Ministério Público debaixo de fogo. São justas as críticas?
Quinze dias depois da demissão de Costa, a PGR quebrou o silêncio e diz que não vai qualificar se a decisão do juiz de instrução foi ou não uma derrota para o MP. Serão justas as críticas ao DCIAP?
Nos últimos dias, assistimos a inúmeras posições públicas e políticas à atuação do Ministério Público (MP) no que toca à ‘Operação Influencer’. Foram apontados erros à investigação e o juiz de instrução deixou cair o crime de corrupção de que eram acusados vários arguidos. A ECO/Advocatus ouviu procuradores, advogados e juízes, que esgrimem argumentos a favor e contra a atuação do MP.
Por um lado, o parágrafo do comunicado do gabinete de imprensa da PGR, enviado às redações um minuto depois da saída de Lucília Gago do gabinete de Marcelo Rebelo de Sousa, revelava que o primeiro-ministro António Costa estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça. O que acabou por provocar a sua demissão e a convocação de eleições antecipadas por parte do Presidente da República.
A que se juntaram três erros no despacho de indiciação feito pelos três magistrados do DCIAP e a posterior libertação dos detidos, decidida pelo juiz de instrução – e contra a proposta do MP. Tudo isto causou um mau estar no seio desta magistratura, o que levou a procuradora-geral da República a pedir explicações ao diretor do DCIAP. Embora, publicamente, Luícilia Gago se tenha mantido em silêncio durante quinze dias, na quarta-feira, questionada sobre os erros do Ministério Público nesta operação, disse que se trata de “uma pergunta complexa”. E perante essa complexidade, refugiou-se no silêncio: “A pergunta envolve várias vertentes relativamente às quais não me vou pronunciar, nomeadamente a referência a erros”.
A propósito das medidas de coação determinadas pelo juiz de instrução – que mandou todos os arguidos detidos para casa e que deixou cair os crimes de corrupção imputados pelo Ministério Público – Lucília Gago disse: “não vou qualificar, as medidas falam por si”. E a seguir riu-se. Refira-se que o Ministério Público tinha pedido prisão preventiva para os principais arguidos.
E que erros fez o Ministério Público?
Em causa está a confusão com o apelido do primeiro-ministro e do ministro da Economia numa escuta, a que se juntou o local de encontro entre o chefe de gabinete, um empresário e Lacerda Machado, que não aconteceu na sede do PS mas em São Bento, residência oficial do primeiro-ministro. E ainda uma portaria constante no despacho que dizia que a Start Campus tinha alegadamente interesse em aprovar mas veio a saber-se que, afinal, a portaria em nada estava relacionada com o data center de Sines.
Desde então, levantaram-se vozes a minimizar os indícios criminais na investigação em causa e a denegrir o trabalho dos três procuradores do DCIAP.
A Operação Influencer
A operação de 7 de novembro do Ministério Público levou à detenção de cinco pessoas para interrogatório: o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária, o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, dois administradores da sociedade Start Campus, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e o advogado Diogo Lacerda Machado, amigo de António Costa. Que acabaram todos em liberdade, depois do juiz de instrução ter deixado cair os crimes de corrupção da indiciação do MP.
No total, há nove arguidos no processo, entre eles o ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o advogado e antigo porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
Segundo o Ministério Público, na investigação aos negócios do lítio, hidrogénio verde e do centro de dados de Sines podem estar em causa os crimes de prevaricação, corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e tráfico de influência.
Após o interrogatório aos detidos na operação Influencer, o juiz de instrução criminal considerou Diogo Lacerda Machado (consultor e amigo do primeiro-ministro) fortemente indiciado por tráfico de influência e sujeitou-o a prestar uma caução de 150 mil euros e a entregar o respetivo passaporte.
Já quanto a Vítor Escária (chefe de gabinete de António Costa, demitido na sequência da investigação), foram validados fortes indícios do crime de tráfico de influência, ficando proibido de se ausentar para o estrangeiro.
O autarca Nuno Mascarenhas e os administradores Rui Oliveira Neves e Afonso Salema, da Start Campus, ficaram sujeitos unicamente a Termo de Identidade e Residência (TIR), tendo a empresa ficado obrigada a prestar caução de 600 mil euros. Para o autarca não foram validados indícios de quaisquer crimes, enquanto os dois administradores estão indiciados por tráfico de influência e oferta indevida de vantagem.
