A marcar o fim de um ano parlamentar, os deputados debatem na quarta-feira o Estado da Nação. O ECO fez um raio-X às forças e fraquezas do setor da Educação.
- O ECO vai publicar diariamente uma série de seis artigos sobre o Estado da Nação, até ao debate de quarta-feira no Parlamento, com uma análise aos desafios na Saúde, Educação, Habitação, Economia, Justiça e Finanças Públicas.
Na Educação, o último ano letivo foi menos conturbado ao nível de greves e protestos face ao anterior (marcado por uma forte contestação social). Não obstante, o setor continua a debater-se com a agravada falta de professores, problema que tenderá a agravar-se nos próximos anos, porque, com uma classe docente envelhecida, o número de professores que se irão aposentar não é compensado pelo número de jovens que saem dos cursos de Educação.
“O grande tema [do debate do Estado da Nação] é saber como parar a pandemia na Educação que se anuncia. Ou seja, a escassez de professores”, antecipa o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), Filinto Lima, ao ECO. A opinião é partilhada por Paulo Guinote, professor e fundador do blog O Meu Quintal, que realça que problema “está longe de ser novo ou imprevisível” e que resulta de “incúria política”.
Se no final de dezembro de 2018 havia 134.283 docentes (incluindo educadores de infância) nas escolas públicas, em março deste ano eram 141.814, de acordo com os dados da da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), que têm em conta todos os vínculos contratuais. Contas feitas, trata-se de mais cerca de 7.500 docentes. Ainda assim, insuficiente para compensar as aposentações, que têm batido sucessivos recordes.
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Após um decréscimo acentuado, o número de professores reformados tem vindo a aumentar consecutivamente nos últimos cinco anos e batido sucessivos recordes. No ano passado, houve, pelo menos, 3.521 professores a pedirem a reforma, segundo os dados da Fenprof, com base nas listas de aposentações publicadas mensalmente em Diário da República. São mais 1.120 face ao ano anterior e quase seis vezes mais face aos 623 que se reformaram em 2016.
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A Fenprof estima que em 2024 possam aposentar-se entre 4.700 e 4.800 docentes, “o número mais elevado do milénio”. Só até final de agosto deverão reformar-se 2.295 docentes, superando o total de 2022. E as estimativas a longo prazo não são animadoras: até 2030 Portugal vai precisar de mais de 30.000 professores.
“O envelhecimento em si não seria um problema, caso não estivesse associado a elevados níveis de stress profissional que conduziram a muitos estados precários de saúde, física e mental, e ao acréscimo das aposentações antecipadas”, indica, defendendo que “desde 2021 que a situação teria de ser combatida de forma ativa e não com ‘remendos’, como foi tentado pelo anterior ministro”.
O problema tem afetado milhares de alunos que ficam períodos prolongados sem aulas a alguma disciplina ou até mesmo todo um ano letivo: só este ano letivo aconteceu a quase mil alunos, sendo que no final de maio mais de 22 mil estudantes do básico e secundário (o equivalente a 1.126 turmas) tinham falta de, pelo menos, um professor.
Segundo o ministro da Educação este “o problema mais grave do sistema educativo”, pelo que o Governo aprovou, em meados de junho, o plano “Mais aulas, mais sucesso”, que vai custar 20 milhões de euros e visa colmatar a falta de docentes no ensino público. De notar que algumas medidas arrancam já no início do próximo ano letivo, enquanto outras estão previstas para 2025 e algumas são transversais, ao passo que outras são dirigidas a zonas mais carenciadas.
Filinto Lima realça que as 15 medidas previstas neste plano são de “emergência” e de “aflição”, pelo que por si só serão insuficientes. Ainda assim, reconhece que “são positivas”, dado que se aplicam “a diversos tipos de professores”, como de quadro, reformados e migrantes, pelo que poderão até ajudar a “cativar pessoas para o ensino”.
Entre as medidas previstas está o aumento do limite para dez horas extraordinárias a atribuir a cada docente, acelerar os processos de contratação ao permitir a seleção de candidatos de forma mais célere durante o ano letivo, bem como a atribuição de um “suplemento remuneratório, até 750 euros mensais brutos, para quem atingir a idade da reforma e queira continuar a dar aulas”.
