Wall Street já esqueceu amor a Trump e pisca o olho a Biden
As bolsas norte-americanas viveram um rally histórico durante a era Trump. O novo presidente deverá trazer mais estímulos a famílias e empesas, mas também mudanças nos impostos e regulação.
Foi um presidente imprevisível, que governava através do Twitter e que podia, de um dia para o outro, iniciar uma quezília com um país ou uma empresa. Mas Donald Trump foi também um generoso presidente dos Estados Unidos para Wall Street: as bolsas norte-americanas viveram um rally histórico, que acompanhou o maior crescimento económico da história do país, e nem a pandemia travou as valorizações para recordes. Com o magnata de saída para dar lugar ao sucessor Joe Biden não parece haver razões para o rally chegar ao fim.
“É verdade que, durante o mandato de Trump, as bolsas registaram ganhos importantes, com os cortes nos impostos a serem considerados um fator que contribuiu para entusiasmar muitos investidores. No entanto, estes ganhos fizeram parte de uma tendência que se tinha estabelecido desde 2009, naquele que foi o bull market mais longo de sempre. Podemos, por isso, dizer que a alta das bolsas, sobretudo desde a recuperação que se seguiu ao impacto inicial da pandemia, se deveu a outros fatores que não o Presidente“, explica Ricardo Evangelista, analista sénior da ActivTrades, ao ECO.
A grande política de Trump que marcou os mercados foi a reforma fiscal, implementada em 2018, que alimentou os lucros das empresas e impulsionou as bolsas. Mas desde então muito mudou e Wall Street não ficou imune ao impacto da pandemia. Em resposta, a Reserva Federal (Fed) norte-americana anunciou estímulos monetários como nunca para travar a derrapagem da economia.
"Os fatores determinantes para os ganhos dos últimos nove meses foram a política de compra de ativos da Fed, taxas de juro muito baixas, fraco rendimento da renda fixa, pujança do setor tecnológico e aumento do número de pequenos investidores da área do retalho. Com a mudança de presidente não antevejo, no curto a médio prazo, nenhuma alteração destas circunstâncias.”
Nos quatro anos da administração Trump, o S&P 500 valorizou mais de 65%. O número é expressivo mas fica ainda assim abaixo dos 81% nos primeiros quatro anos de Barack Obama à frente da Casa Branca. No entanto, o período Obama é de recuperação pós Lehman Brothers pelo que não se podem excluir efeitos de base. Aliás, a administração de George W. Bush assistiu a uma desvalorização do índice benchmark, de 13,5% nos primeiros quatro anos e quase 40% na totalidade do mandato. Esta quarta-feira, toma posse Joe Biden.
“Os fatores determinantes para os ganhos dos últimos nove meses foram a política de compra de ativos da Fed, taxas de juro muito baixas, fraco rendimento da renda fixa, pujança do setor tecnológico e aumento do número de pequenos investidores da área do retalho. Com a mudança de presidente não antevejo, no curto a médio prazo, nenhuma alteração destas circunstâncias“, sublinha Evangelista.
Biden e Yellen prestes a lançar bazuca de 1,9 biliões
A expetativa generalizada dos analistas é que a Fed continue a apoiar a economia e o próprio presidente Jerome Powell tem reafirmado que, até à crise passar, a instituição irá estar pronta a agir. Esta prontidão poderá facilitar a vida a Biden. O mesmo acontece com o início da vacinação contra a Covid-19.
Entre estes dois apoios, os mercados esperam do novo Presidente é que concretize os estímulos orçamentais que tem demorado a chegar. Biden e a nova secretária de Estado do Tesouro, Janet Yellen, já delinearam um plano com 1,9 biliões de dólares, incluindo um bilião em apoio direto às famílias, 440 mil milhões para pequenas e médias empresas (PME) e 415 mil milhões para vacinação.
“Os investidores podem começar o ano com perspetivas positivas para os mercados graças a três fatores: aumento da despesa com o novo governo Biden, maior adesão às vacinas e continuação do apoio da Fed”, diz Mona Mahajan, US Investment Strategist da Allianz Global Investors (AllianzGI), recomendando por isso maior exposição a ativos cíclicos e value, empresas de pequena capitalização e ativos internacionais, mas alerta para os riscos de uma escalada da inflação, que tenha um impacto negativo no dólar norte-americano.
