Mulheres juristas criam associação em pleno confinamento
Seis juristas juntaram-se durante o primeiro confinamento e criaram o projeto Astraea. Uma associação que pretende criar comunidade de mulheres juristas que "se apoiem entre si".
Com o objetivo de criar uma comunidade de mulheres juristas que “se apoiem entre si” e que contribuam para que o “direito e as profissões jurídicas se tornem mais transparentes, inclusivas, interdisciplinares e acessíveis”, nasceu a mais recente associação Astraea. O projeto foi criado por Aida Conde, Beatriz Esperança, Gabriela Pinheiro, Leonor Catela, Madalena Narciso e Rafaela Miranda.
A ideia de avançar com o projeto surgiu durante o primeiro confinamento, em maio de 2020. “A ideia começou a partir do facto de todas nós, as fundadoras, nos encontrarmos ou termos encontrado fora de Portugal em percursos profissionais mais ou menos atípicos e de partilharmos uma certa solidão na nossa experiência profissional”, refere a associação.
As cofundadoras explicaram à Advocatus que perceberam que faltava uma comunidade que as ligasse a outros juristas que também tivessem estudado direito em Portugal e que se encontrassem numa situação semelhante.
“Este objetivo comum rapidamente se estendeu a outros aspetos que nos unem. Por exemplo, todas concordámos que, num ou noutro momento das nossas carreiras e percursos universitários, fomos confrontadas com um formalismo injustificado, que por vezes se transforma numa abordagem elitista ao direito, que nos foi nocivo. Por fim, percebemos também que seria importante que esta fosse uma comunidade de mulheres”, acrescentam.
O nome Astraea deriva de uma deusa da mitologia grega, filha de Zeus e Themis, que personifica a Justiça. “A Astraea viveu na Terra entre os Homens, mas abandonou-a quando a Humanidade se virou para a maldade e o sofrimento. O mito é que a Astraea regressará um dia à Terra, trazendo consigo paz, harmonia e estabilidade. Pensamos que estes valores se relacionam bem com o que a nossa comunidade pretende alcançar. Por outro lado, em termos práticos, o nome é simples, curto e feminino”, referem.
As cofundadoras notaram à Advocatus que o feedback tem sido extremamente positivo. Com a criação das páginas nas redes sociais em setembro, admitem que já receberam centenas de registos, contactos e mensagens de apoio.
“Sabíamos da necessidade de um espaço como a Astraea, mas temos recebido inúmeras mensagens de juristas que partilham connosco o seu entusiasmo e (altas) expectativas relativamente às nossas três vertentes. O feedback que temos recebido vem provar ainda mais a importância de uma iniciativa assim”, asseguram as cofundadoras.
Qualquer jurista pode juntar-se ao projeto e partilhar opiniões, experiências e até conhecimentos entre si. Para as cofundadoras a Astraea é um espaço de apoio e de inspiração.
“Há várias maneiras de uma jurista se juntar ao projeto, como tornar-se membro através do nosso site, assim recebendo acesso direto às nossas iniciativas futuras, escrever textos para o nosso blog e participar em eventos. Podem também, claro, acompanhar-nos através das redes sociais. Estamos também abertas a integrar novos elementos na nossa equipa. As pessoas interessadas poderão candidatar-se através do nosso site e ajudar-nos a gerir a Astraea”, apelam.
À Advocatus, revelaram que no futuro pretendem criar um programa de mentorship entre juristas com uma carreira mais longa e juristas em início de carreira ou a terminar o curso.
Três pilares: Inovação, promoção e informação
O projeto é apresentado por um plano de ação em três campos diferentes: inovação, informação e promoção. No que concerne ao primeiro, as cofundadoras referiram que pretendem desmistificar as profissões jurídicas através da partilha de informações sobre certas profissões da área “menos discutidas ou menos representadas”.
“Queremos também discutir o acesso e a manutenção de carreiras jurídicas internacionais. Isto não significa que não estejamos abertas a advogadas/magistradas ou a juristas que trabalhem em Portugal. Qualquer pessoa com interesse em qualquer dos nossos campos de ação é bem-vinda. Acreditamos que a Astraea traz benefícios para um conjunto muito abrangente de juristas”, referem.
Relativamente ao campo de ação da informação, pretendem contribuir para um ensino e prática do direito menos formalista e mais interdisciplinar, europeísta e globalista. “Existe no direito um formalismo desnecessário e artificial, que muitas vezes se estende dos anfiteatros universitários aos ambientes profissionais. Este formalismo contribui para tornar o direito e as profissões jurídicas em algo pouco atrativo e pouco acessível para muitos estudantes, trabalhadores e sujeitos de direito em geral”, referem.
