Sérgio Vasques, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, considera que taxa liberatória de 28% sobre as rendas é generosa, mas defende que não se devem mudar sistematicamente as regras.
“Na pureza dos princípios, tudo deveria ser englobado” no IRS, defende Sérgio Vasques. Mas mudar as regras da tributação de três em três anos, ou até de quatro em quatro, compromete a estabilidade fiscal e envia os sinais errados ao mercado, explica em conversa com o ECO o antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
“Aplicar aos rendimentos prediais uma taxa de 28% é uma medida extremamente generosa”, diz o professor de Direito Fiscal e consultor do banco Mundial. No entanto, ressalva que não se pode “passar num ano de 28% para 50%” de tributação. Isto porque caso o englobamento dos rendimentos prediais passe a ser obrigatório, pode, no limite, estar sujeito a uma taxa de IRS de 53%. “Seja qual for a opção ela tem de durar“, defende.
Por isso, o antigo responsável pelo dossiê dos Assuntos Fiscais na equipa de Fernando Teixeira dos Santos, considera que “mais importante” do que discutir o desdobramento dos escalões do IRS é discutir qual deve ser a taxa máxima de imposto. “Não me parece que possamos ter grande desenvolvimento e confiança com taxas máximas de 53% no IRS”.
O primeiro-ministro, António Costa, referiu apenas a possibilidade de englobar no IRS rendimentos que são tributados com taxas autónomas, sem dar quaisquer detalhes, mas para Sérgio Vasques a questão deverá cingir-se aos rendimentos prediais, até porque já era assim no passado, mas também porque nunca foi tradição em Portugal englobar tudo.
Faz sentido optar pelo englobamento de todo o tipo de rendimentos no IRS, que até agora eram tributado com taxas autónomas?
Essa discussão é feita entre nós há muito tempo. Quanto o IRS surge, pela primeira vez nos anos 80, houve logo na altura a opção de sujeitar a englobamento apenas algumas categorias de rendimentos e deixar outras de fora — em particular rendimentos de capitais — para os tributar mais generosamente, porque os rendimentos de capital têm mais mobilidade. Ao longo do tempo, fomos alterando, em sucessivas ocasiões, os rendimentos que englobávamos ou não. Com propósitos variados.
A questão surge agora porque até há pouco tempo se determinou que a categoria dos rendimentos prediais deixasse de ter englobamento obrigatório no IRS e passasse a ter uma taxa especial de 28%. Assim, os proprietários de imóveis que auferem rendimentos prediais passaram a estar numa posição particularmente privilegiada, porque declaram à parte, a uma taxa de 28%, o que a partir de certo ponto é vantajoso, tendo em conta que as taxas gerais de IRS ultrapassam os 50%.
Mais exatamente de 53%….
Correto. Em termos nominais, porque a tributação efetiva não é tão elevada, porque temos as deduções à coleta, mas o facto é que no confronto, os titulares de rendimentos prediais ficaram numa posição especialmente vantajosa. Aliás não é o único ponto vantajoso, porque se tiver rendimentos prediais até posso optar por ir para a Categoria B. Criou-se um regime fiscal que, no fundo, favorece esse tipo de rendimentos.
Respondendo à sua questão se faz ou não sentido, na pureza dos princípios, tudo deveria ser englobado. Mas isso nunca foi opção. E não é uma opção de modo geral na maior parte das jurisdições comparáveis. Na maior parte dos países desenvolvidos, os rendimentos de capitais, ou mais-valias, são tributados de forma mais vantajosa. Temos sempre sistemas mais ou menos duais, em que o rendimento de trabalho é tributado por englobamento e os rendimentos passivos são tributados à parte. É isto que sucede um pouco por todo o lado.
Na pureza dos princípios, tudo deveria ser englobado. Mas isso nunca foi opção na raiz do nosso código [fiscal].
Mas hoje o nível de tributação que incide sobre os rendimentos de trabalho é muito mais elevado do que o que incide sobre os rendimentos de capitais. Dever-se-ia baixar o IRS e subir a tributação sobre os capitais?
Temos vários tipos de rendimentos que são tributados à margem das taxas gerais de IRS, como os rendimentos de capitais verdadeiros e próprios ou os juros bancários. É assim desde a origem do IRS. Não vejo que se possa alterar. E imagino que não esteja em cima da mesa alterar o regime. A questão, julgo, só se coloca mais diretamente quanto aos rendimentos prediais que, na origem do IRS, não eram tributados à parte. Daí este avanço e recuo que está a causar algum ruído de fundo.
Mas aumentar a tributação dos proprietários não é contra corrente, num momento em que se está a tentar estimular o mercado de arrendamento?
