
Mesmo depois de os EUA terem aceitado suspender a medida contra a Huawei por 90 dias, o dano estava feito. As ondas de choque alastraram-se pelos quatro cantos do mundo, desde o Reino Unido até ao Japão. E não tardou a que a estas empresas se juntassem outras com mais ou menos relevo.
As operadoras britânicas EE (da British Telecom) e a Vodafone UK decidiram deixar de fora os telemóveis da Huawei no caminho que está a ser feito em direção ao 5G, a quinta geração de rede móvel, na qual a marca chinesa tem sido pioneira. Quase em simultâneo, as gigantes japonesas SoftBank, KDDI e NTT Docomo também adiaram ou suspenderam, por tempo indeterminado, os novos lançamentos de dispositivos móveis da marca chinesa.
São apenas alguns exemplos em duas áreas e geografias diversas, num autêntico plano coordenado e involuntário que pode ameaçar romper com a empresa fundada há 32 anos por Ren Zhengfei.
Conquistar o ocidente. Primeiro as redes, depois os telemóveis
Nos dias de hoje, é difícil encontrar um sítio público onde não esteja presente um telemóvel ou um outro dispositivo fabricado pela Huawei. A marca está nos bolsos de muitos cidadãos europeus e até nas nossas salas, fornecendo muita da tecnologia que faz funcionar os routers que nos ligam à internet. No mercado global, compete sobretudo com a Samsung e a Apple nos telemóveis e tablets, mas também com a Cisco no que diz respeito às redes de comunicações.
Aliás, antes de conquistar a popularidade que tem atualmente, o logótipo da Huawei era mais rapidamente encontrado noutros dispositivos menos nobres, como nos pequenos routers de banda larga móvel 3G. Mas foi com os smartphones P8 e o P8 Lite, telemóveis de gama média com preços relativamente acessíveis, que a marca foi catapultada para o estrelato. Foram lançados em 2015 e, por terem sido autênticos sucessos de vendas, a Huawei até lançou uma nova versão do modelo em 2017.
Mas a vida é um ciclo — e, no mundo da tecnologia, a roda gira (e gira depressa). A Huawei, que começou por conquistar o ocidente pelas redes e depois com os telemóveis, planeia voltar à carga na nova era do 5G. Uma clara ameaça à soberania dos EUA como grande potência mundial, vista historicamente como pioneira da indústria e da tecnologia.
A atual infraestrutura de rede móvel não é capaz de servir as necessidades futuras, seja por causa dos robôs nas fábricas cada vez mais automatizadas, seja graças aos carros autónomos que circulam pelas estradas sem condutor. A nova tecnologia pede mais velocidade, uma rede de antenas mais densa e, depois dos avultados investimentos das operadoras no 4G não há muito tempo, tudo isto se quer barato. É neste campo que joga a Huawei: ajudar os países a implementarem o 5G com a maior qualidade e aos preços mais acessíveis, concorrendo com os EUA, onde a Qualcomm se destaca neste campo.
O problema surgiu quando alguns especialistas começaram a alertar para o preço do barato. É conhecido o controlo que o regime chinês tem sob as tecnologias da comunicação do país e a Huawei, enquanto gigante, torna-se um alvo natural. Por isso, muitos começaram a temer que a Huawei, na verdade, fosse um veículo de espionagem do regime comunista chinês. E ainda que não se conheça qualquer indício concreto de que os dispositivos móveis da Huawei sejam inseguros, o medo é que a marca possa injetar nos equipamentos alguma porta de entrada pelas traseiras — as temidas backdoors, ou vias de acesso ocultas que permitiriam à marca espiar a atividade de qualquer Estado ou utilizador. Para tal, não precisaria de acesso físico aos equipamentos. Bastaria uma mera atualização enviada através da internet.
Claro que isto não passa, para já, de especulação. Mas, mesmo com os sucessivos desmentidos da Huawei, os EUA garantem ter indícios de que sim: a marca é, de facto, permeável aos interesses de Pequim. Foi com base neste argumento que a Huawei acabou na lista negra norte-americana, a tal pedrada no charco que está a provocar ondas cada vez maiores.