O juiz não validou os indícios apontados pelo MP da prática de corrupção e prevaricação que recaíam sobre os arguidos. Esta investigação motivou a abertura de um inquérito conexo junto do MP no Supremo Tribunal de Justiça, relacionado com escutas de conversas entre arguidos e o primeiro-ministro demissionário, António Costa.
O artigo de opinião ‘demolidor’
Mas se as declarações dos (vários) políticos ligados à (forte) máquina socialista não causaram tanto burburinho no seio do DCIAP, já o artigo de opinião da vice-PGR, Maria João Fernandes, publicado no jornal Público na segunda-feira sob o título “Ministério Público: como chegamos aqui?“ , serviu para acordar todo um setor.
Não se referindo diretamente à ‘Operação Influencer’, a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes defendeu que existe no Ministério Público quem entenda que “a investigação criminal pode ser uma extensão de poder”, denunciando situações de recolha de meios de prova por vezes “intrusivas e humilhantes”.
“No DCIAP deveria privilegiar-se o pensamento crítico, a discussão interdisciplinar, nomeadamente com colegas de outras jurisdições tocantes ou conexas”, escreve, dizendo temer que se “tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas ‘prima donnas’ intocáveis e inamovíveis”. O tom crítico vai ainda mais longe quando a procuradora-geral adjunta defende que se permitiu a criação de “uma bruma de auto-suficiência totalmente nefasta e contrária ao que deve ser a qualidade e a excelência desta profissão” na carreira de procurador.
“Os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspetos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer de revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica”, assinala.
As críticas ao trabalho do Ministério Público são justas?
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Adão Carvalho, usou desde logo o cargo que ocupa como representante sindical para defender a corporação. “O MP tem exercido as suas funções no estrito cumprimento da lei, exercendo a ação penal sem avaliar qualquer cenário político hipotético ou qualquer desfecho governativo, tal como tem de ser em obediência à Constituição da República e às regras de um Estado de direito democrático. É nisto que consiste o respeito pela separação de poderes e a não sobreposição de um poder em relação a outro. Os magistrados não são fazedores de opinião pública ou comentadores de serviço”, disse, em declarações à Advocatus. Que acrescentou que “toda a atividade do Ministério Público é devidamente escrutinada no processo”.
"O MP tem exercido as suas funções no estrito cumprimento da lei, exercendo a ação penal sem avaliar qualquer cenário político hipotético ou qualquer desfecho governativo.”
Relembrando que, para além disso, “os magistrados do Ministério Público são avaliados regularmente através de inspeções ordinárias ou extraordinárias, por um órgão – o Conselho Superior do Ministério Público – de que fazem parte cinco elementos indicados pela Assembleia da República e dois pelo Ministério da Justiça”. Assegurando que os magistrados do Ministério Público têm, “pois, formas de escrutínio da sua atuação legalmente estabelecidos e dos mais exigentes que existem ao nível dos países da Europa”.
Já o advogado Dantas Rodrigues critica o excessivo poder que o MP tem, atualmente. “Depositar tanto poder em apenas um único órgão não beneficia os cidadãos e nem sequer os próprios procuradores, desacreditando a sua autonomia avaliativa e o seu sentido de independência”.
“Será mesmo que poderemos confiar no Ministério Público, que cometeu três erros fatais? O rombo provocado no casco do navio da execução da política criminal afeta – e muito – o nosso sistema judicial. A brusca manobra do leme, executada pelos Procuradores do Ministério Público, constitui causa suficiente para se reformular o Código do Processo Penal, o Estatuto do Ministério Público e o Código de Conduta dos Magistrados do Ministério Público antes que o sistema de justiça vá a pique”, defende, em declarações ao ECO/Advocatus.
"É suposto que a atividade do Ministério Público, como sucede aliás com qualquer órgão do Estado, se sujeite a escrutínio público, desde logo através dos órgãos de comunicação social.”
Miguel Pereira Coutinho, advogado da Cuatrecasas, já é mais cauteloso nas críticas, defendendo que “é evidente que o Ministério Público não está isento de erros. Aliás, nem os advogados ou os juízes o estão. E entendo também que é suposto que a atividade do Ministério Público, como sucede aliás com qualquer órgão do Estado, se sujeite a escrutínio público, desde logo através dos órgãos de comunicação social”.