Sim. Aplicar aos rendimentos prediais uma taxa de 28% é uma medida extremamente generosa, a meu ver. Mas, a mim o que me suscita mais resistência em tudo isto é estarmos a alterar permanente o regime que é aplicável a rendimentos que exigem estabilidade. Se alguém investe num imóvel para arrendar, ter estabilidade no tempo e no regime é fundamental. Não posso passar num ano de 28% para 50%. Seja qual for a opção, ela tem de durar.
Ou seja, em sede de Orçamento mudar uma tributação que acabou de ser criada em março é contrário aos esforços de estabilidade fiscal?
Está em causa não só o aspeto da estabilidade, mas também dos sinais que se dão ao mercado. É verdade que o mercado tem sido empolado ao longo de últimos anos por força de um conjunto de medidas de natureza fiscal.
Aplicar aos rendimentos prediais uma taxa de 28% é uma medida extremamente generosa.
Do ponto de vista de compra e venda?
Também, claro. Demos sinais algo contraditórios ao mercado ao longo dos últimos anos. Não consigo antecipar o que vai resultar agora, portanto, vamos ter de aguardar.
Num cenário de poupança das famílias em queda, juros dos depósitos muitos baixos por força das políticas do BCE, muitas famílias acabaram por colocar as suas poupanças neste segmento porque era mais rentável. A este nível o legislador não está também a enviar um sinal contrário aos mercados?
Esse é, de facto, um problema crítico. O investimento no imobiliário tornou-se — ou melhor, sempre o foi — uma forma importante de aforro das famílias em Portugal. Do ponto de vista do princípio acredito que este rendimento devia ser englobado, mas qualquer que seja a opção tomada tem de perdurar no tempo. Não pode ser alterada de três em três anos, ou de quatro em quatro. O mesmo vale para o Alojamento Local versus o arrendamento tradicional. No imobiliário tem havido muitas mexidas.
Uma área muito dinâmica e apetecível para arrecadar receita?
Sim, mas apesar de não conhecer os dados não me parece que a receita desta área seja significativa em termos de IRS. Não creio que aqui estejam subjacentes preocupações de receita.
Estamos a falar de questões puramente políticas e ideológicas?
Seguramente que há subjacente uma questão ideológica. A questão em torno do englobamento sempre foi uma questão ideológica também, de justiça tributária.
Passar a englobar estes rendimentos no IRS poderia ser compensado por um aumento dos escalões de IRS?
Essa outra questão. É evidente que para uma dada taxa máxima de imposto, quanto maior for o desdobramento de escalões mais justiça tem no tratamento dos contribuintes. Por outro lado, também não posso fazer o desdobramento em 20 ou 30 escalões diferentes. Mas, no momento em que estamos a atravessar, parece-me mais importante discutir o que deve ser a nossa taxa marginal máxima, mais do que desdobrar os escalões. Não me parece que possamos ter grande desenvolvimento e confiança com taxas máximas de 53% no IRS.
Mais importante discutir o que deve ser a nossa taxa marginal máxima, mais do que desdobrar os escalões. Não me parece que possamos ter grande desenvolvimento e confiança com taxas máximas de 53% no IRS.
Mas isso não comprometeria a receita fiscal? Só cerca de 50% dos portugueses pagam IRS.
Conhecemos as estatísticas e sabemos que há uma forte concentração nos últimos escalões do IRS, por isso as mexidas nesses escalões são sensíveis do ponto de vista de receita.
Perante todo o burburinho criado em torno da questão do englobamento, acha que o Executivo vai optar por parar e analisar a questão por mais tempo e atirar mais para a frente na legislatura?
Não sei. A procissão vai no adro. Francamente não estava à espera que se levantasse esta questão neste momento, mas não consigo fazer previsões.
Mas há que acrescentar a pressão dos partidos de esquerda…
Quando diz parar para discutir, vamos forçosamente parar na discussão do Orçamento do Estado. Teremos aí a ocasião ideal para revisitar a questão.
Esta decisão de englobamento pode ser considerada nociva em termos de competitividade fiscal, tendo em conta os inúmeros investimentos feitos no setor imobiliário?
O mercado imobiliário em Portugal tem atravessado uma grande bolha especulativa e deve-se em grande parte a medidas de natureza fiscal que introduzimos. É óbvio que qualquer alteração fiscal tem consequências ao nível das opções das empresas, mas também é preciso dizer que o mercado empolou porque tomámos opções fiscais que alimentaram a bolha.
Quando se coloca nos pratos da balança a falta de casas para arrendar e a decisão de avançar com o englobamento, o que pesa mais para o legislador?
Há um compromisso entre opções ideológicas, ou opções de intervenção sobre o mercado, justiça versus competitividade, justiça versus incentivo à poupança. Vamos ver como corre a discussão do Orçamento se isso estiver em cima da mesa. Mas creio que vai ser uma coisa interessante de acompanhar. É evidente que com a composição que o Parlamento agora toda a dimensão ideológica destas escolhas surge inflamada. Provavelmente, esta é a primeira de várias iniciativas.
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