Marcelo apela à “temperança” do 25 de Novembro num Parlamento muito dividido
Presidente da República despede-se dos deputados, lembrando que foi a temperança que uniu o país há 50 anos. Alguns socialistas deixam o hemiciclo quando Ventura tira cravos vermelhos do púlpito.

O 25 de Novembro de 1975 foi celebrado esta terça-feira e pela primeira vez numa Assembleia da República fraturada, com esquerda e direita em lados opostos das trincheiras. Perante essa divisão, o Presidente da República decidiu lançar um forte apelo à “temperança” que uniu o país naquela data há 50 anos, num discurso que marcou também a despedida de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto chefe do Estado no Parlamento. Alguns socialistas abandonaram o hemiciclo quando André Ventura retirou cravos vermelhos do púlpito e os substituiu por rosas brancas.
Marcelo decidiu andar para trás na fita do tempo e citar a Carta de Bruges escrita pelo infante D. Pedro há cerca de 600 anos, em 1424, para enumerar as virtudes e os problemas críticos do país que ainda se mantêm atuais: a fortaleza, que seria então a demografia e a distribuição do povo pelo território; a prudência, sobretudo financeira; e a temperança. Ou seja, D. Pedro, que tinha corrido a Europa, já falava do despovoamento, da imigração, da reforma da administração e da descentralização, da lentidão da justiça e finanças públicas. O grande trunfo português era “o equilíbrio e a moderação e a unidade no essencial”, lembra Marcelo, ou seja “a temperança”.
Esta qualidade terá sido “mais evidente” no 25 de Novembro, defende. “Entre o risco da violência e a temperança, venceu a temperança. Depois se discutiu quem ganhou mais ou perdeu menos. A pátria ganhou certamente. Não houve regresso ao passado antes de 1974”, indicou. “A temperança prevaleceu. Enquanto mantivermos a convicção de que a pátria é eterna, unidos no essencial e com temperança, seremos eternos”, sublinhou.
No início do discurso, referiu-se a António Ramalho Eanes, que estava na tribuna de honra da sala de sessões. Marcelo fez o elogio, mas também expressou a “mágoa” porque “a história da democracia portuguesa nunca conseguirá explicar que a humildade do general Ramalho Eanes tenha impedido elevar ao marechalato” em vida o primeiro Presidente da República eleito em democracia. Spínola e Costa Gomes foram tornados marechais em vida. Mas Ramalho eanes recusou, em 2000, essa honra militar.
Por várias vezes, ao longo da sua intervenção, Marcelo Rebelo de Sousa destacou a necessidade de união e elogiou o multiculturalismo de Portugal, num aviso à navegação àqueles que preferem dividir para reinar, numa indireta sobretudo à bancada do Chega. “É um país que soube integrar elementos de várias culturas, criar língua e fronteiras; escolheu atravessar oceanos e navegar, chegando mais cedo a mais lugares, conhecendo mais mundo com séculos de antecipação”.
Antes, o presidente da Assembleia da República considerou que assinalar o 25 de Novembro é evocar quem lutou pela democracia e apontou que as cadeiras vazias (dos deputados do PCP) são testemunho da liberdade conquistada.
O presidente do Parlamento começou por classificar como “estranho” ouvir-se que o 25 de Novembro divide, que é uma data fraturante e que a sua evocação se poderá tratar de uma apropriação. “Evocar o 25 de Novembro é evocar quem lutou pela democracia que hoje temos, é lembrar que não devemos dar a democracia por adquirida, é ensinar que a democracia liberal é – e continuará a ser – o único sistema que permite espaço para quem propõe sessões solenes, para quem se opõe a sessões solene e até mesmo para quem se recusa a estar presente em sessões solenes”, disse, aqui numa alusão aos deputados do PCP.
Para José Pedro Aguiar-Branco, as críticas às comemorações do 25 de Novembro e as cadeiras vazias dos deputados do PCP na sessão “são o testemunho vivo do importante lugar desta data na História”. “É por causa do 25 de Novembro que as críticas existem, sem serem caladas. É por causa do 25 de Novembro que as cadeiras vazias podem, amanhã, ser novamente ocupadas”, sustentou.
O presidente da Assembleia da República afirmou também dispensar exercícios de comparação de datas entre a revolução de 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975. “Sou de Abril, sou de Novembro, sou, hoje e sempre, da democracia representativa, porque Abril abriu a porta da liberdade e Novembro garantiu que essa liberdade tivesse chão firme para caminhar”, justificou.
Sobre o futuro, advertiu então que as mudanças vão surgir mais depressa do que se pode prever e que o novo ciclo vai chegar “sem manifestos, nem pré-avisos, sem tempo para livros brancos”. E deixou mesmo um aviso: “Se não soubermos esquecer, por um instante, o telejornal de hoje, e pensar no mundo daqui a 10 anos, estaremos a ser tão reacionários como aqueles que, em 1974, não perceberam que o tempo já tinha avançado sem eles”. “Ou preparamos a mudança, ou somos engolidos por ela. Essa é a escolha que temos pela frente”, atirou.
