Portugal em alerta energético enfrenta greve a partir de hoje. Protesto pode ser o início de algo maior
Como termina uma greve em que todas as partes foram até ao ponto de não retorno? Governo pode apostar em esvaziar greve com requisição civil. Mas arrisca incitar protesto mais alargado.
“Nem um passo atrás!” A expressão foi entoada e gritada repetidas vezes no final do plenário conjunto entre os sindicatos independentes que marcaram a greve de motoristas de mercadorias que arrancou ao toque da meia-noite desta segunda-feira. Uma paralisação convocada com quase um mês de antecedência, período durante o qual as posições apenas se extremaram sem ninguém conseguir conter a escalada de tensões, ao ponto de sindicatos, Antram e Governo darem por si em posições sem retorno no dia em que começa o protesto.
Se inicialmente optou por uma postura conciliadora, o Executivo gradualmente foi levantando a voz, até decidir mostrar os dentes. Decretou “serviços máximos”, prometeu forças de segurança na rua a conduzir camiões, ameaçou com requisição civil, cuja violação terá consequências. Com isto só conseguiu dar argumentos para reforçar a convicção dos motoristas e empurrar outras forças sindicais, até então aparentemente neutras, para o lado dos sindicatos. Porque uma coisa é o debate sobre condições laborais de uma determinada classe, outra é tentar travar o direito à greve — e é assim que muitos entendem os serviços mínimos de 50% a 75%. E nem a posição do conselho consultivo da PGR, de que “estamos no limite entre aquilo que é admissível e aquilo que é uma utilização abusiva“, foi aceite como justificação.
Do lado dos sindicatos, as exigências também estão extremadas: querem recuperar em dois ou três anos tudo aquilo que deviam ter visto ser reconhecido gradualmente nas últimas duas décadas. As razões não são para menos, dizem: sentem que foram mal representados e defendidos nos últimos 20 anos pela Fectrans, federação que reúne vários sindicatos, mas de diferentes tipos de transporte. O primeiro grande sintoma de desagrado surgiu em 2015, com a criação do Sindicato Independente (SIMM), e a gota de água foi a assinatura, em 2018, de um contrato coletivo que passou tábua rasa às horas extraordinárias de quem trabalha com mercadorias. É que as exigências destes motoristas vão bem além do que tem sido discutido — e conquistado, graças às greves destes sindicatos — pela Fectrans.
Além de exigirem um salto no vencimento base de 630 euros para 900 euros — admitindo que tal evolução seja diluída no tempo –, os sindicatos querem também a eliminação da ‘cláusula 61’ — referente à isenção de horário e que no fundo dita que os profissionais recebem sempre como se trabalhassem duas horas extra, independentemente de trabalharem zero horas extra ou mais do que duas horas, o que é o caso mais comum. A incorporação desta cláusula no vencimento base, o pagamento de todas as horas extraordinárias trabalhadas pelos motoristas e o fim do pagamento de ajudas de custo apenas por quilómetro efetuado — quando muitas vezes se encontram deslocados e parados várias horas à espera de carga — são outras das reivindicações na mesa.
A discussão mais mediática, porém, tem sido a relativa à subida do vencimento base. A Antram concordou em aumentar até 700 euros o vencimento base dos motoristas já em janeiro e a indexação deste valor à evolução do salário mínimo nos anos seguintes. Já os sindicatos comprometeram-se a um período de paz social caso os associados da Antram juntassem a esses 700 euros a garantia de novos aumentos salariais de 100 euros em 2021 e 2022.
O desacordo entre o que foi realmente assinado entre as partes detonou a greve de 12 de agosto: a 9 de maio todos se comprometeram a que a greve “seria desconvocada” se os associados dos sindicatos e da Antram aprovassem o “teor da declaração” que prevê os tais 100 euros, mas a 17 de maio foi assinado um novo protocolo onde esses cem euros deixaram de ser referidos. Os sindicatos entendiam que estava implícito, a Antram não. O aviso prévio de greve avançou e a Antram disse que não voltaria a negociar enquanto a greve estivesse marcada. E assim chegámos ao dia de hoje.
Custos e impactos: do específico, ao global
Partindo do princípio de que os aumentos salariais exigidos pelos sindicatos se alargariam a todos os motoristas de transporte de mercadorias — cerca de 50 mil –, um cálculo simples ao aumento de cem euros no vencimento base aponta para um custo global a ser suportado pelas empresas a rondar os 78 milhões de euros — 100 euros mensais para 50 mil motoristas, que recebem 13 ordenados anuais. Isto num setor onde as pequenas e médias empresas representam a grande maioria.
Conforme recordou o Público, citando dados do Banco de Portugal, em 2017, o resultado global das mais de 8.000 empresas de transporte rodoviário de mercadorias foi de 80 milhões de euros, contudo, do total das empresas, 30% tiveram prejuízos e 8,5% já se encontrava em situação de falência técnica — capitais próprios negativos — no final daquele ano. Quantos empregos podem ficar em risco se avançarem aumentos salariais significativos? É uma incógnita.