Para as cofundadoras, o direito não tem de estar “confinado” em si mesmo, ou seja, é necessário adotar uma perspetiva interdisciplinar tanto no ensino como na prática. “Adotarmos esta perspetiva implica salientar que o ensino do direito não perde qualidade ou prestígio por integrar disciplinas como a programação, a comunicação social ou a psicologia. Finalmente, a par do direito nacional, é cada vez mais importante que uma perspetiva europeia e globalista seja ensinada nas Faculdades de Direito e que, mais do que isso, os juristas portugueses façam parte do contexto jurídico internacional”, acrescentam.
Já no que concerne ao terceiro campo de ação, o objetivo é promover o papel da mulher no mundo do direito. “É importante distinguir várias vertentes: a mulher como profissional jurídica, a mulher como aluna de direito e a mulher como sujeito de direito (por exemplo, como ‘objeto’ de legislação e decisões judiciais). Todas estas vertentes levantam problemas específicos que queremos debater na Astraea”, notam.
“Desproporção em posições de topo influencia negativamente a perceção das mulheres mais jovens”
A paridade de géneros nos mais diversos setores ainda não é uma realidade, mas com o avançar do tempo as desigualdades começam a diluir-se. Portugal aparece em 16.º lugar no Índice da Igualdade de Género 2020, abaixo da média da União Europeia, tendo evoluído 1,7 pontos percentuais desde 2017, revelou o Instituto Europeu para a Igualdade de Género.
Para as cofundadoras da Astraea atualmente existem tantas ou mais alunas de direito que alunos e que isso se transporta para a realidade das profissões jurídicas. Mas nos lugares de topo ainda escasseia o sexo feminino.
“Por exemplo, são as mulheres que prevalecem no sistema judiciário, em particular ao nível dos tribunais de primeira instância. No entanto, quando olhamos para cargos de topo, como os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, notamos que apenas 16 mulheres ocupam estes cargos, sendo que os homens são 44. Estas tendências não são apenas comuns em Portugal, mas também no espaço europeu. Por exemplo, dos atualmente 39 designados ‘altos-cargos’ do Tribunal de Justiça da União Europeia (tanto juízes como advogados-gerais), apenas 7 são ocupados por mulheres”, exemplificam.
Ainda assim, consideram que, independentemente do género, todos os juristas enfrentam obstáculos. No entanto, “há desafios que são específicos ou mais frequentes no que toca às juristas e que nós, partindo da nossa condição de mulheres juristas, queremos explorar e combater”.
Para as cofundadoras é necessário perceber como, por exemplo, é que a maternidade ou outras responsabilidades familiares e sociais afetam as mulheres juristas e até que medidas são obstáculos nas suas carreiras. “Por exemplo, durante o confinamento devido à Covid-19 houve relatos de várias revistas jurídicas internacionais que afirmaram terem recebido substancialmente menos contribuições de mulheres juristas do que de homens juristas. Infelizmente, estes números não são públicos em Portugal, o que, por si, também evidencia um outro problema – falta de investigação de algumas desigualdades de género“, referem.
“Sentimos que esta desproporção em posições de topo influencia negativamente a perceção das mulheres mais jovens, em princípio de carreira, quanto às suas próprias aspirações e capacidades profissionais. Este problema intensifica-se se pensarmos em mulheres de diferentes etnias e classes sociais. É importante lidar também com isto”, acrescentam.
Já no que concerne a atos discriminatórias, as cofundadoras da Astraea, que admitem ter vivenciado um episódio deste, alertam que as mulheres juristas estão sujeitas a microagressões em contextos profissionais e académicos, que não afetam o género masculino. “Desde comentários intrusivos sobre o seu modo de vestir a desconsideração injustificada em contexto de reuniões e até mesmo casos mais sérios de assédio sexual”, exemplificam.
Aos leitores, deixaram a seguinte mensagem: “Queremos que saibam que a Astraea é um espaço antidogmático, seguro, dinâmico e aberto. Queremos acabar com a incerteza, solidão ou insatisfação decorrentes da falta de apoio mútuo entre juristas e da falta de informação sobre diferentes opções profissionais. Para além disso, queremos passar a mensagem de que o direito não tem de ser só “cinzentão”, mono-dimensional e inacessível a certos grupos. O nosso lançamento oficial foi apenas em novembro de 2020 – temos muitos projetos que irão sair nos próximos meses e muita vontade de criar uma comunidade em que todas as juristas se sintam valorizadas, inspiradas e protegidas”.
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