“Não se percam no interesse pessoal, no egoísmo, porque não há verdadeira felicidade que não seja vivida em comum; não se detenham na inveja, elevem-se para ver o todo, capazes de reconhecer qualidades nos adversários. Sejam melhores do que nós”, acrescentou.
Deputados do PS abandonam o hemiciclo
Durante a intervenção do deputado e líder do Chega, alguns deputados do PS abandonaram o hemiciclo depois de André Ventura ter retirado os cravos vermelhos colocados por outros parlamentares entre as rosas brancas que decoravam o púlpito, na sessão solene evocativa do 25 de Novembro de 1975.
Antes de discursar, retirou os cravos vermelhos que tinham sido colocados antes pelos deputados Inês de Sousa Real, do PAN, Mariana Mortágua, do BE, e Jorge Pinto, do Livre. “Hoje é dia de rosas brancas e não de cravos vermelhos”, justificou o líder do Chega.
Esta atitude levou um grupo de deputados do PS a abandonar o hemiciclo, em protesto, e outros a levantar os cravos vermelhos que tinham levado para a sessão solene evocativa dos 50 anos do 25 de Novembro de 1975, na Assembleia da República. O deputado Porfírio Silva, do PS, ouviu toda a intervenção de André Ventura com um cravo vermelho na mão levantado no ar.
André Ventura comentou a saída de deputados da sala, considerando que “só mostra como sempre conviveram mal com a liberdade”. Face ao ruído gerado no hemiciclo, o presidente da Assembleia da República interveio para pedir que fossem criadas condições para que a intervenção continuasse e salientou: “Nós estamos num parlamento plural, democrático, em que cada um de nós ouve o que o outro tem a dizer”. Na intervenção seguinte, o deputado do PSD Pedro Alves repôs os cravos na tribuna, afirmando que este dia “é de todos”.
Antes, já o líder parlamentar do CDS, Paulo Núncio, tinha retirado uma rosa branca do arranjo floral que ornamenta o púlpito para a colocar junto aos cravos vermelhos que tinham ali colocados momentos antes.
Nesta sessão evocativa dos 50 anos do 25 de Novembro de 1975, André Ventura esteve sentado no meio do hemiciclo, na qualidade de líder do maior partido da oposição, e não no seu lugar de deputado na bancada do Chega.
Esquerda e direita cavam trincheiras
A sessão evocativa dos 50 anos do 25 de novembro dividiu esquerda e direita. Do lado do PS, Marcos Perestrello acusou o Governo de instrumentalizar de “maneira ilegítima” o 25 de Novembro de se subordinar “à extrema-direita saudosista”, com a restante esquerda a criticar a tentativa de reescrever a história desvalorizando o 25 de Abril.
“A maneira ilegítima como o Governo, com a maioria que o apoia, quer apropriar-se do 25 de Novembro, instrumentalizando-o, constitui mais uma ação de subordinação à extrema-direita saudosista, que na verdade o que quer é encontrar um pretexto para negar o 25 de abril, a sua proeminência, o seu lugar cimeiro, fundamental e incomparável, que fechou o ciclo de 48 anos de ditadura”, criticou o socialista, recebendo palmas de pé da bancada do PS.
Para o deputado do PS “é um plano que intenta fazer uma apropriação mistificadora e manipuladora de um acontecimento histórico, mais própria de regimes não democráticos que tentam controlar e impor a sua versão do passado” e acaba por “resultar contra” o próprio 25 de Novembro porque deturpa o seu significado.
“O 25 de novembro não foi por isso um acontecimento isolado. Foi o culminar de um movimento de resistência civil à perversão totalitária do 25 de Abril”, enfatizou. Marcos Perestrello considerou que o 25 de Novembro “representou uma vitória da democracia e da liberdade sobre os projetos revolucionários vanguardistas que tinham posto o país à beira da guerra civil” e uma “vitória do PS e dos democratas”.
“Não foi, como agora se quer fazer crer, uma vitória da direita sobre a esquerda. Longe disso”, atirou, ouvindo-se apartes das bancadas à direita que afirmaram que “ninguém disse isso”. Segundo o deputado do PS, “a esquerda não democrática foi derrotada”, mas “também a direita não democrática sofreu uma pesada derrota” ao ter sido impedida a ilegalização do PCP e proibido na Constituição as organizações fascistas.
Entre os discursos da restante esquerda — o PCP voltou a estar ausente — o deputado do Livre e candidato presidencial Jorge Pinto enfatizou que, embora o 25 de Novembro tenha sido relevante para a construção democrática, data “nenhuma se aproxima nunca da data fundadora”, o 25 de Abril, afirmando que não se pode contar com o Livre para “qualquer reescrita da história”.
Citando Rodrigo Sousa e Castro, um dos militares subscritores do chamado “Documento dos Nove”, Jorge Pinto afirmou ainda que “as pessoas que querem agora comemorar o 25 de Novembro são as que o perderam, porque nenhum dos seus objetivos foi cumprido”, considerando que Portugal “deve orgulhar-se” do que conquistou nos últimos 50 anos.
