Os escritórios de advogados podem fazer leis?
A correspondência entre Domingues e Centeno revelou o envolvimento de advogados na alteração do EGP. O ECO questionou várias sociedades de advogados sobre a assessoria jurídica que prestam ao Governo.
Em maio do ano passado os advogados de António Domingues negociaram com o Ministério das Finanças as alterações a fazer ao Estatuto do Gestor Público (EGP). É isso que mostra a troca de correspondência revelada pelo ECO: a sociedade de advogados Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados assessorou o ex-presidente, antes de este ter assinado o contrato como presidente do banco público, onde se inclui a proposta de diploma legal que excluía os administradores da CGD do EGP.
O decreto-lei acabou por ser publicado em julho de 2016 e a sua redação final é, em vários pontos, idêntica à proposta que os advogados enviaram ao Ministério das Finanças. Antes disso, o gabinete de Mário Centeno enviou várias versões para o escritório de advogados. Foram estes que responderam com a escolha final: “Das três redações que nos enviou a que julgamos corresponder ao pretendido é a primeira, sem a parte final assinalada a negrito”, lia-se na correspondência revelada. Este pormenor do processo tem suscitado dúvidas sobre o grau de envolvimento dos advogados na elaboração do diploma que isentou os gestores da Caixa Geral de Depósitos do EGP.
Esta segunda-feira, numa conferência de imprensa sobre a polémica, Mário Centeno admitiu que a alteração “foi feita com o apoio de uma equipa técnicos e juristas que estavam a colaborar em todo o processo com o perfeito conhecimento do Ministério das Finanças”. Para o ministro das Finanças foi um ato legislativo “público”, “escrutinado” e do “conhecimento” do ex-presidente do banco público. As reuniões serviram para discutir “a substância daquilo que era o ato legislativo que o Governo iria levar a cabo por sua iniciativa na forma de um Decreto-lei que excluía a CGD do EGP”.
"Julgo que foi uma forma, mais clara, de António Domingues apresentar aquelas que eram as suas condições, com todo o seu direito e naturalidade.”
Em defesa do Governo saiu também o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Os escritórios de advogados devem elaborar propostas de alteração das leis? Numa entrevista dada ao ECO, Pedro Nuno Santos respondeu que “não”. “Julgo que foi uma forma, mais clara, de António Domingues apresentar aquelas que eram as suas condições, com todo o seu direito e naturalidade“, justificou-se, classificando o processo negocial de “normal”. “Algumas das condições que foram propostas foram aceites e por isso é que também António Domingues aceitou”, afirmou ainda o secretário de Estado.
Face a esta revelação, a oposição tem acusado o Governo de falta de transparência no processo. Esta terça-feira, o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, acusou o Executivo de não ser importar de “aprovar um decreto-lei que foi feito num escritório de advogados”. Também Marques Mendes, no seu comentário de domingo na SIC, criticou o modus operandi do Ministério das Finanças, acusando Centeno de deixar que “um particular e um escritório de advogados mandassem mais que o ministro a tratar um assunto deste melindre”.
A assessoria jurídica ao Governo
O ECO contactou várias sociedades de advogados para perceber qual é o grau de envolvência na assessoria jurídica ao Governo ou a outras instituições públicas. Em resposta, a Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados preferiu não comentar este ou outro caso em que tenha tido trabalhado com instituições públicas. A PLMJ, a SRS Advogados e a CMS Rui Pena & Arnaut foram as sociedades de advogados que responderam até ao momento de publicação deste artigo.
As três sociedades de advogados recusam a existência de situações em que são convidadas pelo Governo a formular uma lei para ir ao encontro dos requisitos de um cliente privado. Rui Pena não tem dúvidas de que esse pedido “não é comum nem seria correto”. “No caso que ultimamente tem ocupado os jornais, importa esclarecer que não foi o Governo a convidar uma sociedade de advogados para formular a lei, mas sim o respetivo cliente, no âmbito da proposta contratual do interesse deste último que pretendia apresentar ao Governo”, recordou o senior partner da CMS.
Não é comum nem seria correto.
José Luís Moreira da Silva, da SRS Advogados, rejeita também que existam esse tipo de pedidos vindos do Governo. No entanto, refere que “algumas vezes o cliente privado pretende algo que só pode suceder mediante uma alteração legislativa e isso é então colocado como opção ao Governo para sua decisão“. Moreira da Silva refere também que existem “pedidos para redigir anteprojetos legislativos”. Nesse caso, “costuma haver uma articulação estreita com o membro do Governo, recebendo contributos de politica legislativa do Governo e dando apenas opções de logística e de melhores opções de redação”, esclarece o responsável pelo departamento de público e projetos da SRS Advogados.
A mesma opinião tem Luís Pais Antunes, managing partner da PLMJ, que classifica esse eventual caso como um “contrassenso”. Contudo, é diferente se clientes privados pedirem “a prestação de serviços para o desenho de determinadas soluções legislativas”. Não referindo o caso concreto, Pais Antunes exclui “completamente”, até pela sua experiência governativa, “que o Governo se vá dirigir a um escritório de advogados a dizer ‘façam-me uma lei'”. Contudo, o ex-secretário de Estado do Trabalho também admite ao ECO que “para matérias técnicas, com muita especificidade” não exclui a existência de “situações em que haja uma encomenda tipo chave na mão”, mas ressalva que “mesmo nesses casos tem de ser feito o mínimo enquadramento”.
É relativamente comum haver jurisconsultos associados a um processo de elaboração de um projeto diploma.
Pais Antunes não se quer pronunciar sobre o caso da CGD, dado que existe uma comissão de inquérito parlamentar, mas refere um caso pessoal. O ex-secretário de Estado fez assessoria jurídica ao anterior Governo PSD/CDS na elaboração das alterações ao Código de Trabalho. “É relativamente comum haver jurisconsultos associados a um processo de elaboração de um projeto diploma“, classifica, revelando que na sua experiência governativa “isso aconteceu em vários ministérios e acontecerá sempre, é perfeitamente normal“. Já o grau de envolvimento depende da “encomenda que é feita”.
Também Rui Pena afirma que “não é descabido haver a participação de advogados em grupos de trabalho e comissões de redação constituídos nos Ministérios para preparar nova legislação sobre temas específicos ou fazer a revisão de legislação entretanto desatualizada porque há determinadas matérias de tal maneira especializadas que os assessores dos Ministérios ou das Direções Gerais não dominam e, por isso, têm de recorrer a pessoas externas”. No entanto, o senior partner da CMS ressalva que compete ao Governo “aceitar ou modificar o trabalho”. “A autoria e a responsabilidade são sempre em última análise imputáveis ao órgão constitucionalmente competente para o efeito“, afirma ao ECO.
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