Meio ano após a entrada no Ministério, veio a Covid. O secretário de Estado para a Transição Digital fala do plano de digitalização apresentado em março. E duvida que o trabalho volte a ser o mesmo.
Depois de, entre fevereiro de 2008 e junho de 2011, ter sido chefe de gabinete do Ministério da Saúde, e após mais de sete anos na Microsoft Portugal, onde assumiu um lugar no board em setembro de 2017, André de Aragão Azevedo veio, em outubro de 2019 reforçar a pasta da Economia e da Transição Digital. Em entrevista à Pessoas, o antigo CTO da Microsoft Portugal fala do plano para a transição digital, apresentado dias antes do início do confinamento, e também dos desafios da transformação do trabalho decorrentes da pandemia.
Quais os principais desafios de integrar a equipa do Governo neste contexto de pandemia?
O desafio fundamental tem sido conciliar aquilo que é a gestão de uma crise de saúde pública com a preocupação mais de âmbito económico de mitigar ou minimizar o impacto que a pandemia necessariamente também tem.
Estando a Transição Digital integrada na Economia, naturalmente que o nosso papel é tentar promover tudo o que possam ser medidas de redução desse impacto. Com a convicção de que o digital – e temos já alguns indicadores que o demonstram — está em contraciclo, ou seja, sendo uma área que foi afetada, foi muito menos do que outros setores. Pelo contrário, vemos até oportunidades de expansão da atividade económica e investimentos no nosso país, nesta área, e aos dois níveis: quer em grandes empresas – com investimentos em calha para continuarem aquilo que já é uma trajetória de investimento no nosso país, reconhecendo aquilo que são já as características favoráveis para investimentos nesta área -, seja do ponto de vista de recursos humanos ou de atratividade.
As empresas que têm um nível de diferenciação e recursos humanos mais qualificados, têm também uma capacidade de resposta muito mais robusta.
A crise pandémica originada pela Covid-19 veio mudar de forma estrutural a forma como o digital é percecionado. Foram muitas as resistências que desapareceram e é hoje mais clara a enorme oportunidade associada ao digital. A Covid-19 pode ser comparada ao velho Adamastor que, depois de ultrapassado, deu lugar ao rebatizar do Cabo da Boa Esperança.
Os grandes desafios em matéria de recursos humanos alteraram-se com a pandemia?
Não destacaria especificamente esta fase porque veio apenas acentuar alguns gaps que já tínhamos em termos de qualificações. Se quisermos identificar as diferentes dimensões do desafio do digital, a área das competências e das qualificações é aquela em que ficamos piores na fotografia, e que temos de fazer um esforço maior. Quando pensamos na percentagem de população portuguesa que nunca utilizou a internet – e falamos de 23% da população -, este indicador compara menos bem com aquilo que é a média europeia nesta área, que anda à volta dos 10%. É aí que temos de concentrar os nossos esforços.
O que a pandemia veio acentuar foi precisamente alguns défices que pudessem acontecer porque, como dependemos mais para comunicar do contacto digital, pessoas que não tenham ou não dominem essas competências, naturalmente têm um desafio e um risco acrescidos de exclusão social, e até de maior exposição ao que é a sua situação de carência ou de exclusão digital.
De que forma é que a pandemia pode acelerar processos de upskilling e reskilling em Portugal?
Basicamente tornou mais premente e mais notória a importância deste tipo de competências. É difícil num contexto de ausência dessas competências, funcionar numa lógica de teletrabalho. O que ficou claro é que era necessário ter essas competências e, quem não as tinha, teve de as encontrar de uma forma mais ou menos estruturada. O que pretendíamos e que, no fundo, foi validado em termos de estratégia, é criar uma forma de capacitar estruturada aos diferentes níveis, quer seja ao nível mais básico de competências mínimas de participação no ecossistema digital, seja diferenciado ao nível das equipas de gestão e de topo, que reconhecem agora a prioridade da importância da aposta no digital, em que as competências são, de facto, incontornáveis.