“As medidas para reter docentes no ativo depois da idade da aposentação terá efeitos muitos reduzidos”, afirma Paulo Guinote, notando que “só ficarão ou voltarão aquelas pessoas que tiveram um percurso profissional em ambientes algo protegidos ou em zonas onde a pressão parental ou o comportamento dos alunos ainda se mantém em níveis ‘razoáveis'”. Opinião diferente tem o representante de diretores escolares, que, apesar de sublinhar que grande parte dos docentes vão “sair do sistema educativo, triste, exausto e muito cansado”, há “uma ínfima parte que quer continuar”.
Outro dos problemas do setor educativo tem a ver com a atratividade da carreira docente, que tem levado cada vez menos jovens a enveredarem por esta atividade profissional. Por isso, o anterior Governo abriu porta à contratação de professores com habilitação própria — isto é, com formação científica ainda não completada com a formação didática e pedagógica — e alterou o regime jurídico para a docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, para que estes docentes possam ser integrados na carreira.
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No entanto, tanto Paulo Guinote como Filinto são bastante críticos a esta revisão. “Temos um retrocesso de uns 30 anos nos critérios de acesso à docência”, avisa o fundador do blog O Meu Quintal. “É verdade que a desqualificação académica dos conteúdos a lecionar em boa parte do ensino básico são de molde a não levantar muitas exigências de natureza científica aos docentes, por via das chamadas ‘aprendizagens essenciais’, mas esse não é o caminho certo para dignificar a escola pública, os seus professores e os próprios alunos”.
Por isso, defende que é necessário pensar a “médio-prazo” e ter uma “abordagem diferente”, dado que haverá um “acentuado corte geracional no corpo docente das escolas, que reduzirá gravemente a transmissão de um saber profissional que é essencial para as novas gerações de docentes”. “Não queremos passar por aquilo que passámos na década de 80 em que chegavam às escolas públicas portuguesas pessoas com fracas habilitações”, corrobora o presidente da ANDAEP.
Para tornar a carreira mais apelativa, são necessárias medidas “concretas e dignificantes”, nomeadamente apoios na deslocação e estadia para os professores que estão colocados longe de casa. “Um apoio efetivo, não é uma migalha“, referindo-se ao apoio à renda criado pelo anterior Executivo, que prevê que os docentes que estejam colocados a mais de 70 quilómetros da sua casa nas regiões de Lisboa e do Algarve possam receber até 200 euros por mês e que até ao início de maio só tinha chegado a dez professores, segundo o Público.
Por outro lado, nos últimos anos, têm também aumentado o número de vagas nos cursos de formação de professores do Ensino Básico, contudo, sindicatos e professores continuam a dizer que os números ficam aquém do necessário. No Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior deste ano foram fixadas 993 vagas, o que corresponde a um aumento de 38 vagas (2,77%), face às 955 disponibilizadas em 2023.
Acordo para recuperação do tempo de serviço traz “paz e estabilidade” às escolas
Além disso, os últimos anos têm sido marcados por uma crescente contestação social do setor da Educação, que exigem melhores salários e condições de trabalho. Mas, a principal reivindicação, e que levou a sucessivas greves no ano letivo 2022/2023, diz respeito à recuperação integral do tempo de serviço dos professores. Em 2019 e após um debate aceso, os docentes conseguiram recuperar cerca de dois anos, nove meses e 18 dias de serviço, mas o anterior Governo nunca cedeu em devolver os 6 anos, 6 meses e 23 dias que ficaram a faltar, argumentando que teria que fazer o mesmo com as restantes carreiras da Função Pública.
Não obstante, e sem a “bênção dos sindicatos”, o anterior Executivo avançou com um diploma para corrigir as assimetrias decorrentes do período de congelamento e reviu o modelo de recrutamento e colocação de professores. A ‘boa nova’ chegou com o novo Governo, que acabou por ceder a esta reivindicação, esperando garantir com isso “a paz social” nas escolas.
“Até para atrair jovens para a profissão este acordo foi fantástico”, dado que é um “sinal” para que os jovens percebam que “finalmente a classe docente está a ser valorizada e dignificada”, resume o representante dos diretores escolares, antecipando que “a paz e a estabilidade” irão regressar às escolas, “após longos meses de uma guerra que na altura parecia não ter fim”.