"Os investidores podem começar o ano com perspetivas positivas para os mercados graças a três fatores: aumento da despesa com o novo governo Biden, maior adesão às vacinas e continuação do apoio da Fed.”
A gestora de ativos antecipa que a Administração Biden dê prioridade à colocação de dinheiro nas mãos dos consumidores e de volta à economia, enquanto o êxito da vacina pode libertar a procura reprimida, especialmente em áreas, como viagens e lazer, que podem beneficiar da reabertura da economia. Esse aumento da despesa pública não deverá encontrar oposição.
“Pode muito bem ser um presente de Natal tardio, mas parece que finalmente chegou. A onda azul que os mercados esperavam ansiosamente em novembro tornou-se realidade”, diz James Athey, diretor de investmento da Aberdeen Standard Investments sobre o empate no Senado que dá 50 lugares a Democratas e outros 50 a Republicados (com o desempate a ser feito pelo Presidente).
“Os mercados veem este resultado como um impulsionador de ainda mais apoio da política orçamental para a economia dos EUA devastada por vírus. É provável que isso cause uma subida das yields das Treasuries, especialmente em prazos mais longos, uma vez que os rendimentos terão que refletir expectativas de crescimento mais altas e maior oferta de obrigações do Tesouro”, considera Athey.
Aumento de impostos e regulação assustam
Mas nem todas as políticas do norte-americano agradam. Biden deverá ser sinónimo de mudanças ao nível da regulação e dos impostos, podendo, quando a pandemia estiver controlada e a atividade económica tenha recuperado, subir impostos e potencialmente tentar regular o setor da tecnologia. A concretizar-se — especialmente se a Fed também já tiver invertido as políticas –, esse cenário poderá levar os investidores a fecharem posições em ativos de risco, como as ações, voltando-se de novo para a segurança da dívida.
"Mais impostos sobre as empresas, os ganhos de capital e os lucros serão vistos como potencialmente negativos para o mercado acionista, assim como um ambiente regulatório mais oneroso. Regulamentação anti-trust e fiscalização mais robustas têm o potencial de sugar o vento das velas das big tech num momento em que as avaliações parecem cada vez mais difíceis de justificar.”
“Mais impostos sobre as empresas, os ganhos de capital e os lucros serão vistos como potencialmente negativos para o mercado acionista, assim como um ambiente regulatório mais oneroso. Regulamentação anti-trust e fiscalização mais robustas têm o potencial de sugar o vento das velas das big tech num momento em que as avaliações parecem cada vez mais difíceis de justificar”, aponta o diretor de investimentos da Aberdeen Standard Investments. Lembra ainda que a valorização do dólar (impulsionada pelo crescimento económica e subida das yields) pode também penalizar Wall Street.
Mas para já, não é esse o cenário base dos analistas que ainda veem espaço para Wall Street continuar a subir acompanhando os desenvolvimentos da pandemia, mesmo depois dos fortes ganhos. Após um ganho de 16% em 2020, o S&P 500 continua no verde este ano. O mesmo acontece com o Nasdaq (que disparou 47,6% no ano passado) e com o Dow Jones (que tinha somado 7,3%). E nem o risco imediato de uma transição mais violenta — o país reforçou fortemente as medidas de segurança no seguimento da invasão ao Capitólio por apoios de Trump — os parece assustar.
“Por incrível que pareça, os acontecimentos do passado dia 6 não tiveram grande impacto nos mercados. No seguimento dos motins em Washington, o S&P 500 subiu [0,6% no próprio dia e 1,5% no seguinte], tendo ganho quase 3% durante o resto da semana. Por isso, a menos que suceda algo verdadeiramente catastrófico, é pouco provável que novas cenas de violência, por si mesmas, venham a ter grande influência no sentimento dos investidores“, acrescenta Ricardo Evangelista, da ActivTrades.
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