Sem um fim da guerra comercial à vista, resta saber quem se afoga na onda primeiro: se as fornecedoras norte-americanas da Huawei, que não são assim tão poucas, se a própria Huawei, com todas as repercussões que isso teria na economia chinesa e no funcionamento das redes já existentes e instaladas em todo o planeta.
Detida pelos trabalhadores. Controlada por quem?
O funcionamento interno da Huawei é relativamente opaco e a falta de transparência contribui para adensar o mistério que paira à volta da empresa. Com o mistério vem a desconfiança. Desde logo porque não se sabe exatamente quem controla a companhia.
A Huawei não é uma empresa pública chinesa, como muitos acreditam. Nem é cotada na bolsa. Recentemente, começou a divulgar resultados trimestrais de forma voluntária e repete até à exaustão que são os próprios trabalhadores que mandam na companhia. Mas será assim tão líquido? O assunto mereceu, em abril, a publicação de um extenso artigo por parte do The New York Times, titulado precisamente com a pergunta que muitos fazem: Quem é dono da Huawei?
Segundo o maior jornal norte-americano, o problema da marca chinesa é bastante óbvio: “Perguntas simples sobre a Huawei não têm respostas simples”.
Começa no facto de os registos oficiais chineses indicarem que a Huawei Technologies é controlada totalmente por uma holding, a Huawei Investment & Holding. Esta sociedade tem apenas dois acionistas. Um é o histórico fundador da marca, Ren Zhengfei, com pouco mais de 1% das ações. Os restantes quase 99% são detidos pelo sindicato de trabalhadores da Huawei, chamado Union of Huawei Investment & Holding. Segundo a Huawei, é uma instituição para a qual os trabalhadores contribuem, que tem atividades extra-laborais e que ajuda e até presta cuidados de saúde aos funcionários que deles necessitem.
Porém, é mais complexo do que isso. Apesar de as entidades sindicais poderem deter ações de empresas segundo a lei chinesa, o sindicato não tem influência sobre as operações da Huawei. Mas permite aos trabalhadores sindicalizados tomarem parte nos lucros ou prejuízos da companhia através de “ações virtuais”. Os membros do sindicato podem também eleger os membros da Comissão de Representantes da Huawei que, por sua vez, elege o board da tecnológica. Mas, tecnicamente, esse processo não está diretamente relacionado com o sindicato, segundo o The New York Times.
É que estas “ações virtuais” são diferentes das ações comuns. Não podem ser transferidas ou detidas por quem não trabalhe na Huawei, salvo algumas exceções. Ou seja, se um trabalhador abandonar a empresa, geralmente, o sindicato compra as ações de volta, a não ser que se trate de alguém muito relevante ou influente no seio da companhia. Ainda assim, a Huawei garante ter um registo de todos os “acionistas” da empresa num grande livro azul que mostrou este ano aos jornalistas… fechado atrás de um vidro, numa sala branca, na sede da empresa, em Shenzhen.
Novas leis aprovadas recentemente na China vieram dar novos argumentos aos críticos da Huawei. As empresas chinesas estão legalmente obrigadas a colaborar com os serviços de informações do regime de Xi Jinping. A informação deve ter feito arrepiar as autoridades norte-americanas.
Uma questão que é mais que política
Custa acreditar que uma empresa como a Huawei não estivesse a preparar-se para um cenário como o que se desenrolou esta semana. Mais não seja porque, em dezembro, os EUA enviaram um sinal claro à empresa, ao prenderem a herdeira do grupo, a filha do fundador, Meng Wanzhou, que é administradora financeira da companhia. Em causa estão acusações de que a empresa chinesa violou as sanções dos EUA ao Irão. Desde que foi detida no Canadá, Wanzhou vive em prisão domiciliária em Vancouver, podendo vir a ser extraditada para território norte-americano para enfrentar julgamento.
