O ex-ministro das Finanças considera que o orçamento do investimento público foi cativado por Centeno. Cadilhe critica o atual titular da pasta por colocar as cativações à "serventia" do défice.
Em 1985, as cativações já faziam parte do leque de instrumentos orçamentais utilizados pelo então ministro das Finanças, Miguel Cadilhe. Era um instrumento de “política conjuntural”, descreve Cadilhe, em respostas escritas ao ECO, que critica a forma como Mário Centeno usa as cativações. Um dos efeitos colaterais dessa estratégia é a queda do investimento público que está “no mínimo dos mínimos”. Miguel Cadilhe diz que os políticos “detestam mexer nos regimes públicos”, mas que continua a ser necessário fazer uma reforma na despesa pública. E critica o Governo PSD/CDS por ter perdido a oportunidade de a fazer.
A presidente do CFP, Teodora Cardoso, disse que “o nosso sistema de finanças públicas ainda é o de Salazar”. Concorda? Quais são os problemas do sistema atual de funcionamento e financiamento das Administrações Públicas?
Não sei o contexto da citação, mas Teodora Cardoso conhece isso muito bem. As finanças públicas de Salazar estavam bastante mais equilibradas do que agora, estavam-no estruturalmente. Certamente, referia-se ela a aspetos operacionais e metodológicos. Seja como for, talvez no caso ela tenha usado uma hipérbole da fala.
O maior problema é este: continuamos sem realizar a “grande reforma do Estado”, que claro está há de ser do lado da despesa de funcionamento, do lado das funções do Estado. Repare, as duas palavras têm a mesma raiz, funcionamento e função. Todos sabemos, temos excesso de despesa, que arrasta excesso de carga fiscal, temos o chamado défice estrutural, temos uma dívida pública que é um problema medonho, mas depois o autêntico reformismo que vai ao fundo do problema fica do lado de fora da sala onde os políticos se sentam.
Os políticos detestam mexer nas funções e nos regimes públicos, acham-nos politicamente intratáveis e perigosos, iludem-se com uns remendos, mas isto é assim com os governos mais à esquerda como o atual, ou mais à direita como o anterior. O anterior desperdiçou a melhor oportunidade reformista de muitos anos, que foi o ensejo troikiano.
As cativações carecem de transparência?
Quanto às cativações orçamentais, penso que elas podem ter a sua justificação, dentro de limites razoáveis. Sobretudo como instrumento de “política conjuntural”, que pratiquei, o que é muito diferente do que agora se faz com as cativações. O que agora se faz é, de algum modo, a própria negação da qualidade orçamental, pode aliás pôr em causa o bom nível corrente do serviço público, em várias frentes e funções. Há alguns alertas, a que temos assistido. Centeno dirá, é um mal necessário, é um mal que vem por bem.
Direi eu, é um mal que vem por mal, é um mau sucedâneo de uma reforma estrutural da despesa, que continua por fazer, é um atalho que distorce as coisas e, pior, consente e propicia adiar as soluções de fundo. Poderemos, enfim, ter alguma compreensão pelas cativações de Centeno se elas forem temporárias, intercalares, parcialmente contemporizadoras, estando o Governo a congeminar verdadeiras reformas do Estado, todavia, não sei, não as vejo nem entrevejo.
No meu tempo, como ministro das Finanças, usei cativações mas só de verbas de investimento, usei quando a economia deu sinais de poder estar aquecida. Lembro que, em 1985, herdei uma economia deprimida, em que a inflação e o desemprego, elevados, coabitavam, foi no rescaldo da segunda intervenção do FMI. Comecei por políticas de relançamento e desinflação que vigoraram em 1986 e 87. Quando a expansão se afirmou, introduzi, entre outras políticas, a cláusula de “regulação da procura”, assim lhe chamei, e assim mesmo era dito na epígrafe do respetivo artigo, na lei do OE.
A cativação não era um instrumento de serventia ao défice, como agora é.
