Pandemia gerou um multimilionário a cada 30 horas
Em dois anos de pandemia, quase 600 pessoas tornaram-se multimilionárias. Mas há mais 263 milhões de pessoas perto da situação de pobreza extrema este ano.
A pandemia de Covid-19 gerou um multimilionário a cada 30 horas. Agora, face à escalada dos custos dos bens essenciais, quase um milhão de pessoas podem cair em situação de pobreza extrema em 2022 a um ritmo quase idêntico, revela um relatório publicado esta segunda-feira pela Oxfam.
O relatório “Lucrar com a dor” é publicado numa altura em que, após um hiato de dois anos, decorre o Fórum Económico Mundial em Davos até 26 de maio, naquela que deverá ser a primeira grande reunião presencial de líderes políticos, económicos e empresariais desde o início da pandemia.
Com o objetivo de debater o rumo do crescimento económico a nível global, o encontro será marcado, no entanto, pela presença de vários multimilionários dos setores da energia, farmácia e alimentação que registaram fortes aumentos das suas fortunas. “A pandemia e agora os aumentos acentuados dos preços dos alimentos e da energia têm sido, dito de forma simples, uma bonança para eles“, afirma a diretora executiva da Oxfam International, Gabriela Bucher, citada no relatório.
Um dos dados que o relatório revela é que 573 pessoas se tornaram multimilionárias durante a pandemia, na proporção de um a cada 30 horas. No espetro contrário, estima que mais 263 milhões de pessoas caiam em situação de pobreza extrema este ano, a uma taxa de um milhão de pessoas a cada 33 horas.
A riqueza dos multimilionários aumentou mais nos primeiros dois anos da pandemia de Covid-19 do que nos últimos 23 anos, equivalendo, na sua totalidade, a 13,9% do PIB global – um aumento de cerca de três vezes face a 2000, ano em que representava 4,4% do PIB global.
“A fortuna dos multimilionários não aumentou porque agora são mais espertos ou trabalham mais arduamente. Os trabalhadores estão a trabalhar mais, por salários mais baixos e em piores condições. Os super-ricos manipularam o sistema com impunidade durante décadas e estão agora a colher os benefícios”, considera Bucher.
Segundo a responsável da Oxfam International, a “quantidade chocante” da riqueza conseguida pelos multimilionários é resultado de processos de privatizações e da criação de monopólios empresariais, bem como de legislação e direitos dos trabalhadores deficitários, ao mesmo tempo que o dinheiro era armazenado em paraísos fiscais “com a cumplicidade dos governos”.
Energia, alimentação e farmácia com lucros recorde
Outro ponto que a Oxfam destaca no seu relatório é o facto de as empresas dos setores energético, alimentar e farmacêutico, áreas em que os monopólios são especialmente comuns, estarem a registar os maiores lucros da sua história desde o aparecimento da Covid-19.
Notando, igualmente, que os salários dos trabalhadores não acompanham a escalada generalizada dos preços, o documento dá conta de que a fortuna dos multimilionários do setor alimentar e energético aumentou em 453 mil milhões de dólares nos últimos dois anos, ou seja, ganharam cerca de mil milhões de dólares de dois em dois dias. Só a BP, Shell, TotalEnergies, Exxon e Chevron, cinco das maiores energéticas, estão a obter, juntas, lucros de 2.600 dólares a cada segundo, enquanto no setor alimentar há 62 novos multimilionários.
A par de apenas três outras empresas, a família Cargill – proprietária de uma empresa com o mesmo nome e cuja atividade é a indústria agroalimentar – controla 70% do mercado agrícola global. Em 2021, esta família registou o seu maior lucro de sempre (cinco mil milhões de dólares em receitas líquidas) e prevê-se que ultrapasse esse recorde este ano. Desde o início da pandemia, a família Cargill ganhou quatro novos multimilionários, somando agora, no total, 12 multimilionários.
Já no setor farmacêutico nasceram 40 novos multimilionários na pandemia. A Moderna e a Pfizer, empresas farmacêuticas que ganharam destaque com o desenvolvimento de vacinas contra o SARS-CoV-2, estão a lucrar 1.000 dólares por segundo. Isto porque, segundo a Oxfam, ambas monopolizaram a produção de vacinas, ainda que o seu desenvolvimento tenha sido apoiado por milhares de milhões de dólares em investimentos públicos.
Além disso, o relatório adverte que as duas farmacêuticas estão a cobrar aos governos até 24 vezes mais do que o custo potencial da produção genérica, enquanto 87% da população dos países de baixo rendimento ainda não foi totalmente vacinada.
“Os extremamente ricos e poderosos estão a lucrar com a dor e o sofrimento. (…) Alguns enriqueceram ao negar a milhares de milhões de pessoas o acesso às vacinas, outros ao explorar o aumento dos preços dos alimentos e da energia. Estão a pagar enormes bónus e dividendos enquanto pagam o mínimo possível de impostos”, afirma a diretora executiva da Oxfam International.
Imposto sobre fortunas milionárias é “medida de senso económico comum”
Os líderes governamentais e empresariais que estão reunidos em Davos enfrentam duas possibilidades de escolha: ou agem como representantes dos 2.668 multimilionários que existem atualmente (donos de uma fortuna de 12,7 biliões de dólares), ou tomam medidas que vão ao encontro das preocupações e necessidades da população mundial.
De acordo com Gabriela Bucher, há uma medida de “senso económico comum” que colocará isso à prova, designadamente a aplicação de uma taxa sobre a riqueza dos multimilionários.
A essa recomendação, o relatório da Oxfam acrescenta a introdução de impostos de solidariedade pontuais sobre os ganhos inesperados que os multimilionários tiveram durante a pandemia, de modo a financiar o apoio a quem enfrenta o aumento dos custos dos alimentos e da energia, bem como uma recuperação justa e sustentável da Covid-19.
A Argentina é um exemplo do que pode ser feito nesse aspeto, visto ter adotado uma taxa especial única designada “imposto dos milionários”. De momento, está a considerar introduzir um imposto extraordinário sobre os lucros da energia e outro sobre os ativos não declarados detidos no estrangeiro para reembolsar a dívida do país ao Fundo Monetário Internacional (FMI) – de notar que, segundo o relatório, os multimilionários armazenaram cerca de oito biliões de dólares em paraísos fiscais.
Outra sugestão é a introdução de um imposto temporário sobre os lucros excedentários de 90% para captar os lucros inesperados das grandes empresas em todas as indústrias. De acordo com a Oxfam, a aplicação deste imposto sobre apenas 32 empresas multinacionais multimilionárias poderia ter gerado 104 mil milhões de dólares em receitas em 2020.
Por fim, a Oxfam recomenda introduzir impostos permanentes sobre as fortunas, a fim de controlar não só a riqueza extrema e o poder monopolista dos multimilionários, como as emissões de carbono das empresas por eles lideradas. Tributar anualmente a riqueza de milionários a partir de apenas 2%, e 5% a riqueza de multimilionários, poderia gerar 2,52 mil milhões de dólares por ano. Os dados do relatório indicam que estas percentagens eram o suficiente para tirar 2,3 mil milhões de pessoas da pobreza, produzir vacinas suficientes contra a Covid-19 e proporcionar cuidados de saúde e proteção social universais a todos os que vivem em países de rendimento baixo e médio-baixo.
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