Com o digital em contraciclo (…) vemos até oportunidades de expansão da atividade económica e investimentos no nosso país, nesta área.
Ficou notório, do ponto de vista das empresas, que a adoção e a transformação dos modelos de negócio para uma base mais digital era crítica para conseguirem sobreviver neste contexto e terem as ferramentas para continuarem operacionais. O que constatamos é que as que já tinham dado esse salto ou aquelas que o deram de forma particularmente rápida, conseguiram manter uma normalidade e, em alguns casos, até ganhar mercado porque tinham essas ferramentas, esses apetrechos.
E de que maneira a estratégia para a transição digital vai cobrindo estas áreas e qual o grau de prioridade destas lacunas?
O que definimos em termos de estratégia digital assenta em três grandes pilares, áreas críticas de resposta, e numa lógica de resposta integrada. Nós já tínhamos muitas iniciativas que estavam no caminho correto mas o que sentimos foi a necessidade de articular estas medidas com um sentido comum de chegar a um objetivo de digitalização do país. Portanto são três dimensões que estão ali vertidas: o desafio das pessoas e das qualificações; a componente das empresas e da transformação digital do tecido empresarial; e a componente do Estado e da digitalização dos serviços públicos, enquanto parceiro ou ator incontornável do ecossistema que tem de ser também amigo da inovação, do empresário e do cidadão. É esse esforço de continuação, em que já estamos muito bem – já somos internacionalmente apontados como caso de sucesso do ponto de vista de Governo eletrónico – que queremos fazer ir mais longe.
Que feedback têm tido por parte das empresas face a esse plano?
Tem sido bom por várias razões: desde logo foi uma resposta em tempo recorde naquilo que foi a definição de uma estratégia integrada e do que conseguimos apresentar ainda antes da crise. No plano conseguimos este chapéu, e perceber como as várias medidas podiam cruzar-se, e criar uma articulação entre as várias dimensões. E, ao mesmo tempo, ter agora um guião para a legislatura, mais concreto sobre as áreas de aposta e o que queremos alcançar.
Esse foi um primeiro objetivo. Depois conseguimos, mesmo durante a Covid, criar a estrutura de missão que vai ser, no fundo, a nossa base operacional para implementar e coordenar o plano, mas também garantir o respetivo financiamento, que já não é coisa pouca.
Esta fase veio apenas acentuar alguns gaps que já tínhamos em termos de qualificações.
Estamos agora na fase de constituição da equipa de missão. Neste momento tem apenas a diretora executiva, Vanda Jesus (também ex-Microsoft), e teremos mais oito pessoas que serão responsáveis pela coordenação dos quatro pilares, coordenação daquilo que são as iniciativas de cada um, algum apoio mais transversal na área jurídica e de fundos. No fundo, que possam garantir a implementação da estratégia em cada uma das áreas.
No plano para a transição digital, a Covid mudou alguma coisa em termos de prioridade de implementação?
Não. Basicamente, validou aquilo que eram as premissas do plano e aquilo que eram as principais áreas de aposta, confirmando os seus eixos do ponto de vista estratégico.
Estão previstos investimentos de pessoas pessoas mais velhas para este novo contexto de trabalho?
Estão. A aposta nas qualificações, na área do digital e das pessoas, tem uma abordagem de base de ciclo de vida. Estamos a trabalhar para o plano digital das escolas, que achamos que vai criar um novo paradigma de ensino e de aprendizagem; temos a aposta no reskill e no upskill para a população ativa; e temos para a população info-excluída e que, tendencialmente é a população mais velha mas não só, previsto um plano de capacitação e atribuição de competências básicas a um milhão de portugueses que, na prática, nos permite fazer a convergência com aquilo que são os valores médios da União Europeia.