A coordenadora e deputada única do BE, Mariana Mortágua, disse ver a sessão solene não como uma “homenagem à democracia”, mas “uma tentativa de reescrever a sua história pelas mãos das direitas que, não conseguindo superar o 25 de Abril, nem apagá-lo, tentam amputar-lhe o sentido”, acusando estes partidos de “esperarem cobardemente meio século para tentar rever a história de Portugal”.
Inês de Sousa Real, porta-voz do PAN, lembrou esta data, “tantas vezes usado como arma de arremesso”, como o momento em que o país decidiu que “a democracia pluralista não seria um mero parêntesis, mas sim a regra”, mas lamentou que hoje seja impossível olhar para o hemiciclo e não “ver outra vez trincheiras” e um espaço onde “a cordialidade entre pares deu lugar à má educação institucionalizada”.
“Tivessem eles vencido e estaríamos nós no Campo Pequeno”
Já PSD, Chega, CDS e IL defenderam a importância de comemorar o 25 de Novembro como data que permitiu transição para a democracia, sem esquecer que houve vencedores e vencidos. Na sessão evocativa do 50.º aniversário do 25 de Novembro de 1975, o vice-presidente da bancada do PSD Pedro Alves defendeu que a data “não dividiu, mas uniu”.
No entanto, o deputado social-democrata sublinhou que, se em “abril foram todos pela liberdade”, em novembro “só alguns foram pela democracia”, acrescentando que, em nome da reconciliação nacional, “os vencidos foram perdoados e socialmente reintegrados”. “Ensinam em universidades, são deputados neste parlamento e vão às televisões dar aulas de democracia. Tivessem eles vencido e estaríamos nós no Campo Pequeno”, acusou.
Sobre a polémica das comparações com o 25 de Abril de 1974, o deputado social-democrata considerou que os portugueses “dispensam discussões sobre a metafísica das datas” e que alimentam “conversas pseudointelectuais de direitas contra esquerdas e esquerdas contra direitas”.
No entanto, avisou que “tem ainda menos paciência” para algumas visões que desvalorizam do 25 de Novembro. “Permitir que se esqueça é um erro (…) Mas, sobretudo, é perigoso”, avisou.
Já o líder do Chega afirmou que “o Parlamento faz justiça não ao dia que criou a liberdade, mas ao dia que salvou a liberdade”, e que marca a “luta contra os desvios da Revolução” de 1974 e que persistem.
“Onde antes lutámos pela liberdade de expressão, hoje lutamos contra a cultura de cancelamento […]. Hoje já não lutamos contra expropriações, mas contra esta carga fiscal que também nos expropria, que também nos mata e que mata pequenos empresários pelo país todo e nos faz ser cada vez mais pobres. Se havia futuro para dar a 25 de Novembro de 1975, tem que haver futuro para dar a 25 de Novembro de 2025″, defendeu.
O líder do Chega disse também querer retirar Otelo Saraiva de Carvalho, Che Guevara ou Álvaro Cunhal da toponímia portuguesa, e dar às ruas os nomes de Ramalho Eanes ou Jaime Neves (o que, nestes dois casos, já acontece), justificando que Portugal não deve homenagear a tirania, mas sim a liberdade.
Pela IL, a líder e deputada Mariana Leitão avisou que o 25 de Novembro “não é apenas uma data no calendário”, mas o dia em que o país disse “não ao autoritarismo e totalitarismo”, e escolheu “sem ambiguidades” a democracia liberal.
“Todos sabemos o que se preparava nesse dia. Todos conhecemos o risco real que corríamos. E, para quem duvida desse perigo que Portugal viveu, basta olhar para esta sala. As ausências de hoje falam por si: revelam quem ficou do lado errado da História, quem naquele momento decisivo, não quis a liberdade, quem, meio século depois, ainda resiste a celebrar a liberdade”, disse, numa referência implícita à ausência do PCP desta sessão solene.
Mariana Leitão afirmou que a IL celebra “com a mesma alegria” o 25 de Abril e o 25 de Novembro e avisou contra outras ameaças à liberdade nos dias de hoje: “o controlo subtil, o peso do conformismo, a tentação de entregar direitos em troca de uma segurança ilusória”.
O líder parlamentar do CDS, Paulo Núncio, salientou que “Novembro não substitui Abril, Novembro completa Abril”, pelo que “tem de ser comemorado”. “Espero que as novas gerações, o futuro de Portugal, saibam ultrapassar a falsa oposição entre Abril e Novembro, que só alguns têm hoje interesse em fomentar e saibam afirmar, sem complexos e com uma enorme convicção, viva a liberdade, viva a democracia, viva o 25 de Novembro”, sublinhou.
O deputado único do JPP, Filipe Sousa, argumentou que o 25 de Novembro foi uma “vitória da coragem sobre o fanatismo” e defendeu que “Portugal não pode voltar a ajoelhar-se perante extremismos”, nem “permitir que lhe roubem a democracia pela calada”, acrescentando que esta data incomoda “quem preferia que a história fosse escrita apenas numa versão conveniente” e “nunca fez as pazes” com o país “ter escolhido a liberdade”.
(Notícia atualizada às 14h13)
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