Mas avisa: “uma coisa é escrutínio, outra coisa é ingerência. É importante não perder de vista que a Constituição atribui ao Ministério Público autonomia e estatuto próprio, o que não pode deixar de ser respeitado”. Acrescentando que temos de ter em mente que, dentro de um processo criminal, a atividade do Ministério Público já é sujeita a controlo. O simples facto, por exemplo, de haver um despacho do juiz de instrução criminal que, diante das promoções do Ministério Público, não valida determinados indícios ou que opta por aplicar medidas de coação mais leves em vez da prisão preventiva, é uma prova que essa sindicância existe. É uma demonstração de que o sistema de checks and balances funciona e que não há poderes ilimitados”.
Juízes e Eurojust comentam o caso
Esta semana, também o ex-membro nacional do Eurojust, António Cluny, considerou que certos casos judiciais deviam levar a “uma profunda reflexão do Ministério Público sobre o seu desempenho”, mas também de “autocrítica” do poder político sobre as leis produzidas. “Já defendo há muito tempo que sempre que há um caso importante era essencial discutir internamente [no MP] e extrair dele as lições necessárias, tendo em vista aproveitar tais ensinamentos para processos futuros da mesma natureza”, disse António Cluny, acrescentando que “a natureza do MP enquanto magistratura e nas condições dos inquéritos criminais tem a ver com a sua orgânica mais elástica do que a dos juízes”.
“Os juízes são um órgão jurisdicional por si próprio, enquanto o MP pode constituir equipas de magistrados para investigar e acompanhar um novo processo”, precisou.
Em sua opinião, a “questão está em saber quando há um insucesso, o que é que correu mal”, acrescentando: “Se analisarmos vários casos que não terão corrido bem, podemos chegar (ou não) à conclusão que as causas são as mesmas, assim como é importante tirar ensinamentos do processo que correram bem”.
Para António Cluny, numa e noutra situação (de sucesso ou insucesso) há que procurar “aproveitar essa experiência” e os ensinamentos retirados para procedimentos futuros. “Essa é a grande riqueza que o MP tem de aproveitamento do conhecimento”, adiantou, notando que a Procuradoria-Geral da República (PGR) e as Procuradorias Regionais podem colher tais ensinamentos para novos processos da mesma natureza.
Já da parte dos juízes, a resposta foi em defesa do MP. O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Ramos Soares considerou “excessivo e prematuro” nesta fase “pendurar já o Ministério Público no pelourinho ou endeusá-lo“, porque se desconhece como vai terminar a investigação.
Perante as muitas críticas que têm sido feitas ao processo, que “provocou indiretamente uma crise política” com a demissão do primeiro-ministro, o dirigente da ASJP disse “não embarcar na tese de ninharia penal”, ao assinalar que estão em causa “pessoas com responsabilidades governativas ou próximas de pessoas com responsabilidades governativas que podem ter cometido crimes de tráfico de influência e recebimento indevido de vantagem”, sublinhando que “os factos conhecidos pela imprensa são graves”.
Quanto à polémica gerada pelo último parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente da ASJP defendeu que “o parágrafo não caiu do céu“.
“Uma pessoa reage a um parágrafo não por causa da sequência de palavras e letras, mas porque o parágrafo tem um determinado significado. E o significado daquele parágrafo e dos parágrafos todos daquele comunicado da PGR é que certas pessoas podiam ter praticado atos que, tendo chegado ao conhecimento do MP, foram considerados suspeitos, e o MP foi obrigado, porque a lei obriga, a abrir uma investigação para confirmar ou não essas suspeitas e esses atos”, disse.
O juiz desembargador traçou uma linha divisória entre lobbying e “a chamada cunha”, frisando que tais conceitos não são confundíveis, desde logo pela lei portuguesa, onde o lobbying não está regulado, mas em que existe a tipificação criminal de determinados comportamentos enquadrados no que se designa como “cunha”.
Até se conhecerem todos os factos do processo, Manuel Soares considera que “ninguém responsável consegue dizer que o MP está a perseguir criminalmente pessoas por factos que não são crime”.
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