É esse também um dos nossos objetivos: em nenhuma das dimensões do digital nós estarmos abaixo da média da UE, atendendo à missão de naturalmente estarmos no grupo da frente. À semelhança do que já estamos na inovação, segundo o European Innovation Scoreboard, queremos também subir na posição do Digital Economy and Society Index.
Quais as vossas principais aprendizagens, em matéria de teletrabalho no Ministério. O que tem visto e sentido no seu dia a dia?
Em termos de teletrabalho, para muitos foi a descoberta de um novo mundo que estava há muito a ser anunciado mas sobre o qual havia alguns bloqueios. O teletrabalho obriga, do ponto de vista das organizações e das lideranças, a uma maturidade do ponto de vista da perceção, da definição de um conjunto de objetivos e da criação de ferramentas de acompanhamento e de gestão à distância dos recursos humanos. Esse esforço aconteceu, foi forçado e fruto das circunstâncias, mas há aqui um caminho de progressão e de evolução para conseguirmos encontrar o justo equilíbrio.
Ficou notório, do ponto de vista das empresas, que a adoção e a transformação dos modelos de negócio para uma base mais digital era crítica para conseguirem sobreviver neste contexto.
Depois de um momento Big Bang de teletrabalho a que fomos todos forçados, estamos agora num processo de reajustamento em que eu espero que fique algum legado positivo. E os dados apontam para isso: quer as organizações como os trabalhadores, as perceções que nos têm feito chegar são de que há uma vontade forte de que evoluamos para uma percentagem de adoção de teletrabalho muito mais significativa e, sobretudo, que entremos num regime mais misto de adoção de teletrabalho, em que não tenhamos de estar entre o preto e branco mas tenhamos uma muito maior flexibilidade na prestação do serviço. E isso tem outros impactos, quer seja ao nível da gestão das cidades, do impacto ambiental, ao nível da gestão da vida de cada um de nós. E uma latitude e flexibilidade mais interessantes quando pensamos numa lógica do work-life-balance que é, tipicamente, uma das razões de maior preocupação da sociedade atual, seja do ponto de vista dos trabalhadores como das organizações.
Na equipa do Ministério, como funcionou o teletrabalho?
Estivemos em linha com outras organizações. Continuamos a trabalhar em regime misto, como já antes fazíamos na Secretaria de Estado. Tínhamos um conjunto de pessoas que nem têm base em Lisboa, houve essa preocupação de que vários recursos tivessem diferentes proveniências. Essas pessoas já trabalhavam pontualmente, de casa, num regime de teletrabalho: dotámo-los das ferramentas e dos equipamentos necessários para conseguirem funcionar à distância, com moldes funcionais. O que fizemos foi, durante um certo período houve um maior confinamento, ter as pessoas em teletrabalho. E, agora, estamos a retomar um ponto de maior equilíbrio. Mas julgo que não voltaremos a uma lógica de trabalho das 9 às 6.
O teletrabalho obriga, do ponto de vista das organizações e das lideranças, a uma maturidade.
Porquê?
Ficou claro para todos o seu valor e conforto. No fundo, muitas pessoas gastavam imenso tempo na lógica do commuting, para a frente e para trás, nos transportes, e que esse tempo pode ser alocado, quer para o período laboral como pessoal, com vantagem para ambos os lados e até sob o ponto de vista financeiro.
Que vantagens serão essas?
Há até a vantagem de pôr menos carga naquilo que é o sistema de transportes, porque há sempre algum estrangulamento. E o sistema muito rígido que tínhamos de horário laboral implicava que as pessoas se deslocassem todas dentro da mesma janela temporal. Haver aqui uma margem de flexibilidade permite esbater essa pressão muito pontual e ir diluindo, ao longo do dia, essas deslocações. E isso é vantajoso, quer seja para a experiência pessoal como para aquilo que é o interesse coletivo da gestão da cidade e do espaço urbano.
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“Julgo que não voltaremos a uma lógica de trabalho das 9 às 6”, diz o Secretário de Estado para a Transição Digital
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