Note-se, porém, que o problema deste tecido empresarial não estará tanto nos custos em que já incorre, como na existência de várias empresas intermediárias, que mesmo tendo poucos camiões asseguram os melhores contratos para depois os subcontratar a outras empresas. E este é um dos pontos onde se exige uma intervenção mais decidida por parte do Estado. Fiscalizar melhor o setor e este tipo de contratação é a forma de acabar com a “balbúrdia”, conforme o colocou Domingos Pereira, dirigente e porta-voz da União de Transportadoras Portuguesas (UTP), uma associação recém-criada de empresas.
Ao peso destes aumentos salariais nas empresas, os sindicatos respondem com as duas décadas em que mal viram os seus salários serem revistos, chegando ao ponto de terem sido apanhados pelo salário mínimo e, só por essa via, terem tido direito a aumentos. Além disso, e na relação trabalhador-empresa, serão os motoristas os primeiros penalizados pelo protesto com que agora avançam. Os motoristas que optarem por aderir à greve vão perder entre 26 e 33 euros por dia. Um sacrifício que fazem em nome do médio prazo: “Podemos perder dinheiro durante uma semana de trabalho, para depois recuperá-lo com uma revisão justa das condições”, conforme sublinhou Anacleto Rodrigues ao ECO.
O impacto que a greve dos motoristas ameaça ter além do próprio setor, é prova da importância dos motoristas de transporte de mercadorias para o funcionamento normal da economia portuguesa, importância essa que leva os próprios a considerarem que é uma questão de justiça receberem mais do que, por exemplo, o condutor de uma empilhadora. Mas é também esse peso que levou a PGR e o próprio Presidente da República a falar no risco desta paralisação representar um impacto “desproporcional”.
Mas ao contrário do que aconteceu em abril, a economia e a sociedade portuguesa tiveram desta feita a oportunidade de jogar em antecipação a estes mesmos impactos. As bombas de combustível registaram picos de procura nos últimos dias, as empresas de vários setores desenharam planos de contingência tendo por base o que aconteceu na greve da Páscoa e associações de diversos setores foram realçando atempadamente os riscos e ameaças que a greve representa, forma de apoiar e apelar — mesmo que indiretamente — ao desenho de serviços mínimos alargados e de medidas mitigadoras do impacto da paralisação. Neste campo, também o Governo aproveitou a experiência de abril para criar uma resposta mais musculada para agosto.
Discurso, ameaças e serviços mínimos
Além da opção por desenhar serviços mínimos bastante alargados, entre os 50% e 75% em serviços não essenciais e de 100% nos vistos como essenciais, o Governo avançou antecipadamente para a declaração de crise energética, estado em que Portugal se encontra desde a meia-noite da última sexta-feira, tendo ao longo do fim de semana transmitido por mais do que uma vez estar preparado para avançar para a requisição civil à primeira oportunidade.
Do lado da Antram, a postura não foi menos preventiva. Os patrões comunicaram que os motoristas que não cumprirem os serviços mínimos serão alvo de processos disciplinares “no minuto seguinte”, tendo já equipas jurídicas prontas para essa eventualidade. Em abril nenhum motorista foi alvo de processo por violação dos mínimos, mas desta vez será diferente, assegura a associação.
Já no que toca aos sindicatos, as promessas são de cumprir com os serviços mínimos, por mais que não concordem com os mesmos. Contudo, lembram, estes serviços são definidos em função dos trabalhadores que estavam ao serviço em agosto de 2018, mês em que muitos estavam de férias, tal como agora, aliás. Dizem por isso que pode haver aqui espaço para interpretações diferentes sobre o que é exigido em teoria pelo Governo como mínimos e o que acontecerá na prática.
É na diferença entre estas interpretações que se abre uma porta ao avanço da requisição civil mesmo em casos em que os sindicatos considerem estar a cumprir os serviços mínimos. Porém, se esta porta for aberta, muitos sindicatos poderão interpretar tal atitude como o esvaziar não da greve de motoristas, mas do próprio direito à greve, algo que, a médio prazo, poderá dar azo a outro tipo de greves e protestos, mais transversais e coordenados.
Aviação, estivadores, educação e forças de segurança são apenas alguns setores onde os respetivos sindicatos vieram manifestar solidariedade aos motoristas após a definição de “serviços máximos”. A posição do Governo serviu assim para reforçar a solidariedade, a articulação e os contactos entre várias estruturas representativas de trabalhadores. E foi isto que permitiu confiança para os motoristas lançarem um apelo a outros sindicatos e trabalhadores no último sábado.
“Estes sindicatos viram nos serviços mínimos um ataque à greve de qualquer setor. Deviam rever-se na nossa luta todos os trabalhadores de Portugal, jornalistas, professores, médicos… todas as profissões deviam estar preocupadas com estes serviços mínimos”, disse Francisco São Bento à saída do plenário. Sendo certo que a greve de 12 de agosto pode ser esvaziada no imediato, também parece certo que tal posição arrasta consigo o risco de insuflar um protesto maior em breve.
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