Auto do barco do inferno
Um dos grandes problemas do mundo em geral -- e de Bali em particular -- é essa bela classe que trabalha a taxímetro. São iguais em todo o lado e por estes lados, são uma pequena máfia.
Já os antigos escritos ensinavam: “De duas maneiras pode o viajante usufruir do misterioso fenómeno da regurgitação. A primeira está ligada à ingestão de pratos locais duvidosos e a segunda, à embarcação em mares revoltosos.”
O barco é, provavelmente, o meio de transporte mais antigo a seguir aos pés e é certamente o mais vomitado. Era de barco que, na mitologia, as almas transmigravam para outro mundo mas nunca nos disseram com quantos quilos a menos é que elas chegavam ao Além. Podia até ter nascido o ditado: “Estômago ao mar levado, é estômago lavado.”
Ora este mundo ainda tem paraísos tropicais, com águas turquesa e corais, onde o único chapéu-de-chuva vem a decorar os cocktails adocicados e os locais sabem fazer massagens até de olhos fechados. O problema é que entre nós e o paraíso, geralmente, há umas carradas de mar. E, para o atravessar, umas horas mal passadas.
Sendo que o melhor de Bali está fora de Bali, a saber, umas ilha chamadas Nusas (Penida, Ceningan e Lembongan), um gigante verde chamado Lombok e suas três irmãs mais novas, as pequenas Gili, temos mesmo de apanhar um barco para lá chegar. O problema é que os barcos que existem são fast boats. Estão a ver um cacilheiro? Não tem nada a ver. Os fast boats como o nome indica, são Ferraris do mar. O problema é quando o mar não é lisinho como uma pista de Fórmula 1, e aí a barcaça vira montanha russa.
É aí que percebemos porque é que as viagens de montanha russa não demoram mais que dez minutos. Porque quando demoram duas horas, como ir de Bali às Gili, arriscamo-nos a ver o bolo alimentar de Nasi Goreng e Gado-Gado dos colegas marinheiros, espalhado pelo convés. Não convém ler as reviews destas companhias no TripAdvisor se se quiser fazer ao mar, há mais adjetivos negativos que coletes salva-vidas. E a coisa não fica por aqui.
Um dos grandes problemas do mundo em geral — e de Bali em particular — é essa bela classe que trabalha a taxímetro. São iguais em todo o lado e por estes lados, são uma pequena máfia. Em Bali, ou se aluga uma mota ou se anda de táxi (há opções tipo Uber mas são proibidas nos sítios turísticos). Não há autocarros. Mas além dos taxistas, há outra figura lendária (ainda mais chata) são os touts. Os touts são uns trastes cujo objetivo na vida é vender-te qualquer coisa, à força. Os touts são o contrário das balinesas que miam “massageeee” sempre que alguém passa, o tout é insistente e agressivo, segue colado a ti até cederes, o tout é um ladrão com falta de ação.
Ora quando o ingénuo viajante quer visitar as ilhas tem de apanhar um táxi, o táxi deixa-o ao pé do tout, o tout chateia até ao barco, no barco vomita até ao porto, no porto há outro tout, o tout pega na mala sem autorização, o tout quer dinheiro, o tonto do viajante diz que não, começa a discussão. Lá se vão as férias.
Mas calma, isto é o cenário Titanic. Há dias felizes em que tudo corre bem, sobretudo na estação baixa mas, se forem como eu e tiverem tempo, eis a solução. O viajante vai até Padang Bai, come no incrível restaurante Helix, do Blue Lagoon, e dorme a olhar para o mar, acorda às 6 da manhã com os passarinhos (os touts ainda estão todos as dormir) e apanha o ferry público para Lombok, em vez de duas horas de vómito, tem quatro horas de bronze nas espreguiçadeiras do deck, chega a Lombok e já têm o simpático Suja à sua espera (passo o contacto), atravessa a incrível Lombok numa hora de carro e apanha um pequeno barco local até às Gili. Gastou um terço do dinheiro, não vomitou no barqueiro e não conheceu ninguém interesseiro.
Escrevem os antigos em jeito de conclusão: “De duas maneiras se pode chegar ao paraíso, a primeira é aos solavancos a vomitar a alma e a segunda é a dormitar nos bancos, com uma digestão calma.”
Agora escolham vocês!
“Crónicas asiáticas” são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. O ECO publica as melhores histórias da viagem à Ásia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui. Leia ou releia também as “Crónicas africanas” e as “Crónicas indianas”.
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