Campanha de solidariedade quer atenuar sofrimento em Cabo Delgado

  • Lusa
  • 27 Abril 2021

A campanha “Por Moçambique” pretende sensibilizar Portugal para a situação na província moçambicana de Cabo Delgado, palco de um conflito violento há vários anos.

A campanha “Por Moçambique”, que tem Catarina Furtado e Mia Couto entre os seus porta-vozes, pretende sensibilizar Portugal para a situação na província moçambicana de Cabo Delgado, palco de um conflito violento há vários anos.

A campanha, realizada de forma pro bono (não remunerada) e que comporta várias iniciativas, incluindo vídeos com os porta-vozes e uma música, quer “fazer pressão” e mostrar o descontentamento face às violações dos direitos humanos no norte de Moçambique.

“Nós, sociedade civil, temos um papel muito determinante, na medida em que podemos fazer advocacy, podemos fazer pressão, podemos juntar-nos todos e todas e mostrar o nosso descontentamento em relação às violações constantes dos direitos humanos”, explicou à Lusa a apresentadora portuguesa Catarina Furtado, uma das porta-vozes da campanha.

“Há milhares de pessoas a serem maltratadas, mulheres a serem decapitadas. É um horror, e esses relatos são reais”, acrescentou a embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População.

Catarina Furtado justificou a sua participação na campanha, assinalando que não era possível ignorar o conflito no norte de Moçambique.

“Não podemos ignorar. Eu não conseguia dormir bem se não estivesse envolvida em algo que pudesse apenas atenuar, mas que servisse para nos juntar em prol desta causa”, referiu, assinalando que “mais uma vez as mulheres e crianças são as maiores vítimas”.

Além da sensibilização, a campanha consagra também a recolha de donativos, destinados ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Cáritas e a Oikos, a atuar no terreno.

Catarina Furtado explicou que o envolvimento destas passou por serem organizações que “podem de alguma forma serem transversais na sua ajuda” devido às suas áreas de atuação.

“Achámos por bem que deveríamos convocar a sociedade a poder apoiar financeiramente com donativos, porque, na verdade, aqueles que são os relatos que eu tenho dos técnicos no terreno é que falta muita coisa, muita coisa, porque de facto aquela zona está muito abandonada, até do ponto de vista do próprio país e do próprio Governo”, lamentou a apresentadora.

“É puxar por cada um de nós e por todos, pelo exercício da nossa cidadania”, sublinhou, reiterando que “são violações dos direitos humanos”.

Catarina Furtado lamentou ainda que, na sua opinião, não tenha havido, desde o início, acesso a informações sobre o conflito.

“O que me parece é que nós, comunidade internacional, também pela não vontade do próprio país, Moçambique, não fomos tendo – esta é a minha visão – as informações que deveríamos ter tido logo desde o início”, disse.

Numa nota enviada à comunicação social, Pedro Vaz Marques, um dos mentores da campanha, defendeu ser “fundamental que todos os portugueses se envolvam e participem nesta campanha, nas redes sociais e nas várias plataformas onde será divulgada, para ajudar um povo irmão que está em sofrimento”.

O manifesto “Por_Moçambique” apela para que “a população civil de Cabo Delgado seja protegida contra os atos de barbaridade a que têm sido sujeitas”, para que “a agressão contra Moçambique termine e que a integridade das fronteiras territoriais de Moçambique seja respeitada” e para que “se mobilizem apoios para que estas populações possam regressar em paz às suas terras”.

A campanha está disponível no portal http://pormocambique.pt, assim como os números de identificação bancária (NIB) das organizações envolvidas e o hino da iniciativa.

Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e 714.000 deslocados, de acordo com o Governo moçambicano.

O mais recente ataque foi feito em 24 de março contra a vila de Palma, provocando dezenas de mortos e feridos, num balanço ainda em curso.

As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expetativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.

São precisas “várias campanhas” solidárias, diz Mia Couto

A situação humanitária em Cabo Delgado, norte de Moçambique, justifica várias campanhas solidárias, tal é a dimensão da crise, disse esta segunda-feira em entrevista à Lusa o escritor Mia Couto, ao dar a cara pela iniciativa de angariação de fundos Por Moçambique.

“São precisas várias campanhas, dentro e fora de Moçambique. Infelizmente a situação atinge uma proporção dramática enorme”, num cenário de “barbárie e crueldade” protagonizado por terroristas que desde 2017 atacam uma das populações mais pobres do mundo.

“Um país na condição em que está Moçambique não pode fazer face ao tamanho daquele drama” sozinho, sublinhou.

Acessível através da Internet (www.pormacambique.pt), a campanha pretende angariar fundos diretamente para a Cáritas, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Oikos, organizações que estão no terreno na resposta humanitária em Cabo Delgado.

O objetivo é atenuar o sofrimento da população que sofre com o terrorismo, um fenómeno global que ainda nenhum país conseguiu vencer, pelo que, “é muito difícil virar esta página”, realçou Mia Couto.

O escritor quer registar as histórias das vítimas por forma a conferir-lhes humanidade e para serem mais que números.

“Para mim é fundamental que [perante] campanhas de solidariedade a nossa postura seja fundada em nomes, em caras, em histórias concretas”, referiu.

Mia Couto traça um paralelo com a Europa: se um ato terrorista vitimasse pessoas em Paris, “no dia seguinte os jornais tinham a história de cada uma delas e da família”.

No caso de Cabo Delgado, lamentou, “parece que esta gente não tem direito a ter a sua história singular, a ter a sua individualidade”.

A recolha de testemunhos é um dos objetivos da Fundação Fernando Leite Couto, criada em 2015, em Maputo, em homenagem ao autor, pai de Mia Couto.

“Esta é uma coisa que queremos fazer. Queremos construir essas histórias, mandar para lá uma equipa que possa registar em vídeo e em papel as histórias concretas de famílias que sofreram”, mas especialmente as “histórias de superação”.

A superação é destacada por Mia Couto, “a capacidade enorme de as pessoas resistirem e reconstruirem a sua vida depois das cinzas, depois da morte”.

O terrorismo no norte de Moçambique é tão dramático que provoca um medo para o qual o escritor diz “não estar preparado”, referiu na entrevista à Lusa.

Um medo só comparável ao que sentiu quando dormiu em Palma, numa altura em que havia pessoas a ser devoradas por leões.

Mia Couto exerceu o seu trabalho como biólogo há 19 anos na vila recentemente atacada por rebeldes, num outro tempo, sem estradas, sem projetos de gás a serem construídos.

“Na altura, Palma não tinha um lugar para se ficar” e a tenda era o seu abrigo.

Certa noite, avisaram-no da morte de um homem ali perto e, de lanterna na mão – não havia energia – foi ver o que passava. Explicaram-lhe que tinha sido morto por um leão.

“Comecei a enfrentar um medo que me era desconhecido. Tinha medo de ter esse medo” que era o de “ser devorado por uma fera” – e da experiência nasceu a sua obra A Confissão da Leoa.

“Volto a revisitar um medo para o qual não estou preparado”, com os relatos dramáticos do ataque a Palma, admitiu, relatando: “Esse terror que é inspirado pela ação desta gente, destes terroristas que atuam em cabo Delgado, faz-me regressar a esse período”.

Na altura, transformou a história de leões que provocaram a morte de várias mulheres da vila, numa ficção, mas agora diz não ser “capaz de ficcionar”.

“Fazia-me falta estar em Palma”, refere, até porque viver um drama “à distância” chega a ser “mais doloroso, porque tudo nos chega em segunda mão, envolto numa névoa”

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