“É um sinal de vontade de pacificação” e foi “o acordo possível, que desimpede a progressão de umas dezenas de milhar de docentes, mas deixa a outros um travo agridoce, onde se combina a satisfação da razão reconhecida, mas o escasso ou nulo ganho material, em termos individuais”, acrescenta Paulo Guinote. Ainda assim, o professor antecipa que ainda são “muitas” as incógnitas relativamente ao próximo ano letivo, considerando que “continuará a existir dificuldade em substituir docentes em baixa médica”, bem como “ao nível da gestão da escolar”.
Nas últimas décadas é notável o aumento das qualificações em Portugal, que coincide também com um crescente aumento das vagas de acesso ao ensino superior. No entanto, os últimos dados têm gerado alguma preocupação: há cada vez mais alunos a desistirem do ensino superior, após o primeiro ano de curso. Em 2022/2023, a taxa de desistência dos estudantes de licenciatura nestas circunstâncias era de 11,10%, a mais elevada em, pelo menos, oito anos.
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Este período coincide com a pandemia e a inflação, que pressionou os orçamentos das famílias, e com a crise na habitação, da qual o alojamento estudantil não escapou. Recorde-se que os dados mais recentes também já tinham apontado para um aumento do abandono escolar, cuja taxa subiu 1,5 pontos percentuais em 2023, quebrando a tendência gradual de diminuição que se registava desde 2017. Na altura, o então ministro da Educação, João Costa, tinha apontado que 2021 e 2022 foram “anos atípicos tanto no abandono escolar como nas taxas de sucesso” dos alunos.
Qualificações sobem, mas desempenho dos alunos piora
E se as qualificações dos portugueses têm aumentado de forma consistente, os últimos dados de avaliações internacionais têm suscitado preocupações. O PISA 2022, realizado pela OCDE, dá conta de declínio “sem precedentes” no desempenho médio dos alunos de 15 anos a matemática, ciências e leitura. E Portugal não foi exceção, ainda que as quedas mais significativas se tenham verificado no primeiro e terceiro domínios.
A matemática, os alunos portugueses tiveram uma pontuação média de 472 pontos a matemática (em linha com a média da OCDE), mas o que representa um de 21 pontos face ao ciclo de 2018 e de 15 pontos significativos face a 2012. Já a ciências, os estudantes portugueses registaram uma pontuação média de 484 pontos, isto é, menos oito pontos face a 2018 e menos 17 face a 2015 e o que contrasta com os 485 da média da OCDE.
Por sua vez, a leitura, os alunos portugueses obtiveram, em média, 477 pontos, “o que representa uma descida significativa de 15 pontos” face aos 492 pontos registado nos quatro anos anteriores. Foi o pior desempenho desde 2009, mas ligeiramente acima da média da OCDE (476 pontos).
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“É um reflexo dos anos de pandemia”, afirma Filinto Lima ao ECO, indicando que as escolas estão a aguardar que a tutela liderada por Fernando Alexandre anuncie ainda este mês as medidas previstas no âmbito do plano de recuperação das aprendizagens. “Isso é bastante importante porque vai permitir que alguns alunos aprendam as matérias que na altura, por muitos motivos, não conseguiram aprender. E, por força disso, o número de alunos que desistem irá diminuir.”
Já Paulo Guinote considera que a “degradação dos resultados” não se pode atribuir apenas “às políticas inclusivas”. “É importante ter a noção que se introduziram modificações no seu funcionamento e na gestão da carreira docente que estão claramente relacionadas no tempo com uma maior dificuldade da melhor escola pública competir com algumas escolas privadas“, sinaliza, indicando que “a nível interno, o clima de trabalho dos docentes e o seu bem-estar profissional se degradou profundamente”.
Ainda ao nível do ensino, o Governo está a rever o modelo de avaliação externa dos alunos do 4.º ao 12.º anos de escolaridade. O tema foi discutido no Conselho de Ministros da última quinta-feira e o plano será apresentado ainda este mês pelo ministro da Educação.
De notar que o Programa do Governo prevê a realização de provas de aferição a português, matemática e uma disciplina rotativa a cada três anos no 4.º e 6.º anos, “de aplicação universal e obrigatória, substituindo as provas de aferição atualmente em vigor” que se aplicam ao 2.º, 5.º e 8.º anos. O representante dos diretores escolares defende que sobre esta matéria deve existir “existir um pacto na Educação”, de modo que as sucessivas alterações criam “nas escolas e nos pais muita confusão”.
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Estado da Nação. “Pandemia” da falta de professores na Educação
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