Mas, atenção, repito, a cativação incidia só nas dotações para investimento público. Por exemplo, no OE de 1989, a retenção inicial foi 10% de todo o chamado “capítulo 50” do orçamento. No fim do 1º semestre, tínhamos de avaliar a conjuntura através dos indicadores de procura, liquidez, balança comercial, emprego e inflação, assim rezava a lei por nós proposta. E em julho, em função do andamento da economia, tínhamos de decidir se libertávamos parte ou toda ou nenhuma cativação orçamental, quais os ministérios e os programas de investimento.
Como vê, no meu tempo, a cativação era um instrumento tipicamente keynesiano, na verdadeira e substantiva aceção do termo. Era um dos instrumentos da política orçamental de estabilização, articulada com outras políticas de estabilização, confluentes, incluindo a política monetária e cambial que estava sob a nossa alçada, incluindo igualmente a política de rendimentos e concertação social. A cativação não era um instrumento de serventia ao défice, como agora é. Agora as cativações acabam por ser umas entorses do orçamento corrente. Além disso, além das cativações correntes, podemos dizer que, de facto, também o orçamento do investimento público (FBCF) foi cativado por Centeno, porque a execução de 2017 foi muito inferior ao solenemente previsto. Aí poderemos descortinar, afinal, uma outra espécie de cativações, que igualmente estão subjugadas ao objetivo do défice.
O investimento público continua aquém do previsto. Que áreas considera prioritárias, em termos de investimento público?
Estamos abaixo do mínimo dos mínimos, depois de anos consecutivos de cortes orçamentais, mas ao dizer isto estou a pensar apenas no bom investimento público, sublinho “bom investimento”, de que a sociedade e a economia não podem prescindir. Há investimento público que não presta e é feito, há outro que presta e não é feito, é assim há anos. Neste campo, temos infelizmente uma longa história de má ou péssima alocação de recursos públicos.
Que áreas prioritárias e carecidas? Diria, investimentos incorpóreos ligados ao software, formação, investigação, etc, mesmo que contabilisticamente não sejam classificados como investimento. Diria, investimentos corpóreos, muitos deles inadiáveis, como as substituições e modernizações de capital técnico, as grandes reparações e conservações de edifícios e infraestruturas, o enquadramento físico das florestas incluindo o seu cadastro, etc. Falo de o Estado investir em máquinas e equipamentos, pontes e viadutos, ferrovias, hospitais, escolas, laboratórios, etc, em alguns casos há degradação irreversível, noutros caminha-se para lá.
Não falo de submarinos, nem de portos do Barreiro, nem de auto-estradas de baixa utilidade marginal, nem de uma segunda Expo, nem de outra leva de estádios de futebol, nem da destruição e construção do principal aeroporto, etc. Falo do que é essencial ao bem estar, à segurança civil, ao progresso, à economia. Falo do risco de tragédias. A queda da ponte de Entre-os-Rios, em 2001, e os incêndios de Pedrógão Grande, em 2017, foram em grande parte consequência da omissão do bom investimento público.
Falta a aplicação de reformas estruturais a este Governo?
Falta, é notório que sim. Portugal caracteriza-se, há muitos anos, por uma baixa densidade de reformas estruturais. Deploravelmente tem sido assim. Costumo dizer que os nossos reformadores abraçaram o absentismo. Como explicar isto, que não seja pela qualidade dos políticos que temos? Além da qualidade poderá haver outras razões sistémicas. Por exemplo, no que toca à grande reforma do Estado, de que há pouco falávamos, o “dilema do reformador” é, digamos, um diletantismo meu que uso desde 2005 para explicar o nosso reformador absentista.
O atual Presidente tem aliás mostrado uma rara clarividência reformista.
Acha que o novo líder do PSD é capaz de promover acordos nesse sentido?
