Fisco vs. Segurança Social: quem aperta mais o contribuinte
Há diferenças significativas na forma como a administração fiscal e a Segurança Social se relacionam com os contribuintes. Veja o que dizem os especialistas.
De um lado, impostos, do outro, contribuições. Fisco e Segurança Social são duas constantes na relação entre contribuintes e Estado. Mas será que a forma como lidam com os contribuintes é a mesma? Nem por isso, dizem os especialistas contactados pelo ECO.
Para Vasco Guimarães, a Segurança Social é mais branda. “Ao ser mais lenitiva consegue às vezes melhores resultados”, diz o especialista em direito tributário. “Na prática, concede formas de pagamento mais suaves, consegue adaptar a capacidade de gerar rendimento das empresas, ou riqueza, à sua capacidade de cumprir obrigações. O que é mais difícil para o Fisco, porque quando este se apropria, apropria-se de uma riqueza que já foi gerada”, acrescenta.
Ou seja, há razões que justificam esta diferença de tratamento. Desde logo, impostos e contribuições não são a mesma coisa. O imposto resulta de um rendimento e se a empresa “não o entregar, comete crime a partir de um determinado montante”, explica o sócio da MVGA Advogados. Já a contribuição da entidade patronal “é um custo acrescido que beneficia o trabalhador”, nota. Ao contrário do que acontece com a contribuição, a empresa não pode dizer que não paga o imposto por falta de dinheiro, já que aquele resulta de um rendimento. Isto também se relaciona com a “capacidade que as empresas têm de gerar rendimento para suportar os encargos sociais”, diz.
Portanto, ao contrário do Fisco, a Segurança Social pode ter uma aproximação mais branda porque “não houve nenhum rendimento de que a empresa se apropriou, o que existe é uma dificuldade em gerar rendimento para pagar”, defende Vasco Guimarães. Isto excluindo os casos em que a empresa se aproprie de montantes que cabem ao trabalhador.
A esta diferença de tratamento também não é alheio o automatismo da máquina fiscal. Mas isso, às vezes, comporta situações extremas. O fiscalista João Espanha dá o exemplo de um caso concreto: “Apresentámos a defesa de uma contra-ordenação tributária no último dia do prazo, e como o sistema está de tal forma automatizado, no dia a seguir a coima já tinha sido declarada, o sistema nem deu pela entrada da defesa”.
Um sistema automático é mais eficiente, mas também se torna “cego”. Se um casal tiver uma dívida de dois mil euros e cinco contas bancárias com três mil euros cada uma “vai ter dois mil euros penhorados em todos os bancos”, diz Vasco Guimarães. “E só depois do encaixe efetivo é que vai libertar as outras penhoras que estão feitas”, indica.
Manuel Faustino, considerado por muitos o pai do IRS, também aponta para “indícios de certas situações em que o sistema claramente está a funcionar em automático“. Dá o exemplo: um gerente que é chamado a pagar as dívidas da sua empresa e pronuncia-se sobre isso em audiência prévia — “passado o prazo para se pronunciar, normalmente na Autoridade Tributária ele aparece revertido também automaticamente”. E “isto é um comportamento ilegal, porque a audição prévia que ele fez não foi apreciada”, diz Manuel Faustino.
Para este fiscalista, é provavelmente aqui que reside parte da diferença de tratamento. A Segurança Social é “mais benevolente, menos agressiva, facilita mais as coisas”, frisa.
Embora aqui já haja alguns automatismos, existe um “gestor de dossier” que acompanha as empresas devedoras. Se a dívida continuar a ser paga, a execução não avança, salienta Vasco Guimarães.
No que toca à cobrança de contribuições, nota-se a “menor automatização” nas práticas da Segurança Social, sublinha, por seu turno, João Espanha. Mas também por isso, o fisco pode ser mais rápido na resolução dos problemas. “Se tenho um problema que diz respeito a um lapso, a um erro material, consigo junto do fisco resolver isso muito mais rapidamente do que junto da Segurança Social”, afirma. Mas noutras coisas, nota-se mais a “boa vontade por parte dos técnicos da Segurança Social que querem resolver o problema”, acrescenta.
Também Rogério Fernandes Ferreira nota que “o fisco é mais rigoroso e bem mais organizado”. Aqui, “o tempo de resposta ao contribuinte funciona bastante melhor do que na Segurança Social, onde é dificílimo obter informações diretas e concretas”, refere. O sócio da RFF & Associados recorda, aliás, que o fisco tem uma história mais antiga e aponta para o rigor e eficiência dos funcionários da administração tributária. Também Manuel Faustino fala no maior “rigor” na aplicação das regras por parte do fisco. Não quer dizer que a Segurança Social “proceda ilegalmente, tem é filtros maiores”, enfatiza.