Nesta guerra de poder, a Huawei tem optado por pintar a atitude norte-americana como uma perseguição à marca. Nos círculos próximos da empresa, mesmo em Portugal, a mensagem repetida até à exaustão é a de que se Trump pode fazer isto a uma empresa chinesa, pode fazê-lo a qualquer outra empresa de qualquer outra nacionalidade. Os jornalistas enviam perguntas, mas a resposta não foge às linhas estipuladas pela casa-mãe. Por exemplo, esta quarta-feira, o ECO enviou questões à Huawei relativas às vendas. A resposta, mesmo após insistência, foi o envio do mesmo comunicado que já tinha sido divulgado no início da semana.
As próximas semanas vão ser críticas para a Huawei, que já apelou aos países europeus para que “resistam” à pressão dos EUA. À medida que a empresa negoceia com a Google os possíveis cenários, caso a interdição chegue ao terreno dentro de cerca de três meses, poderá ver-se obrigada a lançar smartphones com uma loja de aplicações própria, ou mesmo com um sistema operativo diferente do Android. Mas existem dúvidas de que um dispositivo sem as aplicações como o Gmail, o Maps e o YouTube alguma vez vingariam num mercado europeu sedento de tecnologia.
E se a onda chega a Portugal?
É conhecido o peso do investimento chinês na economia portuguesa, mas os laços que têm sido feitos entre as duas nações vão mais além do dinheiro, abrangendo também parcerias em setores estratégicos, como o das telecomunicações.
Numa altura em que a marca parece cada vez mais isolada no mundo, a Huawei tem encontrado em Portugal um aliado tecnológico e institucional. Enfim, o ambiente “propício a negócios”, como desabafava com o ECO o presidente executivo da Huawei Portugal, Tony Li, no início deste ano.
“Em Portugal temos um bom ambiente de trabalho que advém de vários aspetos: o entendimento certeiro e a avaliação da segurança em Portugal pelo Governo e as agências regulatórias; o operador português e a Huawei têm cooperado de forma bem-sucedida durante muitos anos e a Huawei estabeleceu um elevado nível de confiança mútua; a imprensa portuguesa e os jornalistas na sua generalidade não têm nada contra a Huawei; os portugueses apreciam a alta tecnologia e as novidades associadas”, resumia o gestor chinês na altura.
O tema não é de menor relevância. Portugal também quer dar cartas no 5G e a Huawei é parceira tecnológica das duas maiores operadoras nacionais, a Meo e a Nos, enquanto a Vodafone vai usar a tecnologia sueca da Ericsson. Além do mais, no final do ano passado, a visita de Estado do Presidente chinês a Portugal motivou a assinatura de 17 acordos de cooperação entre Portugal e China. Um dos memorandos de entendimento foi assinado precisamente entre a Meo e a Huawei, na qual as duas empresas se comprometeram a colaborar no desenvolvimento do 5G.
Mesmo desta forma, o tema da segurança das redes de comunicações em Portugal ainda não ganhou a mesma relevância que já conquistou noutros países no plano da sociedade civil, até porque ainda nem foram libertadas as frequências que deverão ser leiloadas e atribuídas às operadoras para o funcionamento da quinta geração de rede móvel.
Mas nem por isso a Huawei deixa de estar presente na vida dos portugueses. A empresa lidera, de longe, o mercado nacional de smartphones, com uma quota de quase 35% das vendas unitárias de telemóveis, contra os 30% da Samsung e os 11% da Apple.
Só no primeiro semestre, a Huawei vendeu 220.000 smartphones em Portugal, segundo os dados avançados ao ECO pela consultora IDC. E apesar de haver indícios de quebras nas vendas em Espanha, é demasiado cedo para perceber o efeito que toda a onda vai ter na quota de mercado da marca chinesa em Portugal.
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Gigantes fogem da Huawei. Mas o que tanto assusta na empresa chinesa?
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