Que dilema é esse? Bem vê, se o político anuncia em eleições que vai fazer grandes reformas das funções e dos regimes públicos, perde as eleições; se o não anuncia e ganha as eleições, não pode depois fazer o que antes omitiu. É este o embaraço dilemático. Para quebrar o dilema seria preciso um sincero acordo entre os principais partidos da alternância democrática, sob o alto patrocínio do Presidente da República. O atual Presidente tem aliás mostrado uma rara clarividência reformista. O PR, como órgão de soberania, tem poder de persuasão e tem poder de rotura que deveria usar, com justa causa, se acaso um compromisso público dessa natureza não fosse cumprido. A propósito, pergunta-me sobre Rui Rio. Se ele se mantiver na linha reformista que prometeu, e desejo que ele se mantenha, o PSD poderá ser uma das partes contratantes decisivas e comprometidas, e não estou a pensar na necessidade de blocos centrais, PSD e PS, para assinar e fazer andar um tal compromisso.
Considera que a promoção do interior é a reforma mais importante que o país tem de fazer?
Sim, sem dúvida nenhuma, é uma das mais importantes. Poderia e deveria ser conjugada com a descentralização política. O interior é um formidável desafio ao reformismo e às políticas públicas, um dos mais antigos desafios que a Democracia não soube enfrentar e vencer, em todas as valências, em algumas sim conseguiu, por exemplo, os tempos de viagem. O despovoamento está aí para nos interpelar. Pediram-me uma proposta sobre o sistema fiscal em prol do interior. Pediram-me que assumisse um certo radicalismo em contraponto aos paninhos quentes. Entreguei uma primeira formulação há pouco mais de um mês ao recentíssimo “Movimento pelo Interior”, cujo desígnio se concentra neste inverno e na primavera de 2018. O meu contributo é na área dos incentivos fiscais, outros há noutras áreas que estão também a ser trabalhados. O essencial do Movimento esgota-se em meados do ano, as propostas deverão estar então entregues a quem de direito, é o que está publicamente declarado.
Que propostas apresentou?
O “regime contratual de investimento”, instituído por decreto-lei, é destinado apenas a grandes projetos de investimento, seja onde for que eles se localizem em Portugal. Os contratos podem incluir benefícios fiscais e financeiros, e outros benefícios, a conceder pelo setor público ao setor privado que invista, nacional ou estrangeiro. Trata-se de um poderoso instrumento de política pública, ajustável caso a caso. A esmagadora maioria dos contratos celebrados até hoje apoiaram e apoiam o “não interior”.
O Estado dá incentivos fiscais a mais, há que ser mais seletivo.
Pois bem, proponho que, de futuro, o regime passe a ser um exclusivo do “interior”, sendo que os territórios do “interior” estão já definidos e delimitados por uma importante portaria de 2017. Ser exclusivo do interior significa e implica que é excluído o litoral. Radical? Sim, claro, por que não? O Estado dá incentivos fiscais a mais, há que ser mais seletivo, o “interior” precisa de fortes medidas, o “interior” pode ser a mais legítima razão para restringir e condicionar o regime contratual. Ou o investimento vai para lá, ou não há contrato de benefícios, ponto final. Salvaguardo casos específicos em que o “interior” não tenha sentido, por exemplo, um investimento privado num porto de mar, ou o aumento da capacidade produtiva de uma fábrica já instalada.
São deste tipo as medidas fiscais que sugeri ao Movimento pelo Interior. O que fiz foi pegar no menu dos benefícios existentes e sujeitar alguns deles à condição de “discriminantes ou mais discriminantes ou exclusivos a favor do interior”. Vamos ver se há coragem para levar as medidas por diante, porque de certeza muitos anticorpos se vão erguer: veremos enunciar equações e teoremas de racionalidade económica; veremos desenhar cenários de redução do IDE, investimento direto estrangeiro; veremos renascer o argumento do efeito spillover (difusor) do investimento, desta feita do litoral sobre o interior; veremos surgir outros respeitáveis juízos sobre o receio de que as medidas sejam contraproducentes na economia como um todo; etc. De tudo isto, acho que haverá algumas razões a ponderar, mas acima de tudo acho que o rei vai nu em toda esta problemática de políticas do interior.
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Miguel Cadilhe: “Estamos abaixo do mínimo dos mínimos” no investimento público
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