Manuel Faustino também recorda que o fisco tem “uma panóplia” de dívidas para cobrar, ao contrário da Segurança Social. “A pressão é maior”, alerta o especialista.
Diferença também nos processos de recuperação de empresas
Para João Espanha, a diferença de postura entre fisco e Segurança Social sente-se “sobretudo no que diz respeito à recuperação de empresas e ao processo de insolvência”. Aqui, “o fisco é muitíssimo mais duro, no sentido que não lhe interessa outra coisa que não seja cobrar aquilo que lhe é devido, e a Segurança Social normalmente é mais contemporizadora, muitas vezes revela uma certa preocupação quando vê que há hipóteses de preservar postos de trabalho”, diz o sócio da Espanha e Associados. Aliás, às vezes o fisco é “forçado” a aceitar acordos na assembleia de credores e depois “faz reversões, penhoras”, ou seja, acaba por “dar com uma mão e tirar com a outra”, salienta.
Rogério Fernandes Ferreira toca no mesmo assunto: “basta ver os acordos em que têm de participar fisco e segurança social” para perceber que o primeiro é, “desde há muitos anos”, mais rígido.
Em regra, explica Vasco Guimarães, “o fisco tem essa tendência que vem do monopólio que tinha anteriormente, que é querer receber à frente dos outros“, embora isso hoje já não aconteça. Portanto, a empresa até pode ser viável, mas como “o fisco não vai receber, encolhe os ombros”. Com a Segurança Social, a lógica é outra: a preocupação é a de “manter o emprego vivo”, para receber contribuições e evitar o pagamento de subsídios de desemprego.
A diferença de ação também acaba por ser visível noutros planos. Em 2012, na legislatura liderada por Passo Coelho, a Segurança Social decidiu deixar de vender casas penhoradas para evitar o despejo dos moradores, como noticiou então o Jornal de Negócios. Só este ano a medida foi transformada em lei, com regras concretas, abrangendo igualmente o fisco.
A relação com os tribunais
O recurso aos tribunais “é uma estratégia que o fisco tem de fazer arrastar a decisão e manter entretanto o dinheiro do seu lado“, diz Vasco Guimarães. Se um contribuinte faz uma reclamação e demonstra que há um erro, é comum a Administração Tributária remeter o assunto para os juízes, acrescenta. E depois da decisão, que demora anos, muitas vezes o pagamento é feito sem juros — “ficam espera que a pessoa vá requerer os juros e são mais quatro anos para receber”, adianta o especialista.
Esta é também uma forma de “desresponsabilizar” o funcionário, diz. “Os tribunais são invadidos por processos”, critica Vasco Guimarães, repetindo uma ideia que já foi transmitida por Dulce Neto, vice-presidente do Supremo Tribunal Administrativo. Em setembro, a juíza conselheira frisou que a administração fiscal contribui para a “elevada litigância” nos tribunais e gera assim até mais despesa com o pagamento de custas e juros, apenas para “dilatar no tempo a devolução ao contribuinte”, conforme noticiou o Diário de Notícias.
“Desde os tempos do Dr. Paulo Macedo como Diretor-Geral dos Impostos, a prática das finanças é chutar tudo para contencioso“, afirma João Espanha. O fiscalista recordou um caso recente, de um contribuinte que reclamou porque pagou erradamente um IMT, apresentando como prova uma segunda via do talão multibanco — a reclamação foi indeferida, indicando “que a segunda via não fazia prova”. Da sua experiência, conclui: “as contestações da administração tributária, em 90% dos casos metem dó”.
Já na Segurança Social, “o recurso aos tribunais é mais doseado”, até porque “existe uma escola de pensamento que vai no sentido de resolver e encaixar receita”, frisa Vasco Guimarães. João Espanha acrescenta que “há uma certa sensatez”, salientando que “quando as reclamações são razoáveis, normalmente são deferidas”.
Por tudo isto isso, Vasco Guimarães entende que o fisco “deveria ter a humildade de perceber que pode errar”. “Se aceitasse essa coisa linearmente simples, seria relativamente simples corrigir situações que se prolongam durante muitos anos com enormes custos, quer para as empresas, quer depois para o Estado que reembolsa com 4% de juro”, conclui.
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